RESUMO: O artigo tem por objetivo discutir a incompatibilidade e, por conta disso, a inconstitucionalidade da expressão “garantia da ordem pública”, como hipótese de decretação da prisão preventiva na forma em que foi estabelecida na nova redação do art. 312 do Código de Processo Penal, dada pela Lei nº. 12.403/11, por afronta patente à Constituição de 1988.
Palavras-chave: Garantia da ordem pública, prisão preventiva, inconstitucionalidade e Constituição.
INTRODUÇÃO
Com o advento da Constituição Federal de 1988 (CF88), apelidada de Constituição Cidadã, o Brasil sai de vez do período ditatorial, agora rumo à consolidação da democracia, ocorre que ranços daquela época ainda permanecem e são ratificados pelo legislador ordinário.
Assim, a leitura constitucional do processo penal que deveria ser feita acaba sendo olvidada. Um desses casos é a expressão “garantia da ordem pública”, já presente desde a Lei nº 5349/67 no Código de Processo Penal (CPP), tendo inspiração em ordenamentos nazifascistas.
A introdução de conceitos jurídicos indeterminados e, portanto, com larga possibilidade interpretativa, acarreta, quando utilizados na seara penal, situações de duvidosa constitucionalidade, pois são manobrados pelo poder político, ocasionando segregações seletivas.
Assim, no Direito Brasileiro hodierno tem se disseminado a cultura da prisão cautelar, dentre elas, a prisão preventiva ganha papel de destaque, notadamente após a vigência da Lei nº 12.403/11. Assim, a expressão “garantia da ordem pública” funciona como hipótese de decretação dessa cautelar.
Portanto, têm-se como objetivos analisar o tratamento e conceito da expressão “garantia da ordem pública”, discorrer sobre os princípios constitucionais que são execrados ao se utilizar essa hipótese como fundamento de uma prisão cautelar, evidenciar que, quando da decretação, com base nesse conceito jurídico, da prisão preventiva, esta perde sua natureza cautelar para se transformar numa execução sumária e, por fim, defender a inconstitucionalidade dessa expressão.
1.A PRISÃO PREVENTIVA E SUAS HIPÓTESES DE CABIMENTO
A segregação, o cárcere, a instituição total, devem ser vistos como a última saída, senão o fundo do poço para um ser humano. Importa lembrar que as grades que aprisionam um ser, também fecham sua alma. O falso discurso (re)socializador possibilita o aprisionamento e a “bichificação” de uma pessoa.
Falar sobre a constitucionalidade de uma prisão cautelar em um Estado Democrático de Direito que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana e como princípio abalizador do Direito Penal (DP) o estado de inocência é sempre tarefa árdua.
A Constituição Cidadã, uma evolução louvável no Direito Brasileiro, prevê a segregação cautelar no art. 5º, LXI, bem como a pena de morte nos casos previstos na CF88. Observa-se que são dois institutos que chocam diretamente com a dignidade humana, mas, infelizmente, ainda impera o pensamento que remediar é melhor que prevenir.
A prisão preventiva, na definição de Nestor Távora[1]
“A prisão de natureza cautelar mais ampla, sendo uma eficiente ferramenta de encarceramento durante toda a persecução penal, leia-se, durante o inquérito policial e na fase processual (...). A preventiva é medida de exceção, devendo ser interpretada restritivamente, para compatibilizá-la com o princípio da presunção de inocência (art. 5º, inciso LVII da CF), afinal, o estigma do encarceramento cautelar é por demais deletério à figura do infrator.”
Como já dito, a Constituição dita Cidadã recepcionou a prisão preventiva, porém, não como posta no CPP. É razoável a partir do inciso LXI, do art. 5º, da CF88 dizer que para haver prisão cautelar necessário se faz existir ordem fundamentada de uma autoridade judiciária, presentes a prova da materialidade e os indícios de autoria, bem como o preenchimento de uma das hipóteses elencadas para sua decretação, como a conveniência da instrução criminal e a garantia da aplicação da lei penal. Ocorre que, a garantia da ordem pública e econômica não se coadunam com a ordem constitucional vigente.
