I. INTRODUÇÃO
Esse artigo científico tem por objetivo analisar a possibilidade de cobrança de correção monetária sobre parcelas pagas com base em cálculo formalizado pela Administração Pública no qual foi utilizado índice de correção monetária incorreto.
Para isso, utilizaremos um exemplo referente à aquisição de uma propriedade antes do Código Civil de 2002, sendo essa propriedade adquirida mediante cláusulas resolutivas, relacionadas ao parcelamento do valor total do imóvel.
Após a primeira análise, verificaremos, caso possível a cobrança de correção monetária, se o não pagamento dessa parcela acessória pode impedir a liberação das cláusulas resolutivas do título de propriedade referente à anterior aquisição de propriedade federal junto ao INCRA.
II. DESENVOLVIMENTO
É fundamental que se esclareça que, nesta manifestação, será analisada se é possível a cobrança de diferenças relacionadas à correção monetária, em razão da utilização, pela Administração Pública, de índices incorretos quando do cálculo das parcelas a serem pagas para a aquisição definitiva da propriedade dos imóveis rurais objeto dos títulos de propriedade com cláusulas resolutivas. PORTANTO, NÃO SERÁ TRATADO O INADIMPLEMENTO DAS PARCELAS PRINCIPAIS, MAS TÃO SOMENTE SE O INADIMPLEMENTO DA CORREÇÃO MONETÁRIA, EM RAZÃO DA APLICAÇÃO DE ÍNDICES INCORRETOS, PODERÁ OU NÃO IMPEDIR A LIBERAÇÃO DAS CLÁUSULAS RESOLUTIVAS DO TÍTULO DE PROPRIEDADE JUNTO À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA (pagamento das parcelas referentes ao imóvel adquirido).
Analisaremos a questão jurídica principal com um exemplo. Vamos imaginar um título de domínio emitido pelo INCRA em favor de MELVIO DE ARAÚJO, no qual ficou acordado o pagamento do preço mediante quatro parcelas iguais anuais no valor de Cr$ 200.000,00, com vencimento da primeira em 16/04/1991, já prevista a incidência anual de juros no percentual de seis por cento. Assim, percebe-se que as mesmas deveriam ter sido quitadas até o ano de 1994.
Assim, há uma cláusula resolutiva nesse título de propriedade emitido pelo INCRA consubstanciada no pagamento das quatro parcelas anuais.
A primeira parcela foi paga com mais de um mês de atraso, precisamente em 27/05/1991; no entanto, as demais parcelas, que venceriam nos anos seguintes, foram pagas integralmente na mesma ocasião, inclusive com a incidência dos juros anuais de 6%. Ressalto que o pagamento foi aceito pelo INCRA, sem ressalvas.
Com relação ao pagamento da primeira parcela, paga em atraso, ocorreu inadimplemento relativo da obrigação contratual, uma vez que foi devidamente aceita pela autarquia agrária e, por isso, deve reger-se pelos efeitos da mora.
Observe-se o teor dos artigos 389 e 395 do Código Civil que tratam do tema:
Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
Constata-se que, no caso em apreço, houve o inadimplemento relativo (mora) de uma das parcelas. Com efeito, na mora, a obrigação deixa de ser cumprida no lugar, tempo e modo devidos, mas, apesar disso, a sua execução continua possível e útil ao credor.
Nos casos em que há atraso no cumprimento da prestação, hipótese em que ela não é efetivada no tempo devido, deve-se aplicar os efeitos da mora para compensar os prejuízos e a desvalorização monetária. Dentre esses efeitos destaca-se a correção monetária.
Nesse sentido, como a questão posta em análise diz respeito apenas à incidência da correção monetária, outros efeitos da mora, tais como juros moratórios e compensatórios, não serão analisados. Apenas à guisa de informação, os juros não se confundem com a correção monetária, porque são extrínsecos ou adventícios; são frutos civis do capital ou frutos produzidos pelo capital. Portanto, a apuração dos juros leva em conta o capital, mas não como fator intrínseco.
Por seu turno, a correção monetária pode ser conceituada como medida de atualização da moeda, de modo a impedir que a mesma seja corroída pela inflação. Nesse sentido, a correção monetária imiscui-se no próprio principal; é uma entidade integrante do próprio principal. É, portanto, cláusula de readaptação da moeda cujo poder aquisitivo foi depauperado pela inflação.
