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Normas constitucionais inconstitucionais oriundas do poder constituinte originário

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Agenda 22/01/2004 às 00:00

4 A NORMA CONSTITUCIONAL INCONSTITUCIONAL NA VISÃO DE OTTO BACHOF

O professor OTTO BACHOF causou grande polêmica no mundo jurídico ao defender a possibilidade da existência de normas constitucionais inconstitucionais, durante uma aula inaugural, proferida na Universidade de Heidelberg, no início dos anos 50, aula esta que foi transformada em livro, sob o título: Normas Constitucionais Inconstitucionais? (Verfassungswidrige Verfassungsnormen?). Àquela época o pensamento do professor alemão foi muito contestado, mormente pelo fato de que seus escólios encontravam esparsos respaldos jurisprudenciais, especialmente em uma decisão do Verfassungsgerichshof da Baviera, ou Tribunal Constitucional da Baviera, na Alemanha.

Ao longo das décadas que se seguiram, as idéias de BACHOF serviram de base para diversos trabalhos acadêmicos, alguns defendendo o seu pensamento, muitos discordando frontalmente deles. Apesar de toda esta produção literária, a possibilidade de existência de normas constitucionais inconstitucionais continua sendo um tema atual, precipuamente pelo fato de que não há consenso na doutrina sobre tal questão.

Em sua explanação, o jurista alemão analisa a possibilidade da existência de normas constitucionais inconstitucionais em uma mesma unidade política, ou seja, normas conflitantes dentro de uma mesma Constituição. Enfoca, ainda, a questão da competência dos Tribunais Constitucionais, no julgamento das ações que tenham como fundamento a argüição de inconstitucionalidade acima esposada.

Com base em duas decisões, uma do Tribunal Constitucional de Württemberg-Baden e no supramencionado decisum do Tribunal da Baviera, BACHOF entende que estaria sendo iniciado um processo de alargamento do conceito de Constituição, pela inclusão de um direito suprapositivo. A decisão do Verfassungsgerichshof da Baviera, entretanto, é considerada mais vanguardista, haja visto que pôs de lado a definição puramente formal da Lei Maior, incluindo o direito suprapositivo como padrão de controle, sustentando, ainda, que não se pode afastar a hipótese de antinomia no âmbito constitucional, pois existem princípios constitucionais que representam a expressão de um direito anterior ao texto da Carta Política, fundamental, e que, se for infringido por uma outra norma, esta pode ser declarada nula. [33]

Há, pois, um embasamento da pré-concepção constitucional, verdadeira limitação ao Poder Constituinte Originário, mormente no que tange aos direitos fundamentais, que não podem ser deixados de lado, quando da aprovação da Lei Mãe. A referida limitação é reforçada pelos seguintes dizeres:

A nosso ver, há limitações à atividade do constituinte originário. Nesse ponto, há de se admitir que o Poder Constituinte Originário sofre os influxos dos grupos de pressão, sindicatos, associações, organizações não-governamentais, da opinião pública, em derradeira análise. De certa forma, os valores éticos e ideais, a exemplo da justiça e da igualdade, os princípios gerais do direito, enfim, também são limitadores de sua atuação. Isso sem falar na defesa mundial dos direitos humanos e na pujança os tratados internacionais, num mundo globalizado. (...) Sinteticamente, o Poder Constituinte Originário, em ser anterior à positividade constitucional é uma faculdade incondicionada, mas que, por estar vinculado a uma finalidade jurídica, tem limites. Isso sem falar no limite do espaço geográfico, circunspecto à manifestação do poder soberano. Em conclusão, ainda que seja dificultoso objetivar limitações ao Poder Constituinte Originário sob o aspecto formal, materialmente temos que aceitar a derrocada da tese positivista, em especial em sociedades democráticas e na vigência do constitucionalismo. Afinal, a sociedade democrática hodierna é, por essência, consensual. E há inevitável consenso na limitação material do Poder Constituinte Originário quando o enfoque é, por exemplo, a defesa e proteção dos direitos humanos. [34]