Portanto, a CF88 abre a possibilidade da segregação constitucional, porém como ela está posta hoje é que não se coaduna com o texto, os objetivos e princípios de nossa Carta Maior.
2.GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA
Não se pode cogitar de razoável e por isso não fora recepcionado pela CF88 a segregação com base em conceitos jurídicos indeterminados. A ordem pública e econômica tem origem do nazismo, quando o Ministro da Justiça do Governo de Hitler suscita a possibilidade de justificar prisões e massacres com espeques em palavras desprovidas de significado objetivo. Apesar desse histórico, o legislador ordinário reforma a parte das prisões cautelares do Código de Processo Penal, mas ratifica a garantia da ordem pública como hipótese de decretação da preventiva.
Sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal (STF) (HC-85868) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) há muito pacificaram entendimento no sentido de que a mera gravidade abstrata do crime e a periculosidade presumida do agente não podem servir como argumento para fundamentar a garantia da ordem pública se a decisão não indique de forma concreta e fundamentada a necessidade da custódia cautelar, como se vê no julgado abaixo:
“Em matéria de prisão processual, a garantia constitucional da fundamentação do provimento judicial importa o dever da real ou efetiva demonstração de que a segregação atende a pelo menos um dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal. Sem o que se dá a inversão da lógica elementar da Constituição, segundo a qual a presunção de não-culpabilidade é de prevalecer até o momento do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. A mera referência vernacular à garantia da ordem pública não tem a força de corresponder à teleologia do art. 312 do CPP. Até porque, no julgamento do HC 84.078, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, entendeu inconstitucional a execução provisória da pena. Na oportunidade, assentou-se que o cumprimento antecipado da sanção penal ofende o direito constitucional à presunção de não-culpabilidade. Direito subjetivo do indivíduo que tem a sua força quebrantada numa única passagem da Constituição Federal. Leia-se: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei” (inciso LXI do art. 5º). Esta nossa Corte entende que a simples alusão à gravidade do delito ou a expressões de mero apelo retórico não valida a ordem de prisão cautelar. Isso porque o juízo de que determinada pessoa encarna verdadeiro risco à coletividade só é de ser feito com base no quadro fático da causa e, nele, fundamentado o respectivo decreto de prisão cautelar. Sem o que não se demonstra o necessário vínculo operacional entre a necessidade do confinamento cautelar do acusado e o efetivo acautelamento do meio social. Ordem concedida.”[2]
Vê-se, hodiernamente, o ordenamento brasileiro com a síndrome da interpretação retrospectiva da Constituição. Aceita-se qualquer instituto advindo de lei antiga sem pensar no neoconstitucionalismo.
É claro ao consultar a jurisprudência pátria que muitas vezes a expressão garantia da ordem pública é vista como sinônimo de clamor popular, gravidade abstrata do crime, confiança na justiça, proteção dos cidadãos de bem, entre outros. Destarte, tal expressão se destoa da instrumentalidade ínsita às medidas cautelares, não há finalidade processual em garantir a ordem pública. A única coisa que se almeja é a execução sumária da pena, desrespeitando as regras do jogo, mormente o devido processo legal.
Observa-se assim que o Estado que aplica a ordem pública como base para o cárcere deixa os valores democráticos de lado e passa a ser totalitário. O que seria um instrumento ao processo se torna um fim em si mesmo. O fenômeno totalitário revelou que não existem limites às deformações da natureza humana e que a organização burocrática de massas, baseada no terror e nas ideologias, criou novas formas de governo e dominação, cuja perversidade não se pode medir. Assim, Conforme Lafer[3]
“o totalitarismo representa uma proposta de organização da sociedade que almeja a dominação. (...) Para o pensamento totalitário, não existem direitos, mas apenas deveres, em face do Estado e da coletividade, e é por isso que o totalitarismo acaba por ‘eliminar, de maneira historicamente inédita, a própria espontaneidade – a mais genérica e elementar manifestação da liberdade humana”.