Não resta dúvida de que a primeira parcela, paga com 42 dias de atraso, deveria sofrer a incidência de correção monetária, além dos juros moratórios. Entretanto, resta saber se a administração pública pode proceder a essa cobrança nos dias de hoje, com base em precedente do TCU proferido em caso análogo.
O primeiro ponto que deve ser observado diz respeito à legislação, relacionada à prescrição, que deverá ser utilizada para o caso concreto. Isso sucede em razão do pagamento feito a destempo ter sido efetuado em 27/05/1991, data em que ainda estava em vigor o Código Civil de 1916.
A situação traz claro caso de direito intertemporal, ou seja, situação em que há conflito aparente entre duas normas que podem disciplinar o caso concreto, uma revogada e outra revogadora (Código Civil de 1916 e Código Civil de 2002). Na situação específica, na qual o conflito de normas trata da fluência de prazos prescricionais, deve-se aplicar o art. 2.028 das disposições transitórias do novo Código Civil, in verbis:
Art. 2.028. Serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada.
Assim, se o prazo prescricional já estava correndo, a contagem é feita com base no art. 2.028. Se houver transcorrido menos da metade do prazo da lei velha, aplica-se o prazo da lei nova, com a contagem iniciada a partir da data em que entrou em vigor a atual codificação (11.01.2003). Se, por outro lado, tiver transcorrido mais da metade do prazo estabelecido na lei anterior, deve-se continuar aplicando o prazo prescricional previsto no CC/16, na sua totalidade.
Quanto à prescrição, a reiterada jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou-se no sentido de que é vintenária a prescrição nas ações individuais em que são impugnados os critérios de remuneração de valores (correção monetária) e são postuladas as respectivas diferenças no regime do Código Civil de 1916.
Com efeito, o disposto no art. 178, § 10, III, do Código Civil revogado diz respeito à prescrição, em CINCO ANOS, de juros e outras verbas acessórias, cobradas autonomamente e não conjuntamente com o principal e sobre ele incidentes. A parte correspondente à correção monetária não creditada, objeto do caso analisado, visa, apenas, manter a integridade do capital, não se tratando de parcela acessória, e os juros, incidentes sobre o principal não pago, no caso, recebem idêntico tratamento.
Portanto, com base em precedentes da Colenda Corte, quando se tratar de pretensões relacionadas à incidência de índices de correção monetária ocorridas no regime do Código Civil de 1916, o prazo prescricional para a cobrança dessas diferenças rege-se pelo prazo geral prescricional vintenário, previsto no art. 177 do revogado Código de Bevilaqua, in verbis:
Art. 177. As ações pessoais prescrevem, ordinariamente, em vinte anos, as reais em dez, entre presentes e entre ausentes, em quinze, contados da data em que poderiam ter sido propostas.
Corroborando as afirmações acima, colaciona-se julgado do STJ (AgRg no REsp 109098; 02/02/2010):
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. EMPRESA PÚBLICA. EXERCÍCIO DE ATIVIDADE ECONÔMICA. COMPETÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO. CADERNETA DE POUPANÇA. CORREÇÃO MONETÁRIA. PRESCRIÇÃO VINTENÁRIA. PRECEDENTES.
(...)
2. A jurisprudência desta Corte Superior possui entendimento no sentido de que se a empresa pública exerce atividade econômica não pode ser beneficiada com a prescrição quinquenal de que trata o Decreto-Lei n. 20.910/32.
3. É vintenária a prescrição dos juros devidos em virtude de aplicações em caderneta de poupança. Precedentes.
4. Agravo regimental improvido.
Portanto, o prazo prescricional que a Administração Pública dispõe para aplicar os índices de correção monetária, regidos pelo Código Civil de 1916, é de 20 anos. Superado esse primeiro ponto, passa-se à análise da aplicação do art. 2.028 do Código Civil de 2002, já que o caso concreto trata de prazo iniciado na vigência do Código Civil anterior, mas que ainda estava transcorrendo quando da entrada do novo diploma civilista (11.01.2003). Isso porque as pretensões ressarcitórias tiveram seu prazo prescricional reduzido pelo novo Código Civil em 03 anos.
Quando da entrada em vigor no Código Civil de 2002 (11/01/2003), o prazo prescricional vintenário já tinha transcorrido em mais da metade, uma vez que se iniciou em 28/05/1991, dia seguinte ao da data do pagamento da primeira parcela feito a destempo. Portanto, nos termos do art. 2.028 do CC/02, o prazo prescricional do presente caso deveria ser regido em sua totalidade pelo diploma civil revogado, extinguindo-se em 27/05/2011.
