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Quando os princípios do Direito se afastam da principiologia

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As normas de caráter principiológico e as normas-regras – incluídos aqui os postulados normativos – guardam entre si relevantes diferenças de ordem constitutiva, o que impede a confusão entre tais institutos.

“O erro está nos meios, bem mais do que nos princípios.”

Napoleão Bonaparte 

RESUMO:Navegando pelas infindáveis teorias que se dedicam a explicar as variadas concepções dos princípios do Direito, torna-se relativamente simples perceber a confusão de gêneros construída pelos acadêmicos na distinção entre os diversos tipos de normas jurídicas. Oportunamente, os operadores do Direito, num sem número de vezes, transmutam regras e postulados jurídicos, de maneira equivocada, em princípios, na tentativa de imprimir uma maior importância entre determinada norma e as demais do ordenamento jurídico. Desta forma, o presente trabalho visa estabelecer, através de pesquisa bibliográfica, divisores conceituais e hermenêuticos entre algumas espécies normativas – especialmente os princípios – a fim de possibilitar uma melhor aplicação dos institutos naturais do Direito, bem como esposar as consequências e motivos que condicionam a má distinção entre tais institutos.

PALAVRAS-CHAVE:Direito, Filosofia, Teoria dos Princípios, Principiologia, Hermenêutica.


1. INTRODUÇÃO

Como toda ciência, o Direito, mesmo dotado de certa carga empírica, tem em seu bojo um conjunto de estruturas que o caracteriza como tal. Neste rol de essencialidades, a ciência jurídica apresenta, além de outras tantas estruturas, um objeto de estudo bem definido, normas de metodologia e, finalmente, os princípios, que serão definidos e estudados.

De forma concreta, não há como conceber que instrumentos vistos como fontes fundamentais para uma matéria científica, tais como os princípios, sejam constituídos ao sabor do subjetivismo humano, sem qualquer análise metodológica.

Ao que parece, na tentativa de salvaguardar regras importantes para o ordenamento jurídico, parte considerável dos estudiosos do Direito vêm atribuindo às normas de aplicação específica a qualidade de princípio. Acontece que a citada denominação, para o Direito, não é apenas um atestado de importância mandamental, mas sim o resultado da adequação de uma norma a um conjunto específico de requisitos determinados pela principiologia jurídica.

Para atingir a melhor compreensão deste fenômeno e combatê-lo, há de se levantar alguns questionamentos, tais como: o que é um princípio? Quais são seus elementos? Como distinguir princípios de outras normas? Porque outras normas são elevadas à condição de princípio pelos estudiosos sem qualquer análise científica? É o que se tentará responder nas linhas a seguir.

Cabe salientar, ainda introdutoriamente, que as linhas de pensamento defendidas aqui são apenas gotas ante o manancial de respeitáveis correntes dispostas a dissecar o estudo dos princípios gerais do Direito. Assim, as letras que se seguem objetivam apresentar aos leitores um novo ponto de debate, despido de qualquer caráter impositivo.


2. AS ESPÉCIES NORMATIVAS

 Para se compreender de maneira satisfatória a estrutura existencial de um princípio do Direito, faz-se mister, antes, conhecer os tênues liames que separam os princípios das demais espécies normativas. Por esta razão, passa-se ao estudo das principais espécies normativas.

As espécies normativas, de forma genérica, são os instrumentos através dos quais o Direito materializa a sua força coercitiva para atingir objetivos relevantes à convivência em sociedade. Portanto, normas jurídicas são todos aqueles mecanismos que, de alguma forma, imprimem em uma comunidade um padrão de conduta juridicamente relevante, que fora anteriormente percebido e valorado no seio desta mesma sociedade.  

Tradicionalmente, a corrente do Direito que se dedicava à exploração das espécies normativas, inicialmente difundida por Dworkin, Alexy e Canotilho, estabelecia um laço dicotômico entre regras e princípios, sem qualquer menção aos postulados normativos. Para os defensores dessa linha de cognição, as regras eram institutos mandamentais de aplicação direta, que descreviam ações positivas ou negativas, ao passo que os princípios eram lastros jurídicos de ordem moral e diretiva, que deveriam ser observados para a aplicação do bom Direito, sem, contudo, possuírem qualquer força normativa.

