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A natureza fiscal do delito de descaminho e a sua real necessidade de criminalização

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5 DIREITO PENAL COMO ULTIMA RATIO

Como já visto, o Direito Penal representa o mais rígido dos controles existentes, eis que é de natureza formal e tem por objetivo a aplicação de penas que, em sua maioria, tendem a privar a liberdade do sujeito afetado.

Em outros termos, a tutela penal aplicada na prática baseia-se na interferência do Estado na vida do cidadão através de uma afronta ao seu direito fundamental, que é a liberdade.

É por essa razão que as regras tributárias, quando não forem cumpridas, isto é, quando ocorrer o inadimplemento do tributo por meio de ilusão contra o fisco, é preciso indagar se há, realmente, necessidade de interferência do Direito Penal para se garantir a arrecadação tributária.

Se por diversos modos é possível sancionar o inadimplemento tributário, ou seja, arrecadar o dinheiro que foi descaminhado, então há que ser feito do modo menos agressivo ao infrator. Logo, o Direito Penal, o qual tem a finalidade de punir, não pode ser utilizado para obrigar o cumprimento de todos os textos legais, pois é estruturado pelo princípio basilar da intervenção mínima.

Tal princípio é constituído por dois subprincípios, sendo eles a Fragmentariedade e a Subsidiariedade do Direito Penal.

O princípio da Fragmentariedade, por essência, traduz que somente o fato e as condutas mais graves e mais perigosas, intentadas contra os bens jurídicos mais relevantes, necessitam dos rigores da Lei Penal.

Nessa perspectiva é que Greco (2006, p. 63) conclui que “nem todas as lesões a bens jurídicos justificam a proteção e punição do Direito Penal”.

Roborando o assunto, conclui Toledo (1994, p. 133) que o Direito Penal não deve se preocupar com bagatelas e ressalta que “ao considerar atípicas condutas que ocasionem insignificante prejuízo ao bem protegido, o crime bagatelar será disciplinado em outra área do Direito que não a penal”.

Com essa lógica é que se chega à máxima da Subsidiariedade do Direito Penal, pois sempre que outros ramos do Direito possam ser utilizados para compelir o cidadão ao cumprimento da regra, então o Direito Penal não poderá intervir, sob pena de direta afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana.  

Sobre o tema, vale considerar a doutrina de Roxin (1998, p. 28), o qual assevera que:

“O Direto Penal é de natureza subsidiária. Ou seja: somente se podem punir as lesões de bens jurídicos e as contravenções contra fins de assistência social, se tal for indispensável para uma vida em comum ordenada. Onde bastem os meios do direito civil ou do direito administrativo, o Direito Penal deve retirar-se [...] consequentemente, e por ser a reação mais forte da comunidade, apenas se pode recorrer a ela em último lugar.”

Deste modo, resta claro que as condutas previstas nos crimes contra a ordem tributária – incluindo o descaminho constante no artigo 334 do Código Penal – estão intimamente vinculadas ao não cumprimento de obrigações tributárias, as quais podem ser de dar, fazer ou não fazer, intimamente interligadas ao Estado e à prestação de contas ao fisco.

O próprio Direito Tributário prevê, em seu sistema positivado, uma série de sanções, através de multas pecuniárias e restrições de direitos, algumas delas consistindo na redução do capital social da pessoa jurídica, alteração do quadro societário e até o encerramento das atividades sociais, dentre outras.

Engana-se quem acha que a legislação tributária não é rígida o bastante para impor um temor financeiro ao agente que não cumprir suas obrigações fiscais, sem contar que, também, não deve conhecer a multa punitiva que pode chegar a atingir um percentual de até 150% (cento e cinquenta por cento) sobre o valor dos tributos sonegados, conforme prevê o artigo 44 da Lei nº 9.430/1996.

Além das sanções pecuniárias e as restritivas de certos Direitos, o legislador entende que a não observância das obrigações tributárias pode incidir em reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa, ou de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos e multa, para os crimes dos artigos 1º e 2º da Lei 8137/1990, respectivamente, bem como ao crime de descaminho, constante no artigo 334 do Código Penal, cuja pena base fica estipulada de 1 (um) a 4 (quatro) anos de reclusão, podendo ser cominada em dobro caso seja praticado por meio de transporte aéreo, marítimo ou fluvial, como já visto.

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Indubitável é a desproporcionalidade da pena aplicada ao crime de descaminho, o qual tutela o Erário e tem sua natureza jurídica embasada contra a ordem tributária, podendo ser aplicada ao caso concreto a reprimenda de privação de liberdade superior à pena mínima de um homicídio doloso.  