Com base na premissa acima, constata-se que o prazo prescricional que a Administração Pública possuía para cobrar as diferenças de correção monetária já se extinguiu, o que torna a cobrança dessas diferenças insubsistente, já que estamos no ano de 2016.
Ademais, não houve a incidência de nenhuma causa interruptiva da prescrição que tivesse o condão de reiniciar o prazo prescricional. Com efeito, o art. 172 do Código Civil revogado dispunha, in verbis:
Art. 172. A prescrição interrompe-se:
I. Pela citação pessoal feita ao devedor, ainda que ordenada por juiz incompetente.
II. Pelo protesto, nas condições do número anterior.
III. Pela apresentação do título de crédito em juízo de inventário, ou em concurso de credores.
IV. Por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor.
V. Por qualquer ato inequívoco, ainda que extra-judicial, que importe reconhecimento do direito pelo devedor.
A mera constatação do débito e a consequente cobrança administrativa por parte do credor fazendário, ocorrida em 2010, não teve o condão de interromper o prazo prescricional, notadamente por não se encaixar em nenhuma das hipóteses interruptivas previstas no art. 172.
Quanto à possibilidade da Administração Pública rever cálculos referentes à correção monetária, com base em julgado proferido pelo TCU em caso análogo, não há óbice algum. Com efeito, a Administração Pública é regida pelo princípio da autotutela. Esse postulado permite à Administração proceder à revisão de seus próprios atos, quando ilegais ou inconvenientes.
Convém observar as súmulas 346 e 473, ambas do Supremo Tribunal Federal, que tratam da referida diretriz administrativa:
Súmula 346 - A administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.
Súmula nº 473 - A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.
Assim, a Administração Pública, em razão do princípio da autotutela, tem o dever de zelo, tutela e cuidado tanto dos bens quanto dos interesses públicos. Disso compreende-se que é um dever do Poder Público invalidar, espontaneamente ou mediante provocação, o próprio ato contrário à sua finalidade, por ser ilegal.
No caso concreto, não há que se falar em anulação propriamente dita de ato administrativo, uma vez que ocorreu apenas a retificação de parcela acessória (correção monetária). Portanto, correta é a aplicação do prazo prescricional vintenário e não do prazo decadencial quinquenal que o Poder Público possui para anular atos eivados de ilegalidade, previsto no art. 54 da Lei nº 9.784/99.
Ademais, não se está buscando a anulação do título de propriedade expedido em 1991, mas apenas analisar a liberação ou não das cláusulas resolutivas. Não há, sequer, ato administrativo exarado para que se possa falar em anulação.
Ressalta-se, contudo, que essa retificação dos índices de correção monetária deverá, necessariamente, respeitar o prazo prescricional vintenário no caso em apreço. Nesse ponto, algumas observações são pertinentes.
Nos termos do que já foi dito anteriormente, a correção monetária, de fato, é obrigação acessória ligada diretamente à obrigação principal que, no caso, é o pagamento. Entretanto, o não pagamento dessa prestação acessória impede o adimplemento completo da obrigação principal e a sua regular quitação.
Portanto, se a correção monetária não foi cobrada pelos índices em vigor, ainda que essa não cobrança seja oriunda de um erro da Administração Pública, não há que se falar em adimplemento completo da cláusula resolutiva relacionada ao pagamento. Mas é clarividente que essa situação só ocorrerá caso o prazo prescricional vintenário ainda não tenha se exaurido. Caso contrário, não há que se falar em diferenças de correção monetária e, consequentemente, em inadimplemento da cláusula resolutiva (pagamento) do título de propriedade.
Ademais, caso a Administração Pública tenha dado quitação COMPLETA do valor pago, ainda que posteriormente seja constatada a incidência de índices incorretos de correção monetária, também não há como considerar o interessado inadimplente, em razão da aplicação analógica do art. 393 do CC/02, in verbis:
Art. 323. Sendo a quitação do capital sem reserva dos juros, estes presumem-se pagos.
Observa-se que o dispositivo legal supracitado adotou o princípio da gravitação jurídica, plenamente aplicável também à quitação da correção monetária. Com efeito, nos termos do princípio citado, o acessório segue o principal. Se houve a quitação do principal, sem reserva alguma da parcela acessória (correção monetária), presume-se sua quitação.