Na doutrina portuguesa, o professor JORGE MIRANDA também advoga a tese das limitações ao Poder Constituinte Originário:

Daqui não decorre, porém, que o poder constituinte equivalha a poder soberano absoluto e que signifique capacidade de emprestar à Constituição todo e qualquer conteúdo, sem atender a quaisquer princípios, valores e condições. Não é um poder soberano absoluto – tal como o povo não dispõe de um poder absoluto sobre a Constituição – e isso tanto à luz de uma visão jusnaturalista ou na perspectiva da localização histórica concreta em que se tem de pronunciar o órgão nele investido – aqui trata ele da legitimidade, conforme José Eduardo Faria. O poder constituinte está sujeito a limites. [35]

Na mesma esteira de pensar, o professor MARCO AURÉLIO ALVES ADÃO assim se posiciona:

Defende-se, outrossim, a necessidade de respeito a certos valores naturais absolutos, como a liberdade, a dignidade humana e a justiça, que estariam acima do constituinte. O constituinte não cria o texto do nada. Encontra ordem pré-positiva. Conjunto de princípios fundamentais aos quais se encontra amarrado. [36]

Por fim, corroborando com a tese acima explicitada, preleciona PAULO THADEU GOMES DA SILVA:

Assentada por nós a necessidade de fundamentar a legitimação da ordem jurídica num sistema ou complexo de valores, o qual será o marco axiológico de que derivará o motivo da obrigatoriedade daquela ordem – concepção transcendental do direito natural, e também que, conforme agora escrito, a regra tem por finalidade realizar valores, o exercício do pco terá de, ao fazer uma constituição, cumprir, com responsabilidade eleitoral, os valores ínsitos ao consenso, positivando os direitos humanos no respectivo texto: esta é a sua finalidade, que, por isso mesmo, é jurídica. [37]

Destarte, infere-se que há a possibilidade de antinomia entre as normas constitucionais originárias, seja em decorrência das limitações materiais ao Poder Constituinte Originário, ou devido ao conflito entre preceitos que possuam hierarquia diferida, no corpo de uma mesma Carta Magna. Ambas as situações são albergadas pelo presente estudo.

Sintetizando a questão, tem-se, portanto, que ao admitir-se a possibilidade de existência de normas constitucionais inconstitucionais oriundas do Poder Constituinte Originário, são três as hipóteses plausíveis, a saber: a) choque entre normas constitucionais de hierarquia diferente, ou seja, uma norma materialmente constitucional, portanto superior, em conflito com uma norma apenas formalmente constitucional, podendo ser classificada como inferior; b) antinomia entre uma norma constitucional que tenha positivado direito supralegal e uma norma inferior, como no caso de uma norma constitucional que infrinja os direitos e garantias individuais ínsitos em outra norma, mais "forte"; e c) contrapor-se, uma norma constitucional, a um princípio de direito supralegal não inserido no corpo da Constituição, por exemplo, o conflito entre uma norma constitucional e os valores fundamentais da justiça, ou o direito natural, enfim, com o direito material constitucional não-escrito. [38]

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Em primeiro lugar, portanto, tem-se que as normas oriundas do Poder Constituinte Originário podem ser declaradas inconstitucionais se houver conflito entre preceitos de hierarquia diferente. Uma norma formalmente constitucional, que vá de encontro ao estabelecido por uma norma de cunho materialmente constitucional, por conseguinte, deverá ser declarada sem efeito pelo Tribunal responsável pelo controle de constitucionalidade.

Tomando-se como fundamento a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, à guisa de exemplificação, imagine-se a inserção, quando da aprovação do texto supralegal pelo Poder Constituinte Originário, de uma norma que abolisse o voto secreto, quando da realização de eleições para as Câmaras Municipais. Neste caso, estar-se-ia diante de uma antinomia entre tal comando normativo e a cláusula pétrea que garante a imutabilidade do art. 60, §4º, II, pelo que deveria ser expurgada da Carta Magna a hipotética norma.

