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Contas públicas sigilosas.

Um oxímoro inconstitucional em face dos Tribunais e Ministérios Públicos de Contas

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Agenda 20/05/2016 às 12:42

O artigo tem como objetivo estudar os poderes fiscalizatórios dos Tribunais e Ministérios Públicos de Contas e o acesso desses órgãos constitucionais de controle externo às contas bancárias destinadas à movimentação de recursos públicos.

Sumário: Introdução. 1. Contas bancárias públicas: conceito que abrange as contas de convênios e de outros repasses voluntários. 2. O princípio republicano e as contas públicas. 3. O dever de prestar contas: um Tribunal especializado para julgamento das contas públicas. 4. Ministério Público de Contas: procurador da sociedade na defesa do sistema Republicano. 5. A publicidade como imperativo da República. 6. Inexistência de sigilo bancário em contas públicas. Conclusão. Referências.

Introdução

Oximoro é uma figura de linguagem que consiste na junção, na mesma expressão, de duas palavras com sentidos contrários. “Silêncio eloquente”, “ilustre desconhecido”, “doce veneno”, eis alguns de seus exemplares mais famosos.

De regra, o oximoro é usado pelos poetas em sonetos[1] ou por compositores em canções. Sua vocação literária é nata, congênita, e sua admissão, por desafiar o raciocínio lógico, só pode dar-se metaforicamente, sob pena de recair em vício de linguagem ou em paradoxo.

No dia-a-dia do Controle Externo, um oximoro nada poético, carente de colorido metafórico, vez ou outra aparece como mais um obstáculo ao exercício da fiscalização dos Tribunais e Ministérios Públicos de Contas: a famigerada arguição de conta pública sigilosa. De fato, em plena República ainda há instituições financeiras que neguem acesso direto ao extrato bancário de contas públicas, sob a justificativa de sigilo bancário.

Este estudo visa destrinchar os poderes fiscalizatórios dos Tribunais e Ministérios Públicos de Contas e o acesso irrestrito desses constitucionais órgãos de controle às contas bancárias destinadas à movimentação de recursos públicos.

Para tanto, parte-se da definição de contas públicas, adotando-se uma definição mais ampla, escorada na natureza pública dos recursos envolvidos, e não necessariamente na qualidade pública do correntista. Em seguida, disserta-se sobre alguns dos fundamentos do princípio republicano como subsídio para as articulações que se seguem a respeito da publicidade inerente às contas públicas. Como o enfoque principal diz respeito às instituições de Controle Externo criadas notadamente para fiscalizar as contas públicas, são dedicadas generosas linhas aos Tribunais e Ministérios Públicos de Contas como fautores do sistema republicano, cuja análise sobre as contas bancárias públicas é vocacionada desde sua encarnação constitucional. Mostra-se, ao fim, que é descabido alegar sigilo bancário às contas públicas.

1. Contas bancárias públicas: conceito que abrange as contas de convênios e de outros repasses voluntários

Logo de início, cumpre advertir que contas públicas não são apenas as titularizadas por órgãos e entidades de direito público, mas também, e principalmente, aquelas que, embora tenham como titulares entidades de direito privado, são abertas para o fim único de receber e de administrar repasses de verbas públicas em razão da atividade administrativa de fomento e de subvenção social (ou até mesmo subvenção econômica).

Isto é, incluem-se no conceito de contas públicas as contas bancárias[2] que venham a movimentar dinheiro público vertido em prol de entidades do terceiro setor por instrumentos cooperativos, como o convênio[3], o contrato de gestão[4], o termo de parceria[5], ou, em especial, os termos de colaboração e os termos de fomento, a serem inaugurados com a entrada em vigor da Lei 13.019/2014[6];[7].

Não poderia ser diferente.

O que importa para a natureza pública da conta não é a qualidade estatal do correntista, mas sim o caráter público da verba empregada. Se os agentes do terceiro setor consensualmente aceitam gerir verbas públicas para o desempenho de suas atividades de interesse público, assumem a partir daí a condição de gestores públicos.

O critério que importa é o objetivo, referente à materialidade do dinheiro dispendido, e não o subjetivo, respeitante à natureza privada da pessoa responsável. Nessa toada, a Constituição não deixa margem para dúvidas no sentido de que quem se dispõe a dispender ou receber verba pública, ainda que sendo pessoa física ou privada[8], tem o dever de sobre ela prestar contas aos Tribunais de Contas, equiparando-os, para este fim, ao servidor de órgão ou entidade pública.

A título de reforço, cabe trazer à colação as palavras de João Eduardo Lopes Queiroz, que, deitando estudo sobre as parcerias voluntárias, assenta que a adesão ao fomento público provoca grandes potestades de controle estatal sobre o subvencionado:

A partir da adesão ao fomento, o controle por parte dos recursos destinados às Organizações Sociais, torna-se obrigatório por parte do Estado.  (...) Adotando similar orientação, Gaspar Ariño Ortiz afirma que da outorga de meios econômicos de fomento surge uma relação especial, já que o beneficiário se compromete à realização da atividade promovida e a Administração goza de amplas potestades de controle[9].

Mais enfático ainda é Geraldo Ataliba:

[...] em qualquer entidade, por mais privada, por mais caracteristicamente privada que seja, que se beneficie de incentivos, de investimentos, etc., está recebendo, ainda que indiretamente, dinheiro público; portanto não podem os seus gestores, a seu talante, agir com absoluta liberdade, porque estão sujeitos pelo menos ao regime de fiscalização de controle[10].

A amplitude de conceito é importante, uma vez que, com a derrocada do Estado Social a partir dos anos 80, sentida por nós mais claramente com a chegada da década de 90, o Estado redimensionou o seu nível de atuação, passando a preferir atuar indiretamente através da regulação e do fomento, ao invés do protagonismo na execução direta de diversos serviços de interesse público.