Daí, portanto, dessa necessidade de dominação e de segregação seletiva surge conceitos jurídicos indeterminados que resolvem bem o problema, ao menos aparentemente, de legitimidade de uma prisão cautelar.
Esse abuso de autoridade que se redunda no cárcere cautelar de um indivíduo que sequer teve a chance de se defender de forma legítima, demonstra quão autoritária e antidemocrática é a forma de nossa persecução penal. Hodiernamente isso se agrava com a midiatização dos conflitos sociais e o sensacionalismo que envolve o Direito Penal.
Portanto, a corrente doutrinária intermediária, que busca uma interpretação constitucional ao termo garantia da ordem pública, vale-se da periculosidade ou do risco do agente de cometer novas práticas criminosas, assim, confundindo com a prevenção especial. Esse é o pensamento de Nestor Távora[4]:
“Filiamo-nos, como já destacado, à corrente intermediária, conferindo uma interpretação constitucional à acepção da ordem pública, acreditando que ela está em perigo quando o criminoso simboliza um risco, pela possível prática de novas infrações, caso permaneça em liberdade.”
Mas, como preleciona Rômulo Moreira[5]
Com efeito, em situações que tais, em que a medida cautelar é decretada muito mais como uma resposta ao clamor social nascido em razão da exploração midiática do caso, do que propriamente pela necessidade de garantia da ordem pública, a prisão cautelar assume contornos de prevenção geral e especial, que são ínsitos à prisão penal. Não se pode prender alguém preventivamente para que sirva de exemplo, tendo em vista que essa característica decorre da prisão penal, conforme já sustentavam Günther Jackobs e Claus Roxin quando da discussão acerca do funcionalismo penal.
Dessa forma, o que se espera da prisão penal é, de imediato e de forma açodada, aplicada em caráter cautelar. Não obstante críticas às teorias da prevenção geral e especial, de nada elas instrumentalizam o processo, portanto, não deveriam ser utilizadas em medidas cautelares. Então, a sumarização de julgamentos atinge os direitos fundamentais do indivíduo.
3.DIREITOS FUNDAMENTAIS EM CHEQUE
Por não haver uma definição exata do conceito de ordem pública, a doutrina e jurisprudência tem dispensado grande energia para tentar fazer uma leitura constitucional do termo. Sucede que, a clara origem ditatorial da expressão, trazida pela Lei nº 5349/67, sequer deveria ter sido recepcionada pelo ordenamento democrático.
O ponto nevrálgico do tema é a possibilidade de manobrar o conceito de ordem pública para qualquer situação que se queira, perdendo a segurança jurídica necessária e assim excluindo a cautelaridade da prisão, tornando-a uma execução sumária da pena sem o devido processo legal.
O constituinte ao trazer a liberdade como regra e a prisão como exceção, bem assim a inocência como presumível e a culpabilidade como tendo de ser provada, não possibilitou que uma segregação, tida como cautelar, pudesse ser utilizada ao sabor do magistrado ou por pressão midiática.
Portanto, é certo que a leitura constitucional nunca deve ser forçada, tentando extrair a constitucionalidade de onde não há.
Dessa forma, princípios constitucionais tais como, presunção de inocência, segurança jurídica, dignidade da pessoa humana, devido processo legal, favor rei, entre outros, são execrados ao se fundamentar a prisão cautelar em um conceito jurídico tão amplo e sem determinação. Assim, somente com a declaração de inconstitucionalidade da expressão, acabará com essa desastrosa antecipação da pena e se evitará que se use a segregação de forma indiscriminada para atender a determinadas forças de poder.
Sobre a dignidade da pessoa humana, nas palavras de Sarlet[6] “segundo Kant, afirmando a qualidade peculiar e insubstituível da pessoa humana, ‘no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade’”. Portanto, tudo o que tiver um preço não é dotado de dignidade e vice e versa. O homem não poderá nunca ser o instrumento para o arbítrio de outro, devendo ser considerado um fim em si mesmo. Kant[7] diz:
"aquilo... que constitui a condição só graças à qual qualquer coisa pode ter um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é, um preço, mas um valor íntimo, isto é dignidade..a moralidade, e a humanidade enquanto capaz de moralidade, são as únicas coisas que têm dignidade"
O arbítrio é latente ao possibilitar a prisão preventiva com base na garantia da ordem pública. A sumarização do julgamento se dá na falta de certeza do acusado do motivo de sua prisão.