Em segundo lugar, advoga-se a tese de que pode ser declarada a inconstitucionalidade de uma regra constitucional inserida originariamente na Carta Magna, caso esta entre em choque com outro preceito, que contenha em sua essência garantias individuais, como as relativas aos direitos humanos, por exemplo.

Seria o caso, explicitando a hipótese acima, de um comando normativo que permitisse a prática da tortura dentro das delegacias de polícia, quando da realização do interrogatório de acusados pelo crime de estupro. Far-se-ia necessário que tal norma fosse declarada sem efeito, em decorrência de sua antinomia para com o art. 5º, III, da Carta Política brasileira.

Por fim, também poderia ser declarada inconstitucional uma norma constitucional originária que afrontasse um preceito supralegal, não inserido no corpo da Constituição. Pode-se citar, como exemplo de tal preceito supralegal, o direito à vida, pois se trata de um princípio que, indubitavelmente, é aceito pela imensa maioria da sociedade contemporânea, em todo o mundo.

Como exemplo poder-se-ia conceber a hipótese de aprovação, em sede de Poder Constituinte Originário, de uma regra determinando que todas as crianças nascidas com graves distúrbios mentais seriam sacrificadas, em nome da pureza da raça humana. Tal exemplificação pode parecer absurda, mas possuem plausibilidade se cotejados com os ideais nazistas, que defendiam a não miscigenação da raça ariana.

São estas, em suma, as hipóteses nas quais se defende a necessidade de controle da constitucionalidade das normas constitucionais emanadas do Poder Constituinte Originário, conforme preleciona o professor OTTO BACHOF e os que pugnam pelas suas idéias.

Se há antinomias no texto constitucional originário, e ressalte-se que não se deve afastar de plano esta possibilidade, tais conflitos devem ser expurgados do ordenamento constitucional. E a competência para exercer tal mister é, extreme de dúvidas, do Poder Judiciário, responsável pelo controle de constitucionalidade das emanações legislativas, mormente no caso do Brasil.

Na presente investigação, entretanto, ousa-se ir mais além do que a tese de BACHOF, por entender-se que pode, de fato, existir uma hierarquia interna, no âmbito de uma Constituição. Assim, defende-se também a possibilidade de controle, pelo Poder Judiciário, mormente, no caso pátrio, pelo STF, da constitucionalidade das normas que habitam a Carta Política, tema que será analisado no próximo capítulo.


5 A NORMA CONSTITUCIONAL INCONSTITUCIONAL E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – STF

A última questão relevante em sede de normas constitucionais inconstitucionais oriundas do Poder Constituinte Originário é a que versa sobre a competência para exercer a função de julgar tais antinomias. No presente estudo, entende-se que o Supremo Tribunal Federal possui essa prerrogativa, tendo em vista o seu papel precípuo de guardião da Constituição, em nosso ordenamento jurídico.

Contudo, este não é o pensamento majoritário. Frise-se que o próprio STF já se posicionou em relação à temática aqui debatida, mormente no julgamento da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade - ADIN nº 815-3, proposta pelo estado do Rio Grande do Sul, cujo teor da ementa transcreve-se:

Ação Direta de inconstitucionalidade

Esta Corte, ao apresentar a ADIN 815, dela não conheceu por entender que não tem jurisdição constitucional para julgar a alegação de inconstitucionalidade de expressões dos parágrafos 1º e 2º do artigo 45 da Carta Magna Federal em face de outros preceitos dela (que são também os alegados como ofendidos na presente ação), sendo todos resultante do Poder Constituinte Originário.

Persistindo, portanto, a eficácia desses parágrafos 1º e 2º da Constituição Federal, e se limitado os dispositivos ora impugnados (artigo 2º, caput e parágrafo único, e artigo 3º da Lei Complementar nº 78, de 30 de dezembro de 1993) a reproduzir exatamente os seus critérios numéricos, são estes constitucionais. [39]

Apesar de pugnar pela inexistência de normas constitucionais originariamente inconstitucionais, o relator da aludida ação, Ministro MOREIRA ALVES, admite, em seu voto, a hipótese de declaração de inconstitucionalidade de Emenda Constitucional, portanto das normas aprovadas pelo Poder Constituinte Derivado. Neste último aspecto, relativo ao controle das emendas, concorda-se com o entendimento do Ministro MOREIRA ALVES.