Multiplicou-se, portanto, a importância do fomento estatal e o vínculo de parceria do Poder Público com entidades privadas de interesse público, a revelar toda uma sorte de atuação pública não-estatal financiadas muitas vezes pelo orçamento público.

Como leciona Rafael Arruda Oliveira, “a atuação direta do Poder Público passa a ser substituída pela atuação indireta, mediante a assunção de um papel ajustador e sinergético, apto a desenvolver capacidades gerenciais nos diferentes atores sociais e a harmonizar as relações nos e entre os planos econômico e social” [11].

Neste cenário de desestatização do espaço público, é correto, para não dizer necessário, que sob o signo de contas públicas se entenda não apenas a titularizada por órgãos e entidades públicas, mas também as contas bancárias de pessoas privadas que movimentem recursos públicos de fomento para o exercício de atividades de interesse público.

Corroborando o aqui sustentado, a Lei de Acesso à Informação (Lei Federal 12.527/2011) fez questão de estender seus intuitos publicísticos “às entidades privadas sem fins lucrativos que recebam, para realização de ações de interesse público, recursos públicos diretamente do orçamento ou mediante subvenções sociais, contrato de gestão, termo de parceria, convênios, acordo, ajustes ou outros instrumentos congêneres”[12]

Equiparam-se, assim, para fins de controle e de publicidade, as contas bancárias titularizadas por pessoas de direito público e as contas bancárias que, embora pertencentes às pessoas privadas, venham a movimentar verba estatal em programa de interesse público.

2. O princípio Republicano e as contas públicas

O engano de se arguir sigilo bancário de contas públicas é latente.

Mais do que uma mera forma de governo, a República repousa na ideia de coisa do povo para o povo, daí a origem etimológica Res, coisa em latim, precedendo o publica, que não necessita de tradução para o português. A importância do princípio republicano é tão manifesta no sistema jurídico brasileiro que não foi à toa a opção constitucional de demarcá-lo logo no primeiro artigo[13] da Carta Cidadã, como que para fincar uma bandeira interpretativa a se irradiar por todo o sistema jurídico. Um símbolo a inspirar a leitura de tudo o que vem depois.

O Estado e os seus bens pertencem ao povo, são, por assim dizer, do povo e para o povo. Exatamente por isso que o povo é quem escolherá, através de sufrágio universal[14], os gestores do patrimônio estatal; e os administradores eleitos, por sua vez, serão meros servidores do interesse deste mesmo povo. Um vassalo da vontade pública.

Cícero já asseverava, nos idos do poderio romano, que “é, pois, a República, coisa do povo considerado como tal, não de todos os homens de qualquer modo congregados, mas a reunião que tem seu fundamento no consentimento jurídico e na utilidade comum”[15].

Demarcada que a República é inspiração ideológica de apropriação do Estado (e do seu patrimônio) pelos cidadãos, de sujeição do Estado à sociedade, é necessário reconhecer aos cidadãos e à sociedade civil organizada o instrumental necessário para fiscalizar se seus bens são geridos de acordo com a vontade geral, manifestada através do ordenamento jurídico.

Logo, decorre do Republicanismo uma série de posições ativas oferecidas a qualquer um dos cidadãos para o exato exercício da cidadania e a fiscalização do patrimônio público e do emprego das verbas públicas.

Bem falou sobre o assunto Carlos Ayres Britto:

Daqui se deduz que o típico do cidadão é se interessar por tudo o que é de todos. Sempre na perspectiva de servir ao todo social mesmo. O cidadão como símbolo da pessoa altruísta ou de alguém que veste a camisa da sociedade. Alguém que faz viagem de alma, e não viagem de ego. Tão socialmente participativo que no "Século de Péricles" (440-404 a.C.) se chegava a dizer: "Sou livre porque participo". E não "participo porque sou livre", como atualmente se fala. (...) É sob esse entendimento jurídico de cidadania que a nossa Constituição volta muitas vezes ao tema. E volta em sentido afirmativo ou de forte prestígio. Para fazer da cidadania um mecanismo de fiscalização, controle e acionamento do poder. Um necessário instrumento de cobrança, denúncia, representação, queixa... e também de colaboração, claro! O cidadão a vitalizar o lema de que "o preço da liberdade é a eterna vigilância" (frase que ninguém sabe ao certo se de autoria de Thomas Jefferson ou Stuart Mill). Ele totalmente livre para se informar, vigiar e cuidar, seja por conta própria, seja requestando as autoridades.[16]

Sustentam a mesma ideia Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento:

Mas o republicanismo vai muito além da defesa de uma forma de governo: envolve uma constelação de ideias que tem importantes repercussões práticas na definição de padrões adequados de comportamento para governantes e cidadãos. [...] No modelo republicano, o cidadão está enraizado em uma cultura pública que o estimula à participação ativa na vida da comunidade. O cidadão, neste quadro, não tem apenas direitos, mas também deveres em relação à sua comunidade política. Dá-se ênfase às “virtudes republicanas” dos cidadãos[17].

Nesse viés é que a Constituição Federal da República previu o direito de qualquer cidadão à informação de interesse público, o direito de petição para a defesa de direitos e contra ilegalidades ou abuso de poder, assim como a possibilidade de ajuizamento de ação popular que obste atos administrativos lesivos ao patrimônio e à moralidade pública[18], bem como a chance (ou dever!) de levar ao conhecimento dos Tribunais de Contas todas as irregularidades e ilegalidades que detiver notícia[19].

Trata-se de garantias constitucionais ao bom exercício da cidadania postas à disposição de qualquer do povo.

3. O dever de prestar contas: um Tribunal especializado para julgamento das contas públicas

Sabendo a Constituição Federal das complexidades que envolvem a realização da despesa pública, resolveu criar corpo técnico especializado para se debruçar acerca dos negócios públicos, outorgando a esse corpo o status de Tribunal. Daí nasceu a ideia de um Tribunal de Contas, cujo patrono em terras tupiniquins é nada mais nada menos que Ruy Barbosa.