Entretanto, esse fato não impede que a Administração Pública anule o próprio ato de quitação, caso constate o erro nos índices de correção monetária utilizados nas parcelas objeto do título de propriedade, desde que dentro do prazo decadencial de cinco anos previsto no art. 54 da Lei de Processo Administrativo.
Assim, em casos concretos análogos ao presente, o INCRA ou o Ministério do Desenvolvimento Agrário, identificando o erro na aplicação dos índices de correção monetária no caso concreto, e CASO AINDA ESTEJA DENTRO DO PRAZO PRESCRICIONAL VINTENÁRIO, deverá efetuar a cobrança administrativa. Se o interessado não pagar a quantia cobrada, poderá a Administração Pública considerá-lo inadimplente, não liberando as cláusulas resolutivas do título de propriedade.
Ressalta-se que essa cobrança de diferenças de correção monetária, decorrente do poder de autotutela da Administração Pública, como afeta interesses individuais, não prescinde da observância do contraditório, ou seja, da instauração de processo administrativo que enseje a audição daquele que terá modificada a sua situação jurídica. Esse imperativo é necessário, inclusive, para dar oportunidade ao terceiro interessado de contestar os valores cobrados pela Administração Pública. Nesse sentido é a jurisprudência do STF, in litteris (RE 210916-RS):
EMENTA: - Recurso Extraordinário. 2. Ato administrativo de exclusão os quadros da Brigada Militar. 3. Acórdão que invocou o princípio da legalidade, afastando a inexistência de ofensa ao direito de ampla defesa. Nas circunstâncias do caso concreto, cumpria ter garantido ao servidor defender-se perante a Administração, em pretendendo esta excluí-lo de seu quadro de pessoal. 4. Agravo regimental a que se nega provimento.
Por fim, a retificação dos índices de correção monetária deve incidir apenas sobre o montante em atraso, e não sobre o valor total da propriedade.
Essa conclusão decorre em razão da correção monetária ser efeito do inadimplemento relativo (mora). Ora, se não houve inadimplemento do TOTAL das parcelas (as três últimas parcelas do exemplo dado foram pagas normalmente), pelo contrário, houve pagamento antecipado, não tem como se aplicar os índices de correção monetária em parcela quitada, inclusive, antes do prazo de vencimento.
A cobrança, nesses termos, acaba por desnaturar o próprio instituto da correção monetária, que pressupõe pagamento a destempo de dívida de valor. Na verdade, o administrado, ao pagar as três últimas parcelas de forma antecipada, sem o desconto da taxa de juros estipulada (6% ao ano) no título de propriedade em razão do parcelamento do valor total do título, pagou a maior, razão que constata, de forma patente, o erro na cobrança de correção monetária sobre as parcelas pagas antecipadamente pelo interessado.
É possível concluir, portanto, que não incide correção monetária nos valores pagos pelo beneficiário do título do exemplo dado (MELVIO DE ARAÚJO), em razão do exaurimento do prazo prescricional vintenário. Portanto, não é possível considerar o interessado inadimplente, para fins de liberação das cláusulas resolutivas do título de propriedade adquirido junto ao INCRA.
III - CONCLUSÃO
Diante do exposto, conclui-se, nos termos da fundamentação, que:
a) É possível a cobrança, pela Administração Pública, de índices de correção monetária, sobre o pagamento de parcelas pagas a destempo, com base no seu poder de autotutela;
b) O prazo para a cobrança desses valores deve respeitar o prazo prescricional de 20 anos previsto no Código Civil de 1916, desde que tenha transcorrido mais da metade desse prazo até a entrada em vigor do novo Código Civil (11.01.2003), nos termos da jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça, por não se tratar de anulação de atos administrativos;
c) A cobrança administrativa do débito por parte do Poder Público não tem o condão de interromper o prazo prescricional, contudo tem o condão de tornar o interessado inadimplente, impossibilitando a liberação das cláusulas resolutivas do título de propriedade;
d) Não é possível a exigência das diferenças de correção monetária pela Administração Pública, caso tenha sido dada quitação em razão do pagamento efetuado pelo interessado. Contudo, isso não impede a anulação desse ato (quitação), desde que respeitado o prazo decadencial quinquenal previsto no art. 54 da Lei nº 9.784/99;
e) A cobrança das diferenças relacionadas aos índices de correção monetária deve ser precedida da observância do contraditório e da ampla defesa, com o fim, inclusive, de propiciar a impugnação dos valores pelo interessado; e
f) A correção monetária não pode ser aplicada em parcelas pagas dentro do prazo acordado, ou pagas antecipadamente pelo administrado.