As razões são claras, já que o presente ensaio monográfico aceita a possibilidade de existência de antinomia no âmbito do Poder Constituinte Originário, mais fortemente ainda, o faz em relação ao Constituinte Derivado. Conforme já se acentuou no capítulo, além das limitações materiais, no nosso ordenamento impostas pelas cláusulas pétreas, há ainda as limitações circunstancias e temporais, também já referidas anteriormente. Em havendo, portanto, aprovação de uma norma, pelo Poder Reformador, que se contraponha às normas pré-existentes na Constituição Federal, claro está que o STF deverá exercer o seu mister de guardião da ordem constitucional, declarando-a inconstitucional.

A possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de emenda já é amplamente aceita pela doutrina. Neste sentido, permite-se trazer à baila os ensinamentos de LENIO LUIZ STRECK:

A toda evidência, todo processo de reforma constitucional está sujeito a reexame através do controle de constitucionalidade. Com efeito, se os dispositivos constitucionais, produtos do processo constituinte originário, estão imunes a esse controle, não havendo, por isso, normas constitucionais inconstitucionais, os demais dispositivos incluídos no texto da Constituição, a partir de um processo de reforma (process oconstituint derivado), podem padecer do vício de inconstitucionalidade. Aliás, não há novidade nesse aspecto, tendo o Supremo Tribunal Federal até mesmo declarado inconstitucional uma emenda constitucional por violação a princípios implícitos da Lei Maior. [40]

Corroborando com o dito, as palavras de MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO:

Do exposto resulta que o Poder Constituinte instituído somente pode atuar estritamente de acordo com a Constituição que o estabelece. Sua obra, portanto, está sujeita, para ser válida, à condição de constitucionalidade. Assim, a violação de norma constitucional relativa a esse Poder importa na inconstitucionalidade do ato que editar. Em conseqüência, tal ato será nulo e írrito como o deve declarar o órgão para tanto competente. [41]

No mesmo sentido, ou seja, acatando a plausibilidade do controle de constitucionalidade das emanações advindas do Poder Reformador, o Ministro CELSO DE MELLO, do STF, relator da ADIN nº 466, assim se posicionou, em seu voto:

Emendas à Constituição - que não são normas constitucionais originárias - podem, assim, incidir, elas próprias, no vício da inconstitucionalidade, configurado pela inobservância de limitações jurídicas superiormente estabelecidas no texto constitucional por deliberação do órgão exercente das funções constituintes primárias ou originárias. [42]

Ainda neste aspecto, merece transcrição, da mesma forma, trecho de decisão do STF, quando do julgamento da ADIN 1.946-DF, citada pelos professores SYLVIO MOTA e WILLIAM DOUGLAS:

Continuando o julgamento da ação direta acima mencionada, o Tribunal, por unanimidade, rejeitando preliminar suscitada pelo Presidente do Senado Federal, conheceu da ação na parte em que se discute o art. 14 da Emenda Constitucional nº 20/98, acima transcrito, em face da jurisprudência do STF no sentido de que é juridicamente possível o controle abstrato de constitucionalidade que tenha por objeto emenda Constituição Federal quando se alega a violação das cláusulas pétreas inscritas no art. 60, §4º, da CF ("Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais."). ADInMC 1.946-DF, rel. Min. Sydney Sanches, 7.4.99. [43]

A questão do controle das emendas constitucionais já foi, porquanto, pacificada no ordenamento jurídico nacional. Conforme explicitado, o STF procedeu a tal controle, sem que houvesse dissenso acerca do tema.