A este Tribunal, além da missão de receber as denúncias populares acerca de irregularidades e ilegalidades, coube o julgamento das contas de todos aqueles que venham a gerir recursos públicos, como pujante decorrência de outro postulado fundamental do sistema republicano: o dever de prestar contas.

Na República, todos aqueles que venham a gerir recursos públicos têm o dever de prestar contas de sua gestão ao sistema de Controle Externo[20], titularizado pelo Poder Legislativo e exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas.

E no termo “auxílio” não se denote qualquer margem de subalternidade dos Tribunais de Contas em relação ao Legislativo, mas sim verdadeira de essencialidade. Tanto que as competências elencadas no extenso rol de incisos do art. 71 da Constituição Federal são todas da exclusiva competência dos Tribunais de Contas[21], sem possibilidade de intromissão e de revisão pelo Poder Legislativo. Inclusive, e segundo jurisprudência mais do que história do Supremo Tribunal Federal, sequer o Poder Judiciário pode imiscuir-se nos juízos definitivos sobre as contas proferidos pelos Tribunais de Contas[22].

Sobre a essencialidade dos Tribunais de Contas para o Controle Externo, assinalou o Ministro jubilado do STF, Carlos Ayres Britto:

De fato, a Constituição disse que o Poder Legislativo fizesse o controle externo dos administradores públicos, dos cargos, das receitas, dos bens, dos valores, dos dinheiros públicos, os Tribunais de Contas exercem com o auxílio, melhor dizendo, o Poder Legislativo exerce o controle externo com o auxílio dos Tribunais de Contas, mas “com o auxílio” aí, não significa um auxílio subalterno que haja entre o Poder Legislativo e os Tribunais de Contas, uma hierarquia funcional, não há subalternidade hierárquica. Essa expressão “com o auxílio dos Tribunais de Contas”, é enganosa. “Com o auxílio” quer dizer: o Congresso Nacional não pode controlar o Poder Executivo senão com o auxílio dos Tribunais de Contas. A mesma coisa, não pode haver jurisdição senão com a participação dos advogados e do Ministério Público, mas não há hierarquia entre juízes, promotores ou procuradores e advogados. A função é uma só, a função jurisdicional, que é desempenhada pelos juízes, necessariamente, pelos advogados e pelos membros do Ministério Público, sem hierarquia. A função de Contas, a função de controle externo é exercida pelo Congresso Nacional com o auxílio dos Tribunais de Contas, no caso o Tribunal de Contas da União, sem nenhuma hierarquia, sem nenhuma subalternidade[23].

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A importância de prestar contas é tanta no sistema constitucional que tal dever foi alçado a princípio sensível[24] apto a – no caso de descumprimento – dar início aos excepcionalíssimos processos de intervenção federal[25] e estadual[26].

Aqui nos valemos uma vez mais da elegância de Carlos Ayres Britto, que, em outro trabalho, assinalou a singular generosidade de prerrogativas a qual foi amealhado os Tribunais de Contas, em exata proporcionalidade com o vasto rol de responsabilidades que o mesmo constituinte o outorgou.

Nenhuma instituição pública foi tão generosamente contemplada pela Constituição como os Tribunais de Contas. Claro que o mesmo se pode dizer, desse apreço, do Poder Judiciário e do Ministério Público, ou seja, as três instituições públicas que em rigor não governam, mas que impedem o desgoverno, que não administram, mas impedem a desadministração foram contempladas, invulgarmente, de modo até generoso pela Constituição de 1988[27]

Não poderia ser de outra maneira.

Para o desencargo de deveres finalísticos vultosos, imprescindível o estabelecimento de poderes instrumentais equivalentemente abundantes, afinal, aos Tribunais de Contas se defere a missão de zelar por umas das balizas do sistema Republicano.

Revela-se, portanto, como verdadeiro Tribunal da República.

4. Ministério Público de Contas: procurador da sociedade na defesa do sistema Republicano

Para o sistema brasileiro de exercício da jurisdição, um Tribunal só é digno dessa denominação se, perante ele, oficiar um Ministério Público como órgão encarregado de representar a sociedade na formação do convencimento dos julgadores.

Com os Tribunais de Contas não restou diferente.

Previu a Constituição em seu art. 130 que perante os Tribunais de Contas, à maneira como ocorre com os Tribunais judiciários, funcionaria um Ministério Público próprio, dotado os seus membros dos mesmos direitos e deveres outorgados aos membros do Ministério Público atuante junto ao Poder Judiciário[28], na nítida e deliberada intenção de lançar como modelo aos Tribunais e Ministérios Públicos de Contas o perfil já estatuído ao Poder Judiciário e ao Ministério Público de justiça[29].

Uma espécie de espelho entre a dignidade e a estrutura do Poder Judiciário a refletir-se no Controle Externo, num recado do constituinte mais do que claro acerca do pareamento entre as instituições da Justiça e os Tribunais e Ministérios Públicos de Contas.

Estavam assim criados os Ministérios Públicos de Contas, que, segundo entendimento remansoso do STF, não se trata de mera procuradoria especializada do Ministério Público regular, mas entidade com verdadeira fisionomia própria[30], cujo acesso depende de concurso público específico, vedada a assunção de suas funções por membro do Ministério Público de Justiça[31].

Da análise das constitucionalmente nominadas “Funções essenciais à justiça”, percebe-se, com clareza, a criação de três grupos de procuradores constitucionais: o primeiro, composto pelos procuradores da sociedade, personificados no Ministério Público; o segundo, composto pelos procuradores dos entes federativos, representados pela Advocacia Pública[32], e o terceiro, composta pelos procuradores dos necessitados, encarnados na Defensoria Pública[33].

