A aplicação da lei penal ao autor de infração penal não deve prescindir de uma investigação preliminar, levada adiante pela Polícia Judiciária (art. 144 da CF) e moldada por uma série de garantias que exsurgem da própria Constituição. Afinal, como já expusemos noutra oportunidade [1], o inquérito policial não é instrumento unidirecional, porquanto projeta dupla função: preservadora e preparatória [2]. A ausência de compromisso com a acusação ou a defesa permite ao delegado de polícia conduzir a apuração criminal (art. 2º, §1º da Lei 12.830/13) de modo a evitar futuras acusações infundadas, conciliando garantismo e efetividade.
De outro norte, é cediço que a Constituição Federal garante a diversos agentes públicos a prerrogativa de ser processado e julgado perante um Tribunal, excepcionando a regra geral de início do processo perante o juízo singular.
Parte dos estudiosos não enxerga inconstitucionalidade no foro por prerrogativa de função[3], pois a fixação de competência originária se justificaria pelo fato de o órgão colegiado possuir maior isenção e experiência do que as instâncias ordinárias, conferindo ao detentor de foro especial mais autonomia no desempenho de sua missão.[4]
Todavia, pesam sobre o instituto fortes críticas, na medida em que consistiria em outorga de maior valor à noção de autoridade do que ao princípio da isonomia, herança de uma legislação elitista, típica de regimes baseados no prestígio do poder e na proteção das pessoas mais abastadas.[5] Protegeria mais a pessoa do que o desempenho da função pública, ao se constatar que a competência penal não guarda necessária vinculação com o exercício das atribuições do cargo.[6] As estatísticas [7] das Cortes Superiores revelariam que o foro por prerrogativa de função incrementa a morosidade dessas investigações e processos, culminando na extinção da punibilidade e descrédito do sistema.[8]
Essa prerrogativa vem de longa data, tendo sido estabelecida em sede constitucional (embora com menor amplitude) desde a Carta Política de 1824. A realidade brasileira apresenta enorme quantidade de agentes albergados pelo foro por prerrogativa de função, beneficiados por uma Constituição extremamente generosa, que traz aproximadamente 20 hipóteses em seu texto,[9] situação praticamente sem paralelo no direito comparado.[10] Exatamente por isso não são poucas as propostas de emenda à Constituição tramitando no Congresso com o desiderato de extinguir ou restringir o foro especial.[11]
O constituinte originário consagrou o foro privilegiado na Constituição de 1988 por meio da expressão processar e julgar (não abrangendo o termo investigar). Nessa esteira, a prerrogativa de foro é critério exclusivo de determinação da competência originária do Tribunal, quando do oferecimento da denúncia ou, eventualmente antes dela, se se fizer necessária diligência sujeita à cláusula de reserva de jurisdição. Inexiste na Constituição Federal dispositivo demandando autorização judicial para a instauração de inquérito policial ou para o indiciamento do agente público com foro especial. Daí a percepção doutrinária:
Com a remessa da investigação ao Tribunal competente, não se exige a prévia concordância do órgão colegiado (Tribunal Pleno ou Corte Especial) como condição especial de procedibilidade.[12]
É dizer, a competência ratione personae não desloca para o Tribunal as funções de Polícia Judiciária. A remessa do inquérito policial em curso ao Tribunal competente para a eventual ação penal e sua imediata distribuição a um relator não o torna autoridade investigadora, mas apenas lhe comete as funções ordinariamente conferidas ao juiz de primeiro grau, na fase pré-processual das investigações.[13]
Outrossim, a instauração e inquérito policial para a apuração de fato em que se vislumbre a possibilidade de envolvimento de titular de prerrogativa de foro não depende de iniciativa do Chefe do Ministério Público. Tanto a abertura das investigações quanto o eventual indiciamento são atos da autoridade que preside o inquérito, a saber, o delegado de polícia.[14]
O sistema constitucional de divisão de atribuições e competências não pode ser subjugado pela legislação ordinária ou, muito menos, por normas regimentais. A competência legislativa para edição do próprio regimento interno não constitui carta em branco aos tribunais (art. 96, I, a da CF).