Destarte, o presente estudo ousa discordar do supracitado voto do Ministro MOREIRA ALVES, julgador que denegou de forma contundente a possibilidade do controle de normas constitucionais originárias. Concorda-se, entretanto, com o controle das emendas constitucionais, pelas razões já explicitadas, tendo em vista que há diversas limitações ao Poder Reformador. Todavia, quando o magistrado, hoje em dia já aposentado, afirma que não há limitações ao Poder Constituinte Originário, incorre, permissa venia, em equívoco. A presente monografia defende a existência de um direito suprapositivo, que estaria a condicionar a ação dos legisladores originários. Não há como se admitir, pois, que o Poder Originário é ilimitado na sua atuação.

Na sociedade contemporânea mundial há, com raras exceções, um consenso acerca de determinados direitos e garantias individuais, como, por exemplo, os direitos humanos. Este consenso, que teve sua inspiração inicial nos ideais da Revolução Francesa, em 1789, não permite, ou, em outras palavras, não confere legitimidade a um Poder Constituinte Originário que afaste estas prerrogativas do corpo normativo do texto supralegal. A Constituição é, repise-se, a expressão da vontade popular, que a legitima e garante o seu cumprimento.

Assim, pugna-se pela existência de limitações ao Poder Constituinte Originário, o que acarreta, via de conseqüência, a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de normas do Texto Maior, nos casos em que este extrapole tais termos, na consecução de seu mister.

Confirmando o acima exposto, o constitucionalista mato-grossense PAULO THADEU GOMES DA SILVA pugna pela possibilidade de declaração de normas constitucionais inconstitucionais, como decorrência das limitações impostas ao Poder Constituinte Originário:

Na esfera jurídica, uma vez por nós admitida e demonstrada a realizabilidade da idéia de limitação material ao exercício do poder constituinte originário, teremos que, como corolário compulsório, admitir a existência de norma constitucional inconstitucional. E nessa esfera de entendimento pugnamos pela possibilidade do reconhecimento judicial da inconstitucionalidade, desde que, ressaltamos, as normas sejam positivadas no texto pelo poder constituinte originário e que este se submeta às etapas de um procedimento constituinte radicalmente democrático, nos moldes do aqui desenhado. [44]

O professor MICHEL TEMER, assim analisa a matéria:

A doutrina caracteriza o poder constituinte originário como inicial, autônomo e incondicionado. Não há dúvida, também, de que o constituinte está limitado pelas forças materiais que o levaram a manifestação inauguradora do Estado. Fatores ideológicos, econômicos, o pensamento dominante da comunidade, enfim, é que acabam por determinar a atuação do constituinte. [45]

Confirmando as teses acima pugnadas, TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR preleciona:

A noção de poder originário só é válida num sentido formal. Nenhum poder é, de fato, completamente inicial, autônomo e incondicionado. E a sua legitimidade, embora sempre invocada, até mesmo quando ditatorial o poder, não dispensa uma discussão de seus fundamentos. Não é completamente inicial porque o poder é sempre um conjunto de relações entre diversas forças sociais e só formalmente se pode determinar uma delas como o poder de onde derivam os demais poderes. Não é completamente autônomo porque, não só pela aceitação de limitações de ordem social, histórica, cultural, econômica, ideológica etc., ele já vem restringido. Não é completamente incondicionado porque não só freqüentemente já recebe prefixadas certas diretrizes básicas, como sobretudo porque tem de atuar e deliberar conforme certas regras que antecedem sua manifestação. [46]

Na mesma linha de tirocínio, o professor VENILTO PAULO NUNES JUNIOR afirma:

Vê-se, pois, que embora não existam limites jurídicos ao poder constituinte originário, existem limites sociológicos ou materiais, pressões sociais de todas as espécies, interesses que devem ser conformados por aqueles que, de fato, venham a dar corpo à nova Constituição. [47]

Destarte, não há como negar a existência de limites impostos ao Poder Constituinte Originário, consoante os escritos acima esposados. Em sendo assim, diante de tais limitações faz-se necessário que algum órgão jurisdicional tenha competência para efetivar o controle e a adequação do texto constitucional aos parâmetros estabelecidos pela hierarquia das normas constitucionais e, também pelo direito suprapositivo.