Assim, os membros do Ministério Público de Contas são os advogados da sociedade com procuração subscrita pelo constituinte e com a missão de zelar, no âmbito dos Tribunais de Contas, pela defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos direitos sociais e individuais indisponíveis, gozando para tanto de plena garantia de independência funcional[34], “nela compreendida a plena independência perante os poderes do Estado, a começar pela Corte a qual junto oficiam”[35].

A norma equiparatória do art. 130 da Constituição federal é verdadeira “cláusula de garantia para a atuação independente do Parquet especial junto aos Tribunais de Contas. Trata-se de modelo heterônomo estabelecido pela própria Carta Federal que possui estrutura própria de maneira a assegurar a mais ampla autonomia de seus integrantes”[36].

A presença de um Ministério Público com ofício perante os Tribunais de Contas é tão, ou até mais importante, que a presença do Parquet perante os Tribunais judiciários, haja vista que as Cortes de Contas têm composição peculiar, não se exigindo obrigatoriamente de seus julgadores formação jurídica (diferentemente do Poder Judiciário), razão pela qual a função de fiscal do Direito no âmbito do Controle Externo recai com ainda mais vigor sobre os Ministérios Públicos de Contas, na medida que são o único corpo essencialmente jurídico numa jurisdição de contas de moldura interdisciplinar[37].

Imprescindível essa Procuratura de Contas.

De nada adiantaria regalar os cidadãos com uma série de prerrogativas ativas de fiscalização se não houvesse quem encampasse o interesse público e social perante os Tribunais de Contas, patrocinando a causa pública com todo o esmero que a boa técnica jurídica exige, e que, via de regra, é inacessível a qualquer do povo.

Ademais, em país de pouca tradição republicana que se reflete na ínfima participação ativa dos cidadãos nos negócios púbicos (deitados eternamente em berço esplêndido), a criação de uma instituição técnico-jurídica destinada a promover, de ofício, a persecução do interesse público e social junto aos Tribunais de Contas, acaba por compensar um pouco a endêmica letargia dominante dos cidadãos brasileiros, potencializando a funcionalidade do Sistema de Controle Externo, e justificando a própria existência de um Tribunal de Contas.

Compete, assim, fundamentalmente aos Ministérios Públicos de Contas provocar as atividades fiscalizatórias e judicantes dos Tribunais de Contas, bem como municiar-lhes do melhor arsenal do direito para que as decisões sejam as mais juridicamente perfeitas, representando, exatamente como um advogado da sociedade, os interesses da sua clientela na jurisdição de contas.

Sobre o protagonismo do Ministério Público de Contas na missão de submeter os Poderes Públicos à lei, são benfazejas as palavras do Ministro Celso de Mello:

É indisputável que o Ministério Público ostenta, em face do ordenamento constitucional vigente, especial posição na estrutura do Poder estatal. A independência institucional constitui uma das mais expressivas prerrogativas político-jurídicas do “Parquet”, na medida em que lhe assegura o desempenho, em toda a sua plenitude e extensão, das atribuições a ele conferidas. O Ministério Público não constitui órgão ancilar do Governo. É-lhe estranha, no domínio de suas atividades institucionais, essa função subalterna. A atuação independente dessa Instituição e do membro que a integra impõe-se como exigência de respeito aos direitos individuais e coletivos e delineia-se como fator de certeza quanto a efetiva submissão dos Poderes a lei e a ordem jurídica (grifo nosso) [38].

Todas essas prerrogativas constitucionais conferidas aos Tribunais e Ministérios Públicos de Contas estão marcadas e impregnadas com as grossas tintas da natureza republicana do Estado Brasileiro, já que são ancilares a um efetivo controle social dos atos do poder público, podendo-se dizer, sem medo de errar, que ambas as instituições são vocacionadas a possibilitar o direito fundamental à uma administração pública proba e honesta, pelo que são laureadas como verdadeiras instituições pétreas do Estado brasileiro, impassíveis de abolição ou esmaecimento.[39]

5. A publicidade como imperativo da República

De mais a mais, também é a Constituição de 88 que promoveu a um dos princípios reitores da atividade administrativa o da publicidade, impondo ao Estado o dever de deixar às claras, para quem quiser ver, cada passo da atuação administrativa.

A publicidade na gestão da coisa pública é o terceiro postulado da República. Afinal, se a República professa a ideia de coisa pertencente ao povo, é mais que natural que o proprietário, e as instituições de controle, tenham acesso a tudo quanto disser respeito à boa gestão de seu patrimônio.

Martonio Mont´Alverne Barreto Lima[40], reportando-se a Kant, anota o seguinte:

E é em Kant que se consolida um segundo elemento a integrar a noção de República, a permanecer até hoje como desafio das sociedades: a exigência da publicidade como requisito essencial do governo republicano: “Todos os atos respeitantes ao direito de outros homens, cuja máxima não é compatível com a publicidade, são injustos”. (KANT, Immanuel. Zum ewigen Frieden: ein philosopischer Entwurf. Darmstadt, p. 204).

A transparência possibilita uma espécie de direito de sequela ao patrimônio público, tomando aqui por emprestado – com as devidas adaptações – o consagrado instituto do direito civil: onde quer que esteja, com quem quer que esteja e como estiver, os cidadãos diretamente[41], ou por intermédio do Ministério Público de Contas[42], têm o direito de defender o erário de achaques e desfalques perante os Tribunais de Contas. E para tanto, cidadãos e instituições de controle poderão exigir o manancial informativo necessário para subsidiar suas ações, em especial extratos bancários de contas públicas.

Vê-se que o dever de publicidade administrativa é, antes de tudo, a outra faceta do direito público subjetivo à transparência pública, e trata-se de uma lógica que o princípio republicano já faria por obrigar, mas que preferiu o constituinte repetir e deixar tatuada no caput do art. 37 da Constituição[43], infenso a qualquer investida de intérpretes constitucionais menos atentos.