É uma garantia do cidadão que as diferentes funções no bojo da persecução penal sejam desempenhadas por autoridades distintas, evitando a concentração de poderes e o enfraquecimento do caráter democrático do sistema processual penal.[15] Não por outra razão já afirmou a Suprema Corte que a realização de inquérito é função que a Constituição reserva à polícia, e que permitir que o juiz se envolva pessoalmente na realização de diligências e formação de provas que possam posteriormente servir de base para o seu próprio julgamento compromete sua imparcialidade e consequentemente o princípio do devido processo legal.[16]
Nesse panorama, posicionar um juiz inquisidor para comandar um inquérito judicial consubstancia-se em inegável retrocesso, que rememora a malfadada figura do inquérito judicial de crimes falimentares[17]. De mais a mais, a investigação judicializada revela-se lenta e burocratizada, por diversos motivos: sobrecarga de competências dos tribunais, falta de vocação pela dinâmica investigativa, tendência a substituir a exigência de probabilidade pela certeza, certo grau de corporativismo, ausência de suficientes conhecimentos teóricos e práticos dessa atividade e falta de apoio de órgãos técnicos.[18]
Nesse sentido a precisa lição da doutrina:
Conquanto ostentando a prerrogativa de foro para processamento e julgamento dos crimes de que se vejam acusadas, nem por isto tais autoridades atraem para as Cortes a investigação criminal correlata, sendo de aplicar-lhes a regra geral da investigação em nosso sistema, que é a policial civil. (...) Logo, a ausência de norma atribuindo ao Poder Judiciário tal mister investigativo (qual sejam instaurar e instruir inquéritos) não significa senão uma omissão proposital do constituinte, que não poderia, por escapar às funções típicas dos Tribunais, cometer-lhes tarefas de investigação criminal, cabendo-lhes apenas o “processo e julgamento” de determinados delitos. [19]
Em acréscimo, mesmo nas investigações contra membros do Judiciário ou Ministério Público, a legislação infraconstitucional ordena a remessa das investigações ao órgão respectivo a partir do surgimento de indícios contra o juiz ou promotor, não impedindo a apuração criminal pelo órgão constitucionalmente vocacionado.[20]
Aliás, vedar contra certas categorias de pessoas o indiciamento não faz sentido, tendo em vista que se trata de ato privativo do delegado de polícia (art. 2º, §6º da Lei 12.830/13), e que não vincula a acusação ou o juízo.[21] Proibir o indiciamento é tão temerário quanto sua draconiana requisição, rechaçada pela doutrina e jurisprudência,[22] pois denota uma odiosa coação, forçando o presidente do inquérito a concluir de um ou outro modo.
O Superior Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de destacar o problema que representa a investigação interna corporis, ao rejeitar o pedido de arquivamento num caso envolvendo membro do Ministério Público:
Em um Estado Democrático de Direito, ninguém goza do privilégio de não ser investigado, quando lhe é apontado, com início de prova, o cometimento de ilícito. (...) A se seguir o entendimento do Ministério Público, cria-se um estamento social de privilegiados, haja vista que, embora acusados de prática de ilícitos criminais, deixa de ser investigado por entendimento isolado e sua base em fatos do Ministério Público.[23]
Ademais, as prerrogativas de foro não devem ser interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos,[24] que repele privilégios e não tolera discriminações.[25] Inflar artificialmente uma prerrogativa constitucional para blindar certas categorias de pessoas fere o republicanismo, que pressupõe a efetiva possibilidade de responsabilização de todos os agentes públicos por seus atos.[26]
Nessa linha os ensinamentos doutrinários:
A inclusão de magistrados (...) como dirigentes ou mesmo coordenadores/supervisores da fase investigatória afigura-se, a nosso sentido, uma incongruência, fomentando o desafio de ajustar-se esse tipo de investigação preliminar às linhas-mestras do Texto Constitucional. [27]
A Constituição Federal, ao regular a atividade de investigação de infrações penais, não estabeleceu qualquer restrição quando tiver por objeto fato em tese imputável a autoridade com foro por prerrogativa de função. (...) No tocante ao ato de indiciamento, (...) constitui um ato privativo do delegado de polícia, fruto do seu convencimento pessoal, e não de outro órgão. Logo, incabível a sua submissão à autorização do Poder Judiciário ou mesmo do Ministério Público, não somente pela falta de previsão legal nesse sentido, mas principalmente pela absoluta incompatibilidade desta manifestação com o papel que cada instituição desempenha dentro do sistema de justiça criminal.