Tal direito suprapositivo, ressalte-se, não deve ser confundido com o Direito Natural, tendo em vista que aquele nada mais é do que a emanação da vontade coletiva, da sociedade como um todo, no sentido de que certas garantias, como por exemplo os direitos humanos, não podem ser afastados pelo Poder Constituinte Originário, sob pena de carecer de legitimidade a Carta aprovada por este.

Em suma, a competência para julgar tais conflitos, em sede de Poder Constituinte Originário, no entender do presente estudo, deve ser do Supremo Tribunal Federal, guardião efetivo da Constituição. Apesar de a maioria dos autores pugnarem pela impossibilidade do referido controle, baseados na premissa de que o Tribunal é um Poder instituído, não podendo, portanto, rever os atos do Poder Constituinte Originário.

Neste sentido, transcreve-se o pensamento de PAULO BONAVIDES:

O Tribunal Constitucional, poder constituído, não há de inverter a sua função, como ocorrerá caso reconheça a si mesmo competência para desfazer ou invalidar preceitos da própria Constituição. Nessa hipótese, não se arvora ele tão-somente em "quarto Poder", mas em Poder dos Poderes, acima do Executivo e do Legislativo, sobranceiro à própria Constituição, deslembrado de que desta lhe provém toda a autoridade exercida no desempenho da função jurisdicional. A Magistratura Suprema não pode, pois, ser fiscal de regras da Constituição com a faculdade de anulá-las a seu livre alvedrio, sem repudiar e subverter a mesma de legitimidade. Transformada em primeira instância constitucional do País, ela acorrentaria aos seus pés aquilo que outrora fora a soberania do povo e da Nação. [48]

Deve-se registrar, por oportuno, que a maioria dos doutrinadores segue a linha de raciocínio do jurista cearense. Este estudo, contudo, aceita a hipótese de controle do Poder Constituinte Originário pelo Poder Judiciário. No caso pátrio, portanto, tal função deve ser desempenhada pelo STF.

Confirmando as idéias acima explanadas, testifica OTTO BACHOF:

Esta vinculação jurídica do poder de decisão do legislador constituinte actua num duplo sentido: por um lado, toda e qualquer Constituição encontra uma barreira à sua eficácia em determinados princípios jurídicos intangíveis, que tanto justificam como limitam o acto constituinte ("legitimidade da actuação constituinte"); por outro lado, o acto de nascimento da Constituição, sempre que se não esteja perante uma decisão constituinte puramente revolucionária, tem de observar as regras processuais estabelecidas em leis "pré-constitucionais" para o acto de legislação constitucional ("legalidade da actuação constituinte"). Levantando-se objecções à legalidade do acto de legislação constitucional, surge a questão da "constitucionalidade da Constituição" ou, no caso de as faltas apontadas se limitarem a um artigo isolado da Constituição, a questão da "constitucionalidade de um preceito constitucional". A competência de controlo de um tribunal constitucional relativa à "constitucionalidade das leis" abrange também a faculdade de controlo, nela incluída, relativa à "constitucionalidade da Constituição". [49]

Desse modo, ao acatar a possibilidade de controle de constitucionalidade das normas originárias, é de se reforçar que o entendimento deste estudo é de que tal ofício deve ser empreendido pelo STF.

Logo, caso seja argüida a existência de antinomias internas, no âmbito da Constituição, estas devem ser solucionadas pelo Supremo Tribunal Federal, independentemente da natureza de tal conflito, seja este advindo do Poder Originário, seja oriundo do Poder Reformador.

Sobre o autor
Pedro Pontes de Azevêdo

Professor de Direito Civil na Universidade Federal da Paraíba. Mestre em direito pela UFPB. Doutorando em Direito pela UERJ. Membro do Instituto de Direito Civil-Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AZEVÊDO, Pedro Pontes. Normas constitucionais inconstitucionais oriundas do poder constituinte originário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 200, 22 jan. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4724. Acesso em: 22 nov. 2024.

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