A celeuma que envolve a desproporcionalidade da aplicação do rigor penal para delitos contra a ordem tributária, os quais já têm severas sanções, encontra amparo no artigo 68 da Lei 11.941/2009, o qual prevê a extinção da punibilidade dos referidos crimes, diante do pagamento do tributo e acréscimos legais, isto é, multas.

Tendo como parâmetro tal argumento, convém, então, indagar qual seria o objetivo de se tipificar condutas que têm excluídas a punibilidade, por exemplo, com o simples adimplemento financeiro?

Já foi objeto de abordagem neste estudo a ideia de que, com o pagamento do valor total de tributos devidos mais acréscimos legais (juros e multas), caracterizando sanções de natureza tributária, a legislação expressamente entende devidamente adimplida a obrigação tributária, ocasionando até mesmo a extinção da punibilidade na seara criminal. É por essa razão que se deve entender que os tipos penais externados na Lei 8.137/1990, bem como o descaminho, são incompatíveis com o texto constitucional, por afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Em primoroso estudo sobre o assunto, Prado (2010, p. 145) aduz que o princípio da dignidade da pessoa humana se irradia por todo ordenamento jurídico, servindo como alicerce para todos os demais princípios penais fundamentais, sendo que a afronta ao princípio da legalidade também se considera uma violação ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Conforme tem sido enfatizado, a tutela penal proveniente do descumprimento das obrigações tributárias entra em conflito direto com o artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal.

O objetivo dos tipos penais tributários é, indubitavelmente, a coerção para que a obrigação financeira seja cumprida. Desse modo, deve o legislador, e se este não o fizer, incumbe ao judiciário, observar os critérios legais e proporcionais, tanto da conduta, quando da pena cominada ao descaminho, sob pena de se consagrar o “Direito Penal do Terror”.


6 CONCLUSÃO

A partir do estudo ora explanado, chega-se à conclusão de que o bem jurídico tutelado no delito de descaminho é, prioritariamente, o mesmo dos demais crimes fiscais, isto é, a ordem tributária em seu sentido lato, consubstanciada no interesse da Administração Pública em arrecadar tributos para fazer frente às necessidades coletivas, bem como em aspectos extrafiscais.

Resta evidente que o descaminho é tipificado e classificado como sendo um crime contra a Administração Pública apenas por opção política-criminal do legislador, já que, quando da primeira edição do tipo, ainda no Código do Império, não existia nenhuma norma que tratasse especificamente dos crimes fiscais.

O objetivo dos dispositivos penais da Lei 8.137/1990 e do delito de descaminho é tutelar o Erário, através da coerção imposta ao cumprimento das obrigações tributárias.

A sanção penal nesses casos é totalmente descabida, vez que o descumprimento das obrigações fiscais acarreta sanções de graves proporções na esfera tributária, tais como multas elevadas e restrições de diversos direitos. Ademais, além da punição, a legislação tributária é estruturada de modo a permitir que os danos sejam reparados através da incidência de juros de mora e atualização monetária, o que significa acautelar o poder de compra da moeda, mirando a efetiva arrecadação dos tributos iludidos.

O maior fundamento que prevê a limitação do Direito Penal e a tutela das condutas tributárias é de que o pagamento dos tributos e acréscimos legais extingue a punibilidade, tornando-se a forma mais tradicional e efetiva de extinção da obrigação tributária, através de sua própria natureza arrecadatória.

Assim sendo, o Direito Penal Econômico, quando tipifica condutas como os crimes contra a ordem tributária, qual seja, o descaminho, é utilizado de modo flagrantemente inconstitucional, por afronta à dignidade da pessoa humana, já que atua com cunho meramente intimidativo a fim de viabilizar o aumento da arrecadação tributária, criando exageradamente figuras penais, caracterizando a instituição do “Direito Penal do Terror”.


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Sobre os autores
Luiz Henrique Teixeira

Acadêmico do curso de Direito da Universidade Paranaense - UNIPAR - Umuarama - Paraná.

Alessandro Dorigon

Mestre em direito pela UNIPAR. Especialista em direito e processo penal pela UEL. Especialista em docência e gestão do ensino superior pela UNIPAR. Especialista em direito militar pela Escola Mineira de Direito. Graduado em direito pela UNIPAR. Professor de direito e processo penal na UNIPAR. Advogado criminalista.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEIXEIRA, Luiz Henrique; DORIGON, Alessandro. A natureza fiscal do delito de descaminho e a sua real necessidade de criminalização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4646, 21 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47392. Acesso em: 22 nov. 2024.

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