 Para distinguir as duas espécies jurídicas, Ronald Dworkin apresentou em seus estudos dois modelos de diferenciação para o critério da aplicabilidade. Em primeiro lugar, quanto ao modelo de aplicação das regras, Dworkin estabeleceu que a estas deveria ser aplicado o modelo “tudo-ou-nada” (all-or-nothing-fashion), ao passo que aos princípios caberia a aplicação das tradicionais dimensões de peso.

As regras de aplicação direta, uma vez que obrigatoriamente positivadas e dotadas de coercitividade, deveriam ser aplicadas de modo integral até que sua validade fosse efetivamente negada pelo ordenamento positivo. Desta forma, num eventual conflito entre normas-regras, uma não poderia ser “relativizada” ou “posta em segundo plano” em função de um dispositivo prevalente; de forma objetiva, a norma considerada válida seria empregada em sua totalidade, ao passo que a norma inválida deveria ser extinta.

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Segundo Dworkin:

(...) regras são aplicáveis segundo um modelo de tudo-ou-nada, pois se os fatos estipulados por uma regra estão dados, então, ou a regra é válida, situação na qual a resposta que ela fornece precisa ser aceita, ou não é válida, circunstância na qual ela não contribui em nada para a decisão. (DWORKIN. Taking Rights Seriously, p. 24)

Complementado as diferenciações estabelecidas por Dworkin, eis a doutrina de Barroso e Barcellos:

A dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas em geral, e as normas constitucionais em particular, enquadram-se em duas grandes categorias diversas: os princípios e as regras. Antes de uma elaboração mais sofisticada da teoria dos princípios, a distinção entre eles fundava-se, sobretudo, no critério da generalidade. Normalmente, as regras contêm relato mais objetivo, com incidência restrita às situações específicas às quais se dirigem. Já os princípios têm maior teor de abstração e incidem sobre uma pluralidade de situações. Inexiste hierarquia entre ambas as categorias, à vista do princípio da unidade da Constituição. Isto não impede que princípios e regras desempenhem funções distintas dentro do ordenamento (...) distinção qualitativa ou estrutural entre regra e princípio (...) Regras são, normalmente, relatos objetivos, descritivos de determinadas condutas e aplicáveis a um conjunto delimitado de situações. Ocorrendo a hipótese prevista no seu relato, a regra deve incidir, pelo mecanismo tradicional da subsunção: enquadram-se os fatos na previsão abstrata e produz-se uma conclusão. A aplicação de uma regra se opera na modalidade tudo ou nada: ou ela regula a matéria em sua inteireza ou é descumprida. Na hipótese do conflito entre duas regras, só uma será válida e irá prevalecer. (...) (BARROSO E BARCELLOS, s/d, p.10/11)

Em direção diversa, os princípios do Direito seriam aplicáveis apenas sob um modelo de “dimensões de peso ou importância” (the dimension of weight or importance) no qual, determinadas as circunstâncias do caso concreto, pode um princípio ser afastado em detrimento de outro, sem, contudo, perder a sua validade. Isso acontece porque os princípios, segundo a corrente mais tradicional, não possuem ordens de aplicação direta, dependendo, pois, de outras regras positivadas para sua aplicação, o que lhes atribui certa “maleabilidade”.

No mesmo sentido, outro critério bastante utilizado para se distinguir princípios de regras é o critério da abstração. É inegável que regras positivadas e princípios possuem um alto grau de abstração, o que possibilita o porte dos conceitos normativos para a aplicação no plano concreto. Todavia, pelo fato de estarem predominantemente reduzidas a termo, as regras têm um campo de incidência mais restrito. 

Considere-se, a título de exemplo, que o aplicador de uma regra positivada tem a difícil tarefa de transmutar o texto normativo em um direito aplicável materialmente. Para isso, tal intérprete se vale de métodos hermenêuticos para extrair um sentido sólido e coeso das palavras, partindo de um ponto razoavelmente estruturado, que é a letra da lei.

No caso dos princípios, desde que não estejam positivados, o único ponto de partida de que pode se valer o intérprete é a consciência comum do que se entende pelo princípio estudado. Explico: muito embora os princípios gerais do Direito, que são eminentemente institutos mais próximos ao jusnaturalismo que ao juspositivismo, tenham um grau de variabilidade menor do que outras normas, seus significados podem mudar para se adequar aos padrões de aceitabilidade tempo-espaciais. Assim sendo, de maneira exemplificada, o princípio da igualdade não é visto no Brasil de hoje da mesma forma que na Índia, tampouco foi o mesmo princípio da igualdade observado no Brasil militar da segunda metade do século 20.