(...) O “inquérito originário” (...) não tem qualquer previsão legal, seja na Constituição Federal ou na legislação infraconstitucional, e se traduz numa indesejada ampliação do foro por prerrogativa de função na Constituição Federal, para além do processo e julgamento da ação penal.[28]
Justamente por isso sempre prevaleceu a possibilidade de o delegado de polícia, independentemente de autorização judicial, instaurar inquérito policial contra detentor de foro especial, bem como indiciar o investigado.[29] O Supremo Tribunal Federal historicamente não vinha fechando os olhos a essas considerações.[30] Desafortunadamente, todavia, mudou seu posicionamento recentemente,[31] valendo-se de verdadeiro salto triplo carpado hermenêutico.[32]
Notas
[1] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Missão da Polícia Judiciária é buscar a verdade e garantir direitos fundamentais. Revista Consultor Jurídico, jul. 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jul-14/academia-policia-missao-policia-judiciaria-buscar-verdade-garantir-direitos-fundamentais>. Acesso em: 14 jul. 2015.
[2] Para minha satisfação, tais argumentos embasaram a mudança de posição do professor André Nicolitt (NICOLITT, André. Manual de processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 202), evidenciando que a moderna doutrina está atenta para a reflexão, cujos fundamentos remontam a autores clássicos (MENDES DE ALMEIDA, Joaquim Canuto. Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 11).
[3] Alguns autores evitam essa terminologia em razão de sua conotação pejorativa, preferindo a expressão foro por prerrogativa de função.
[4] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 470.
[5] SEMER, Marcelo. A síndrome dos desiguais. Boletim da Associação dos Juízes para a Democracia, ano 6, n. 29, jul./set. 2002, p. 11-12.
[6] HADDAD, Carlos Henrique Borildo. A dimensão do foro privilegiado. Revista dos Tribunais, ano 101, v. 942, out. 2012, p. 412. Exatamente por esse motivo o autor prefere o uso da expressão foro privilegiado, afirmando que foro por prerrogativa de função não passa de um jogo de palavras.
[7] Vale a leitura da pesquisa divulgada pela Associação dos Magistrados do Brasil. Disponível em: <http://www.amb.com.br/portal/docs/noticias/estudo_corrupcao.pdf> Acesso em: 10 abr. 2016.
[8] CAVALCANTI, Danielle Souza de Andrade e Silva. A investigação preliminar nos delitos de competência originária de tribunais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 7.
[9] Arts. 27, §1º, 29, X, 96, III, 102, I, b e c, 105, I, a e 108, I, a da CF.
[10] Só é possível encontrar amplitude semelhante nas Constituições da Espanha e Venezuela, conforme estudo apresentado pela Corte Suprema: STF, Inq 687, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 25/08/1999.
[11] PEC 130/2007, 168/2007, 470/2005, 78/2007, 119/2007, 174/2007, 484/2010, 142/2012, 182/2007, 18/2014 e 10/2013.