O dever de publicidade é, por assim dizer, como pegadas deixadas no chão, sempre passíveis de rastro por todos aqueles que tenham interesse em desvendar os caminhos tomados pelo gestor público.

Se na República Brasileira impera o princípio da publicidade, a negativa de fornecer cópias do extrato bancário de contas públicas só poderia mostrar-se plausível nos casos em que algum outro princípio cuja ponderação levada a cabo no caso em concreto fizesse por impor o segredo.

Como assinalam Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco:

O exercício da ponderação é sensível a ideia de que, no sistema constitucional, embora todas as normas tenham o mesmo status hierárquico, os princípios constitucionais podem ter “pesos abstratos” diversos. Mas esse peso abstrato é apenas um dos fatores a ser ponderado. Há de se levar em conta, igualmente, o grau de interferência sobre o direito preterido que a escolha do outro pode ocasionar.[44]

Com efeito, quando se trata da gestão do patrimônio público, a Constituição da República determinou inequívoca prioridade abstrata e prima facie ao princípio da publicidade, haja vista seu agudo grau de fundamentalidade e de republicanismo.

Neste viés, o afastamento da publicidade da gestão pública faz por demandar ônus argumentativo robusto e minudente. Para tanto, e antecipando ponderações possíveis, a própria Constituição só previu um princípio capaz de mitigar a publicidade das contas públicas: o princípio da segurança nacional.

É de meridiana clareza o art.5º, XXXIII, da Constituição, quando estabelece que “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado” (grifo nosso).

De certa forma, possíveis contraste de princípios nas circunstâncias envolvendo dispêndio de recursos públicos já foi objeto de antecipada valoração pelo constituinte: a publicidade só pode ceder diante de um perigo real à segurança nacional, jamais em nome da privacidade. Até mesmo Bobbio, conhecido defensor dos princípios republicanos e democráticos, admitia exceção à publicidade em questões que revelassem imperativos de segurança pública:

O segredo, o poder que se esconde, portanto, apresenta incompatibilidade essencial com a República, porém não de forma absoluta, na medida em que a segurança do Estado e da democracia, não raro, necessita do segredo para sua manutenção. Desde que esta última possibilidade esteja prevista na lei, resultante de um processo democrático desse modo disposta para os momentos especiais da vida em sociedade, inexiste, aqui, incompatibilidade com a democracia e com a República[45].

Por ser a publicidade a ordem, e a exceção o sigilo, a alegação de imperativos de segurança nacional deverá ser acompanhada de robusta prova nesse sentido, em inversão de ônus a recair sobre a autoridade arguente do segredo, cuja êxito vai depender a aposição de acesso restrito às contas públicas.

O segredo, no entanto, só funcionará em face dos cidadãos em geral.

A ressalva à publicidade na circunstância de imperativo da segurança apenas restringe o acesso ao público em geral, jamais obstaculizando o acesso a quem tem o encargo de fiscalizar e julgar as contas públicas nacionais.

Assim, no tocante aos Tribunais e Ministérios Públicos de Contas, órgãos do Controle Externo que são, de extração e estatura constitucionais, sequer é possível negar acesso a extratos bancários com base no princípio da segurança nacional.

Do contrário, sob a rubrica de despesas relacionadas com a segurança nacional, estaria franqueado um largo vácuo fiscalizatório – verdadeiro bill de indenidade –, possivelmente a ser preenchido por interesses escusos e locupletamento ilícito. Um cheque em branco não previsto e repudiado pela Constituição da República.

É claro, no entanto, que nessa hipótese, a posse de dados relacionados à segurança nacional por parte dos órgãos de controle deverá cercar-se de maiores cuidados, preservado o sigilo que envolve as informações, sob pena de responsabilidade funcional do infrator.

A rigor, não se trata de negar à sociedade o acesso aos dados sigilosos, mas de tão-somente frear sua disponibilidade direta, fazendo por filtrá-lo através dos Tribunais e Ministérios Públicos de Contas, que assumirão, nesse papel, a percepção única do corpo social sobre o emprego dos recursos públicos sigilosos.

Serão seus olhos e ouvidos.

6. Inexistência de sigilo bancário em contas públicas

Deste caldeirão republicano, onde lançamos notas sobre apropriação do Estado pelo povo, sobre o dever de prestar contas, sobre a criação de robustos órgãos de controle, e sobre a prevalência imanente do princípio da publicidade, mostra-se redondamente equivocado trazer à tona considerações sobre os princípios da intimidade e privacidade[46], vistos sob o pálio do sigilo bancário,[47] como obstaculizador ao acesso às contas públicas. Seja o acesso em prol de qualquer do povo, seja em prol principalmente dos Tribunais e Ministérios Públicos de Contas.

Além da Constituição ter admitido apenas o princípio da segurança nacional como mitigador da publicidade, nem a golpes de duros de interpretação é possível cogitar-se de intimidade e de privacidade no tocante à gestão da coisa pública.

Se há pretensão de buscar a satisfação de interesses íntimos e particulares, ou de gozar vantagens inconfessáveis à salvaguarda dos olhos de todos, de certo que não será o caso de fazê-lo com o patrocínio do orçamento estatal.

Aqui cabe revitalizar as longas lições gregas de divisão entre o espaço privado e público que cada cidadão carrega consigo.

No campo de seus negócios privados, de certo que restará infenso a qualquer órgão de controle requisitar diretamente às instituições financeiras dados bancários de quem quer que seja. Há nítida reserva de jurisdição a fazer por acionar obrigatoriamente o Poder Judiciário e a quebra do sigilo bancário.

As conclusões e os contornos são outros quando o agente atua, não no seu espaço privado, mas sim no ambiente público de gestor de recursos da sociedade ou na de beneficiário de financiamento público. Aqui sua conduta diz respeito à esfera pública de sua personalidade, inundada de todo controle que se possa dispor, e disponível de apuração e persecução diretas por qualquer do povo e suas representativas de controle.