A falta de concreção textual, que é naturalmente característica dos princípios, os coloca em um grau de abstração acima das regras, o que amplia seu campo de incidência.    

Ainda nesse sentido, as ideias de Barroso e Barcellos:

Princípios, por sua vez, contêm relatos com maior grau de abstração, não especificam a conduta a ser seguida e se aplicam a um conjunto amplo, por vezes indeterminado, de situações. Em uma ordem democrática, os princípios freqüentemente entram em tensão dialética, apontando direções diversas. Por essa razão, sua aplicação deverá se dar mediante ponderação (...). (BARROSO E BARCELLOS, s/d, p.10/11)

Nas palavras de Canotilho, outro grande defensor da polarização das normas (princípios e regras), os princípios têm, em relação às regras, uma natureza normogenética, na medida em que são estas criadas com o fim de materializar as exigências daqueles. Por consequência, a gênese conceitual das normas emana diretamente dos princípios, o que faz destes peças-chave  para a materialização de qualquer direito.

Contrapondo-se à dicotomia entre as espécies normativas apresentadas por Dworkin, Humberto Ávila trouxe ao Direito brasileiro uma nova e desprendida concepção que atualizou, de maneira expressiva, o estudo e a aplicação dos diversos tipos de norma jurídica.

Em seu livro intitulado Teoria dos Princípios, Ávila expôs o traço de não duas, mas três espécies do gênero norma jurídica, sendo elas as regras, os princípios e os novos postulados normativos, que merecem aqui bastante atenção.

Para o grande jurista brasileiro, existem normas - de segundo grau - que servem ao Direito apenas como diretrizes para o entendimento e a aplicação de outras normas de incidência direta - normas de primeiro grau. As primeiras ficaram conhecidas no Direito brasileiro como metanormas ou postulados normativos.

Desta forma, muito embora sejam eles positivados nas legislações, os postulados não apresentam uma ordem de prestação positiva ou negativa, mas sim formas de interpretação e aplicação de princípios e regras no plano concreto.        

Em Ávila tem-se que:

(...) os postulados, de um lado, não impõem a promoção de um fim, mas, em vez disso, estruturam a aplicação do dever de promover um fim; de outro, não prescrevem indiretamente comportamentos, mas modos de raciocínio e de argumentação relativamente a normas que indiretamente prescrevem comportamentos. Rigorosamente, portanto, não se podem confundir princípios com postulados. (ÁVILA, 2005, p. 135)

Ainda quanto aos postulados, estes podem ser divididos, de acordo com o seu objeto de regulação, entre hermenêuticos e aplicativos.

Os postulados hermenêuticos traçam um elo entre os diversos métodos utilizados para interpretação de regras e princípios, tais como o postulado da unidade, que impõe a interpretação de uma norma à luz de todo o ordenamento, e o bastante discutido postulado da hierarquia, que observa o escalonamento de regras tão difundido por Kelsen. Já os postulados de aplicação apontam os preceitos dos quais deverão se valer os operadores do Direito, quando da subsunção do caso concreto à regra, tais como os tão confundidos postulados da razoabilidade, que submete a ação de Direito ao sentido do “homem comum do povo”, e da proporcionalidade, que imprime a relação causa-efeito na aplicação normativa.

Como se observa, cada espécie normativa carrega uma série de características peculiares que a distingue das demais, o que proíbe a confusão pelos aplicadores.


3. COMO NASCE UM PRINCÍPIO

Um dos questionamentos mais instigantes no estudo dos princípios jurídicos discute o momento em que estes se originam. É certo que a terminologia “princípio”, de modo geral, possui vários significados, dentre os quais estão: a origem; a raiz; aquilo que é o primeiro momento da existência de algo; aquilo que serve de base para alguma coisa.

Diante disso, a maior dúvida que se levanta é: como podemos estudar a origem de algo que, essencialmente, já é o início ou o ponto de partida para outra coisa?