[12] CAZERTA, Therezinha Astolphi. Ação penal originária: apontamentos: reflexões. Revista RTF 3ª Região, São Paulo, v. 80, nov./dez. 2006, p. 25.
[13] STF, HC 82.507, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 10/12/2002; STF, RHC 84.903, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 04/02/2005.
[14] STF, Pet 3.825 QO, Rel. Min, Sepúlveda Pertence, DJ 11/04/2007.
[15] JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 322.
[16] STF, ADI 1570, Rel. Min. Mauricio Corrêa, DJ 12/02/2004.
[17] Decreto-Lei 7.661/45, revogado pela Lei 11.101/05.
[18] LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 83; FREITAS, Vladimir Passos de. Julgando os juízes. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 13, n. 154, set. 2005, p. 19; MELLO, João de Deus Cardoso de. O inquérito policial em face do Anteprojeto. Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal, Rio de Janeiro, v. 3, n. 9, abr./jun. 1965, p. 50.
[19] CAVALCANTI, Danielle Souza de Andrade e Silva. A investigação preliminar nos delitos de competência originária de tribunais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 122/123/136.
[20] Art. 33 da Lei Complementar 35/79. art. 18 da Lei Complementar 75/93 e arts. 40 e 41 da Lei 8.625/93.
[21] STJ, REsp 702.757, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 20/06/2005.
[22] STF, HC 115.015, Rel. Min. Teori Zavaski, DP 27/08/2013; NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 96.
[23] STJ, NC 358, Rel. Min. Ari Pargendler, DJ 20/04/2005. Nesse caso específico o alerta do Tribunal da Cidadania não foi suficiente, pois na sequêncai o Parquet consumiu mais de 3 anos e 2 meses do prazo prescricional de 4 anos do crime investigado, culminando na punibilidade (STJ, NC 358, Rel. Min. Ari Pargendler, DJ 15/02/2007).
[24] STF, Inq 687 QO, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 25/05/1999.
[25] STF, Inq 1.376 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 16/03/2007.
[26] ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 65.
[27] CAVALCANTI, Danielle Souza de Andrade e Silva. A investigação preliminar nos delitos de competência originária de tribunais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 5/6/114.
[28] BECHARA, Fábio Ramazzini. Juiz deve controlar legalidade de investigação criminal, não ser protagonista. Revista Consultor Jurídico, nov. 2015. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2015-nov-21/fabio-bechara-juiz-nao-protagonista-investigacao>. Acesso em: 22 nov. 2015.
[29] Para uma visão histórica da leitura jurisprudencial sobre o tema, vale a leitura de: GOMES, Rodrigo Carneiro. O inquérito policial na investigação parlamentar. Revista Brasileira de Direito Constitucional, n. 14, jul./dez. 2009.
No direito comparado, vale conferir: A PATERNOSTRO, María José Magaldi Paternostro. Procedimientos especiales y actuación de oficio del juez: análisis del procedimento especial para el enjuiciamiento de diputados y senadores. In: Cuadernos y Estudios de Derecho Judicial, San Sebastián: Consejo General del Poder Judicial, 1995, p. 7.
[30] STF, HC 80.592, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 22/06/2001; STF, RHC 84.903, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 04/02/2005; STF, Pet 3.825 QO, Rel. Min, Sepúlveda Pertence, DJ 11/04/2007.
[31] STF, Inq 2.411 QO, Rel Min. Gilmar Mendes, DJ 24/04/2008; STF, Rcl 23.457, Rel. Min. Teori Zavascki, DJ 31/03/2016.
[32] Expressão empregada pelo Min. Ayres Britto, do STF, durante o julgamento do RE 630.147, em 22/09/10.
Referências
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BECHARA, Fábio Ramazzini. Juiz deve controlar legalidade de investigação criminal, não ser protagonista. Revista Consultor Jurídico, nov. 2015. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2015-nov-21/fabio-bechara-juiz-nao-protagonista-investigacao>. Acesso em: 22 nov. 2015.
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