Acerca do assunto, leia-se Luís Roberto Barroso:

O espaço público, por sua vez, é fruto da transição da sociedade civil para a sociedade política, da conversão do indivíduo em cidadão. Este é o domínio da opinião pública, dos meios de comunicação, do debate, dos processos informais e formais de deliberação e de participação política. Como assinalado, o marco histórico – talvez simbólico – de sua existência costuma ser identificado na experiência com a cidade-Estado grega, notadamente Atenas. A partir de então, todo cidadão passa a pertencer a duas ordens de existência: além de sua vida particular, privada, toma parte também na vida política, com o estabelecimento da distinção entre o que é seu próprio e o que diz respeito a todos. O jardim e a praça, em uma imagem poética.[48]

De certo, não caberá, em regra, explicações do cidadão acerca suas atitudes nos jardins de sua casa. Mas quando assume posturas e ações na praça pública, sua conduta é posta ao escrutínio e julgamento da pólis.

É por isso que se torna absolutamente impróprio arguir intimidade e sigilo bancário em contas públicas.

Ademais, não é imaginável que a Constituição e o Supremo Tribunal Federal tenham constantemente rendido homenagens aos Tribunais e Ministérios Públicos de Contas, recheando-lhes de prerrogativas instrumentais equiparáveis aos seus congêneres do Poder Judiciário e Ministério Público de Justiça, para empós amputar-lhes o acesso às contas que nasceram para curar.

Trazer à tona ilações sobre privacidade e intimidade, e, por consequência, de sigilo bancário em contas públicas, é um oxímoro imprestável. Sigilo e contas públicas são termos antagônicos que não rimam, não fazem verso, nem graça. Aqui se passa da figura de linguagem para o vício, degenerando a metáfora em paradoxo intransponível.

Aliás, sequer é o caso de afirmar que o princípio da publicidade sobressai, num exercício de ponderação, à garantia do sigilo bancário. Isso porque a cláusula do sigilo bancário, tributária que é do princípio da intimidade, aplica-se, como visto, apenas nos negócios privados das pessoas (no jardim), jamais no trato que essas mesmas pessoas dão à coisa pública (na praça).

O que ocorre, portanto, não é uma ponderação em que sobressai o princípio da publicidade. Na verdade, faz-se por reconhecer que dentro do núcleo de proteção da cláusula constitucional de proteção à intimidade não está abrigado o sigilo bancário de contas públicas.

Em português simples: da mesma maneira que a liberdade de expressão não comporta em seu âmago protetivo discursos de ódio[49], com muito mais razão o princípio da intimidade não abriga em seu círculo de proteção o sigilo das contas bancárias públicas.

É impróprio, assim, falar de “quebra” do sigilo bancário nas requisições dos Tribunais e dos Ministérios Públicos de Contas de extratos de contas públicas, pois se trata de mero reconhecimento da inexistência de sigilo. A bem da verdade, não haverá “quebra” de sigilo alguma, mas apenas acesso direto do que deve estar às claras e disponível ao público. Não se quebra o que sigilo que não existe.

 Exatamente por não existir sigilo é que não se cogita de dar aplicação à Lei Complementar 105/2004. Exatamente por não existir sigilo é que não se demanda autorização judicial prévia. Exatamente por não existir sigilo é que qualquer um do povo, ou, em especial, as instituições de controle, podem requisitar os extratos bancários diretamente às instituições financeira, cuja alternativa não possuem, senão enviá-los, sob pena de vir a sofrer as sanções penas e administrativas cabíveis.

Há, inclusive, decisão pedagógica do Supremo Tribunal Federal atestando a impropriedade do Banco do Brasil, sob a justificativa de sigilo bancário, negar fornecimento de dados de empréstimos bancários, subsidiados pela União, e requisitados diretamente ao Banco pelo Ministério Público Federal[50].

No teor do acórdão, cuja ementa segue adiante, decidiu o STF que era descabido alegar sigilo bancário porque “os empréstimos concedidos eram verdadeiros financiamentos públicos, porquanto o Banco do Brasil os realizou na condição de executor da política creditícia e financeira do Governo Federal [...]”[51].

Eis a ementa do acórdão pretoriano:

Mandado de Segurança. Sigilo bancário. Instituição financeira executora de política creditícia e financeira do Governo Federal. Legitimidade do Ministério Público para requisitar informações e documentos destinados a instruir procedimentos administrativos de sua competência. 2. Solicitação de informações, pelo Ministério Público Federal ao Banco do Brasil S/A, sobre concessão de empréstimos, subsidiados pelo Tesouro Nacional, com base em plano de governo, a empresas do setor sucroalcooleiro. 3. Alegação do Banco impetrante de não poder informar os beneficiários dos aludidos empréstimos, por estarem protegidos pelo sigilo bancário, previsto no art. 38 da Lei nº 4.595/1964, e, ainda, ao entendimento de que dirigente do Banco do Brasil S/A não é autoridade, para efeito do art. 8º, da LC nº 75/1993. 4. O poder de investigação do Estado é dirigido a coibir atividades afrontosas à ordem jurídica e a garantia do sigilo bancário não se estende às atividades ilícitas. A ordem jurídica confere explicitamente poderes amplos de investigação ao Ministério Público - art. 129, incisos VI, VIII, da Constituição Federal, e art. 8º, incisos II e IV, e § 2º, da Lei Complementar nº 75/1993. 5. Não cabe ao Banco do Brasil negar, ao Ministério Público, informações sobre nomes de beneficiários de empréstimos concedidos pela instituição, com recursos subsidiados pelo erário federal, sob invocação do sigilo bancário, em se tratando de requisição de informações e documentos para instruir procedimento administrativo instaurado em defesa do patrimônio público. Princípio da publicidade, ut art. 37 da Constituição. 6. No caso concreto, os empréstimos concedidos eram verdadeiros financiamentos públicos, porquanto o Banco do Brasil os realizou na condição de executor da política creditícia e financeira do Governo Federal, que deliberou sobre sua concessão e ainda se comprometeu a proceder à equalização da taxa de juros, sob a forma de subvenção econômica ao setor produtivo, de acordo com a Lei nº 8.427/1992. 7. Mandado de segurança indeferido[52].