Grosso modo, princípios são a união de aspectos que constituem a gênese de alguma coisa. Assim, tem-se, exemplificadamente, que os princípios da Mecânica podem ser encontrados no estudo dos materiais que compõem máquinas e sólidos; os princípios da Elétrica estão nas diversas formas de manifestação de tal energia; os princípios da Agronomia podem ser encontrados através do estudo dos solos e dos meios de cultivo; e os princípios da Medicina, podem ser encontrados a partir da observação dos aspectos físicos e psíquicos do ser humano.

O Direito, por sua vez, enquanto área do conhecimento que guarda relativa carga empírica, constitui seus conceitos a partir da práxis social e busca seus princípios justamente nas relações, de qualquer natureza, entres seres humanos, e entre estes últimos e o meio em que estão inseridos.

Com isso, os princípios do Direito não são criações individuais a ponto de nascerem da mente de um jurista ou de um legislador qualquer; a estes dois cabe apenas o esforço intelectual para descobri-los, interpretá-los e aplicar suas diferentes faces. Pode-se dizer, portanto, que os princípios do Direito são criações coletivas, que nascem da própria condição humana quando pensada coletivamente, não podendo, sobremaneira, ser criados por uma mente apartada das demais.

Essas ideias há muito são utilizadas pelos juspositivistas para defender a imutabilidade dos princípios. Para eles, o fato de os princípios emanarem da própria natureza humana os tornaria inalteráveis, o que parece aqui um equívoco. É fato que não está nas mãos, ou melhor, na mente de um pensador, a capacidade de alterar algo que diz respeito à essência do homem e da sociedade; contudo, não é difícil perceber que os instrumentos principiológicos do Direito permanecem imutáveis apenas nominalmente.

Para clarear o que foi dito, há de se mostrar o princípio da liberdade em algumas nuances temporais. Apesar de a luta pela liberdade, seja ela física ou intelectual, existir no Direito já há “muitas luas”, descrita exatamente da mesma forma, a sua interpretação sofreu alterações significativas com o passar dos anos.

Primeiramente, desde a chegada dos portugueses ao Brasil, no ano de 1500, até 13 de maio de 1888, quando a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, o princípio da liberdade física, que assegurava o direito de ir e vir aos cidadãos, não se aplicava àqueles que jaziam sob a condição de escravo, o que tornava clara a limitação do princípio em comento.

Num segundo momento, a ditadura militar vivida no Brasil entre os anos de 1964 e 1985 mostrou outra visão do que hoje se entende por liberdade intelectual. Vários artistas e pensadores brasileiros foram presos, mortos ou tiveram que se exilar, por se oporem às estruturas de poder. Naquela época, a liberdade de expressão se esvaía sob o rol dos homens e mulheres considerados “subversivos” aos olhos do Estado.

Interessante apontar que o Ato Institucional nº5, de 13/12/1968, um dos maiores símbolos da ditadura, trazia em seu campo de justificativas a liberdade, a dignidade da pessoa humana e a defesa da democraciam senão vejamos:

(…) CONSIDERANDO que a Revolução Brasileira de 31 de março de 1964 teve, conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou, fundamentos e propósitos que visavam a dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção, buscando, deste modo, "os. meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direito e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa pátria. (BRASIL, Ato institucional nº5, 13/12/1968)

Posto isto, torna-se clara a ideia de que os princípios do Direito são normas mutáveis que, muito embora persistam nominalmente, têm suas significações revistas de tempos em tempos. Por óbvio, como os princípios não dependem do papel para existir, também não podem ser alterados na velocidade da caneta do legislador, mas apenas a partir da árdua e demorada mutação dos padrões sociais.

Sobre os autores
Eric Felipe Silva e Caldas

Bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina - FACAPE; Ex-Estagiário da 3ª Vara do Trabalho em Petrolina - PE (TRT6); Ex-Estagiário da 17ª Vara da Justiça Federal em Petrolina-PE (TRF5); Advogado; Conciliador da Justiça Federal na subseção de Petrolina-PE; Pós-graduado em Direito Público Municipal pela Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina - FACAPE.

Chirley Vanuyre Vianna Cordeiro

Docente do Curso de Direito da Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina - FACAPE, Especialista em Direito Público pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Procuradora Jurídica do Município de Juazeiro (BA).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CALDAS, Eric Felipe Silva; CORDEIRO, Chirley Vanuyre Vianna. Quando os princípios do Direito se afastam da principiologia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4726, 9 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/49371. Acesso em: 22 dez. 2024.

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