De mais a mais, adotando o posicionamento do Ministro Celso de Mello no julgamento do Habeas Corpus (HC) 87.585-8/TO, não se pode afirmar que as prisões são inconstitucionais, por existir norma expressa na constituição instituidora da pena privativa de liberdade, tampouco a dignidade humana teria reduto de inconstitucionalidade. Por estarem no chamado bloco de constitucionalidade, as normas constitucionais não podem ser declaradas inconstitucionais. Porém, nada impede que as leis infraconstitucionais que tratam sobre prisões sejam inconstitucionais.
O que se deve lembrar é que inexistem conceitos jurídicos absolutos, ou direitos, sejam fundamentais ou humanos, que não possam ser relativizados. Seguindo doutrina de Sarlet[8] “no sentido de que alguém (não importa aqui se juiz, legislador, administrador ou particular) sempre irá decidir o conteúdo da dignidade e se houve, ou não, uma violação no caso concreto”.
Nessa senda, impõe asseverar que a limitação da autodeterminação de uma pessoa, pode ser justificada pela interferência dessa pessoa na autodeterminação de outra. Sucede que, como está atualmente regulamentada a prisão preventiva, mormente no caso da hipótese de decretação fundada em conceito jurídico controverso, o cárcere seria uma limitação abusiva da dignidade da pessoa humana, restando dizer que como está legislada e administrada o instituto da prisão cautelar não há dúvida que se torna inconstitucional, não o instituto, mas o modo como ele se apresenta aos brasileiros.
No que tange a presunção de inocência o STF assim decidiu
“O Plenário do Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do HC n.º 84.078/MG, Rel. Min. EROS GRAU, concluiu, definitivamente, que a decretação ou a manutenção do encarceramento processual (entenda-se qualquer prisão antes de condenação transitada em julgado) depende da configuração objetiva de um ou mais dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal. Para isso o Julgador deve consignar, expressamente, elementos substanciais indicadores de que o indiciado ou acusado, solto, colocará em risco a ordem pública ou econômica, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal. “Sem o que se dá a inversão da lógica elementar da Constituição, segundo a qual a presunção de não-culpabilidade é de prevalecer até o momento do trânsito em julgado da sentença penal condenatória” (STF, HC 101.705/BA, 2.ª Turma, Rel. Min. AYRES BRITTO, DJe de 03/09/2010).Não tem base empírica idônea o decreto prisional em que o Magistrado limita-se tão somente a mencionar a gravidade abstrata do delito ou cuja fundamentação é dissociada de qualquer elemento concreto e individualizado, sem ressaltar a necessidade real da medida excepcional.(…)”[9]
Dessa forma, a expressão garantia da ordem pública inverteria a ordem do princípio da não-culpabilidade, tornando necessário o investigado ou acusado provar sumariamente a sua inocência para se livrar do cárcere cautelar, impondo uma carga probatória não admitida pela Constituição.
Além disso, quando se faz uma cognição sumária, sem ampla defesa e contraditório, sem servir a cautelar ao processo em curso, com a única e exclusiva vontade de antecipar a pena processual, isso, por consequência lógica, fere o devido processo legal. No esteio de Uadi[10]:
“Devido processo legal é o reservatório de princípios constitucionais, expressos e implícitos, que limitam a ação dos Poderes Públicos. Mais do que um princípio, o devido processo legal é um sobreprincípio, ou seja, fundamento sobre o qual todos os demais direitos fundamentais repousam.”
Assim, a liberdade, direito fundamental de primeira dimensão, não pode ficar aos auspícios de um julgador que cautelarmente, sem qualquer exame exauriente da matéria, possa, com base em conceitos jurídicos indeterminados, limitá-la. O devido processo legal serve de limite ao Poder Público, portanto, a expressão garantia da ordem pública não o respeita.