Por sinal, o Supremo Tribunal Federal, apreciando a questão da publicidade da remuneração dos servidores públicos, espancou qualquer sorte de argumentos em favor da intimidade e da privacidade quando se estiver a tratar de dispêndio de verbas públicas.

A Corte Excelsa fez questão de afirmar que apenas imperativos de segurança nacional seriam capazes de fazer prevalecer o segredo em detrimento da publicidade no dispêndio de verba pública:

SUSPENSÃO DE SEGURANÇA. ACÓRDÃOS QUE IMPEDIAM A DIVULGAÇÃO, EM SÍTIO ELETRÔNICO OFICIAL, DE INFORMAÇÕES FUNCIONAIS DE SERVIDORES PÚBLICOS, INCLUSIVE A RESPECTIVA REMUNERAÇÃO. DEFERIMENTO DA MEDIDA DE SUSPENSÃO PELO PRESIDENTE DO STF. AGRAVO REGIMENTAL. CONFLITO APARENTE DE NORMAS CONSTITUCIONAIS. DIREITO À INFORMAÇÃO DE ATOS ESTATAIS, NELES EMBUTIDA A FOLHA DE PAGAMENTO DE ÓRGÃOS E ENTIDADES PÚBLICAS. PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE ADMINISTRATIVA. NÃO RECONHECIMENTO DE VIOLAÇÃO À PRIVACIDADE, INTIMIDADE E SEGURANÇA DE SERVIDOR PÚBLICO. AGRAVOS DESPROVIDOS. 1. Caso em que a situação específica dos servidores públicos é regida pela 1ª parte do inciso XXXIII do art. 5º da Constituição. Sua remuneração bruta, cargos e funções por eles titularizados, órgãos de sua formal lotação, tudo é constitutivo de informação de interesse coletivo ou geral. Expondo-se, portanto, a divulgação oficial. Sem que a intimidade deles, vida privada e segurança pessoal e familiar se encaixem nas exceções de que trata a parte derradeira do mesmo dispositivo constitucional (inciso XXXIII do art. 5º), pois o fato é que não estão em jogo nem a segurança do Estado nem do conjunto da sociedade. 2. Não cabe, no caso, falar de intimidade ou de vida privada, pois os dados objeto da divulgação em causa dizem respeito a agentes públicos enquanto agentes públicos mesmos; ou, na linguagem da própria Constituição, agentes estatais agindo “nessa qualidade” (§6º do art. 37). E quanto à segurança física ou corporal dos servidores, seja pessoal, seja familiarmente, claro que ela resultará um tanto ou quanto fragilizada com a divulgação nominalizada dos dados em debate, mas é um tipo de risco pessoal e familiar que se atenua com a proibição de se revelar o endereço residencial, o CPF e a CI de cada servidor. No mais, é o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado republicano. 3. A prevalência do princípio da publicidade administrativa outra coisa não é senão um dos mais altaneiros modos de concretizar a República enquanto forma de governo. Se, por um lado, há um necessário modo republicano de administrar o Estado brasileiro, de outra parte é a cidadania mesma que tem o direito de ver o seu Estado republicanamente administrado. O “como” se administra a coisa pública a preponderar sobre o “quem” administra – falaria Norberto Bobbio -, e o fato é que esse modo público de gerir a máquina estatal é elemento conceitual da nossa República. O olho e a pálpebra da nossa fisionomia constitucional republicana. 4. A negativa de prevalência do princípio da publicidade administrativa implicaria, no caso, inadmissível situação de grave lesão à ordem pública. 5. Agravos Regimentais desprovidos[53] (grifo nosso).

A própria Procuradoria-Geral do Banco Central[54], autarquia responsável pela regulação do Sistema Financeiro Nacional, manifestou-se pelo descabimento em suscitar sigilo bancário em contas de repasses públicos:

[..] a proteção legal do sigilo bancário não socorre as operações realizadas mediante a utilização de recursos titulados, subsidiados ou repassados pela Administração Pública, cuja atuação é regida pelos princípios da publicidade e da moralidade, ambos de índole constitucional e, portanto, aptos a subjugar interesses secundários, nessa área de domínio, relativos à intimidade dos beneficiários, eis que voltados para a realidade subalterna de natureza privada.

Assim decantado o objeto da controvérsia sob o prisma da supremacia do interesse público, à luz dos princípios da publicidade e da moralidade, com abrigo em cláusula constitucional tenho como imperiosa a conclusão de que as operações ativas, e passivas realizadas por instituições financeiras, mediante a utilização de recursos públicos, em qualquer das esferas de poder estatal, não se encontram sujeitas à incidência da Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001, podendo a elas ter acesso, sem a necessidade de intervenção judicial, os órgãos constitucionalmente investidos de poderes de fiscalização e controle, nos limites de sua competência especifica [...].

Em igual sentido, o Tribunal de Contas da União tem uma miríade de decisões impondo a disponibilização dos extratos bancários de contas públicas aos órgãos de controle, valendo-se até mesmo de penalidades pecuniárias para fazer valer seus poderes fiscalizadores:

Convênio e Congêneres. Execução financeira. Sigilo bancário.

As contas bancárias específicas para movimentação de recursos públicos descentralizados pela União não se relacionam à intimidade ou à vida privada de qualquer pessoa, tampouco representam o patrimônio daqueles encarregados de geri-los. Assim, tais contas não se sujeitam ao sigilo bancário de que cuida a Lei Complementar 105/01, de maneira que as informações nelas contidas, por se tratar de patrimônio público, não podem ser sonegadas aos Órgãos que, por missão constitucional e legal, exercem os controles interno e externo sobre os referidos recursos. A sonegação de informações relativas a contas bancárias específicas de ajustes com a União, por consistir em obstrução indevida ao exercício dos controles interno e externo, é considerada falta de natureza grave, sujeitando os responsáveis, além da aplicação de penalidades, à medida cautelar de afastamento temporário do cargo, conforme previsto no art. 44 da Lei 8.443/92[55].

Competência do TCU. Acesso à informação. Sigilo.

As informações sobre operações financeiras que envolvam recursos públicos não estão abrangidas entre aquelas protegidas pelo sigilo bancário, visto que operações da espécie estão submetidas aos princípios constitucionais da Administração Pública. É prerrogativa do Tribunal o acesso a informações relacionadas a essas operações, independentemente de autorização judiciária ou legislativa[56].

Competência do TCU. Sigilo bancário. Financiamentos públicos.

Não cabe opor sigilo bancário às solicitações de informações do Tribunal acerca de operações financeiras relacionadas ao financiamento público de concessões de serviços públicos e de obras públicas[57].

Como que para pôr uma pá de cal no assunto, recentíssimo acórdão do Supremo Tribunal Federal, firmado por sua primeira turma nos autos do MS 33.340/DF[58], trouxe importantes conclusões, atestando de vez que “operações financeiras que envolvam recursos públicos não estão abrangidas a que alude a Lei Complementar nº 105/2001, visto que as operações dessa espécie estão submetidas aos princípios da administração pública”, para mais adiante assentar que nessas circunstâncias, “é prerrogativa constitucional do TCU o acesso a informações relacionadas a operações financiadas com recursos públicos.”

O que foi fincado pelo Supremo Tribunal Federal é exatamente o que viemos a defender ao longo desse estudo: a inoponibilidade de sigilo bancário e empresarial ao controle externo quando as operações bancárias das entidades privadas estiverem fundadas em recursos de origem pública.

O Supremo foi cuidadoso em traçar a distinção dessa hipótese, com aqueloutras tratadas no bojo dos MS 22.801 e MS 22.934, quando o Tribunal de Contas da União havia requisitado informações bancárias de terceiros que não receberam diretamente recursos ou financiamento estatal. Nessas últimas hipóteses, a existência de sigilo bancário é clarividente, restando incompossível a qualquer Corte de Contas sua quebra por via direta, sem prévio acesso ao judiciário.

Tudo resta distinto quando o acesso aos extratos bancários disser respeito diretamente à conta bancária de entidade privada que granjeou-se de dinheiro público. Quem aceitou receber verba estatal de fomento, estará cingido a uma relação especial de sujeição administrativa (e seus inatos controles), no exato instante que anuiu aderir ao regime público de seu parceiro estatal, seja pela subscrição de convênios, seja por qualificar-se como Organização Social/ Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), ou seja, por fim, sociedade empresária mutuária de financiamento público.

Não deixa de ser emblemática a fala do Ministro Marco Aurélio nos autos:

Não podemos imaginar que, para fiscalizar recursos públicos, dependa o Tribunal de Contas da União da burocratização na obtenção de informações, tendo que recorrer ao Judiciário, para que autorize algo que já está autorizado, sem peias, na própria Lei das leis do País, que é a Constituição Federal.

Se decidiu o Supremo Tribunal Federal pela inoponibilidade de sigilo bancário em operações financeiras que envolvam financiamento público, cuja os matizes de sigilo empresarial vêm à tona com muita eloquência, com muito mais razão será a inoponibilidade do sigilo bancário de conta bancárias recebedoras de verbas de convênios ou quaisquer outras parcerias públicas, em que os destinatários sequer são sociedades empresárias, mas sim entidades civis de interesse social e, no qual, as finalidades do repasse são inundadas de interesse público.

Por fim, mas não menos importante, é a própria Lei de Acesso à Informação, já citada em linhas pretéritas, que reafirma, no tocante às entidades de direito privada parceiras do Estado, a imperiosa transparência de tudo que disser respeito “à parcela dos recursos públicos recebidos e à sua destinação, sem prejuízo das prestações de contas a que estejam legalmente obrigadas”[59].

Mais à frente, a mesma lei deixa manifesto que o acesso à informação compreende o direito de obter “informação pertinente à administração do patrimônio público, utilização de recursos públicos, licitação, contratos administrativos.”[60]

A reafirmação legal da publicidade das contas públicas é redundante, mas que se mostra um reforço oportuno e conveniente diante das peripécias jurídicas que vez ou outra surgem para obstaculizar a fiscalização dos recursos públicos.

Conclusão

A costumeira negativa por parte de instituições financeiras em fornecer o extrato de contas bancárias de convênios ou outros ajustes, manipuladas por entidades do terceiro setor para a gestão de repasses de verbas públicas, é medida que atenta contra o sistema republicano, e faz pouco caso do extenso rol de prerrogativas investigativas e fiscalizatórias a qual foram laureados os Tribunais e Ministérios Públicos de Contas. Incorre em igual vício a aposição de sigilo em contas de sociedades empresárias que tenham se beneficiado de financiamento público, muitas vezes subsidiado pelo Erário e com spreads muito abaixo dos de mercado.

Conduta deste jaez mostra-se divorciada da exata compreensão do princípio da intimidade, e, em especial, do âmbito de proteção do sigilo bancário, que jamais alberga o segredo na movimentação e na aplicação dos dinheiros públicos.

Em tempos em que o combate à corrupção está na pauta do dia da sociedade brasileira, vedar às altas instituições de controle o acesso aos dados bancários referentes às contas públicas sob a escusa do sigilo é um oximoro inadmissível.

Contas bancárias que manejam recursos públicos jamais serão sigilosas.

A República agradece.

Referências

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Sobre o autor
Patrick Bezerra Mesquita

Subprocurador de Contas do Estado do Pará.

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