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Quando os princípios do Direito se afastam da principiologia

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5. A FORÇA NORMATIVA DOS PRINCÍPIOS

Nos últimos vinte anos muito se discutiu no Brasil sobre a validade dos princípios enquanto norma jurídica. Autores mais tradicionais defendiam que os princípios deveriam ser visualizados não como normas, mas como diretrizes de ordem moral para a aplicação das regras, sem qualquer capacidade normativa.

Nesse sentido está, por exemplo, a dicção do art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que, ao tratar dos meios de integração do Direito, relacionando-os em ordem de prioridade, coloca os princípios no fim da fila, senão vejamos:

Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. (BRASIL, Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro)

Ou seja: para a corrente clássica, a lei é o instrumento de excelência para a aplicação do Direito, e por consectário lógico, o primeiro meio de que o operador pode se valer. Apenas nos casos em que a lei for omissa é que o operário deverá utilizar-se da analogia, dos costumes e dos princípios gerais do Direito.

Acontece que essa visão egocêntrica da lei pode trazer sérios problemas para o ordenamento.

O primeiro deles é que a lei, enquanto instituto finito, é incapaz de antever todos os fatos sociais presentes numa comunidade em um determinado espaço de tempo. Verdadeiramente, para que uma regra se torne eficaz, ela passa por um árduo processo legislativo que lhe confere legitimidade. Porém, em se tratado de uma sociedade complexa, a todo momento surgem novos fatos valorados pelo homem, fazendo com que as regras já nasçam, de um certo modo, obsoletas.

Por esta razão se pode afirmar, sem sombra de dúvidas, que as relações sociais reguladas pelos costumes, jurisprudência e especialmente pelos princípios, guardam proporção infinitamente maior daquelas passíveis de ser reguladas por lei.  

Seguindo esta direção, Norberto Bobbio defende que, por guardar uma finalidade semelhante a qualquer outra norma, aos princípios deve ser reconhecida a força normativa.

Os princípios gerais são apenas, a meu ver, normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas mais gerais. A palavra princípios leva a engano, tanto que é velha questão entre juristas se os princípios gerais são normas. Para mim não há dúvida: os princípios gerais são normas como todas as outras. E esta é também a tese sustentada por Crisafulli. Para sustentar que os princípios gerais são normas, os argumentos são dois, e ambos válidos: antes de mais nada, se são normas aquelas das quais os princípios gerais são extraídos, através de um procedimento de generalização sucessiva, não se vê por que não devam ser normas também eles: se abstraio da espécie animal obtenho sempre animais, e não flores ou estrelas. Em segundo lugar, a função para qual são extraídos e empregados é a mesma cumprida por todas as normas, isto é, a função de regular um caso. E com que finalidade são extraídos em caso de lacuna? Para regular um comportamento não-regulamentado: mas então servem ao mesmo escopo que servem as normas. E por que não deveriam ser normas?  (BOBBIO, 1996, p. 159).

Nesta seara, os princípios passam de meras diretrizes valorativas à condição de normas de caráter impositivo e vinculante, o que faz com que um princípio possa ser aplicado de forma isolada, sem a necessidade de qualquer correspondência textual.

Não é inoportuno considerar neste momento as ideias de Leite:

É indiscutível que os princípios desempenham esse papel orientador na ordem jurídica, mas sua relevância não se adstringe a esse aspecto diretivo. De fato, no estágio atual de sua compreensão, a sua elevada generalidade não lhes retira a capacidade de solver situações fáticas controvertidas, posto que são considerados, não como simples pautas valorativas, senão como autênticas normas jurídicas, conforme se verá. (LEITE, A Abertura da Constituição em Face dos Princípios Constitucionais).

Muito embora haja certa resistência por parte dos hermeneutas que põem a norma-regra no topo da cadeia normativa, há de se perceber que o reconhecimento da força normativa dos princípios guarda um papel crucial na formação da completude de um ordenamento. O fato de se poder aplicar diretamente um princípio ao caso concreto, sem a intermediação de outra regra qualquer, pode reduzir significativamente o tempo entre uma pretensão de direito e a chancela jurisdicional que reconhecerá ou não o pleito.

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Por esta razão, considera-se que, na maioria das vezes, os princípios encontram-se no mesmo grau de importância das regras. Em algumas ocasiões, aqueles podem ser utilizados até mesmo para desconstituir a eficácia destas.

Conclusivamente, não há como não reconhecer a eficácia normativa dos princípios do Direito, uma vez que são eles os justificadores das demais regras e de todo o ordenamento jurídico.


6. O PROBLEMA DE SE TRATAR REGRAS E POSTULADOS COMO PRINCÍPIOS

Num primeiro momento, o ato de se tratar regras jurídicas e postulados normativos como princípios pode parecer uma falha meramente didática, o que não é verdade. O fato é que, coadunando a melhor doutrina de Humberto Ávila, princípios, regras e postulados normativos não possuem hierarquia, mas apenas são distintos no que diz respeito à essência e ao objeto de incidência de cada um (ÁVILA, 2014).

Como visto anteriormente, regras são normas concretas e relativamente específicas, que podem ser alteradas pela vontade de um grupo restrito de pessoas e se aplicam a cada caso, geralmente, por meio da subsunção. Os postulados normativos, por sua vez, sejam eles hermenêuticos ou de aplicação, são diretrizes normativas que servem para compreender e melhor aplicar outras normas. Já os princípios são normas pautadas na própria essência do homem, quando percebido coletivamente, que têm uma grande carga de abstração e se modificam de acordo com a consciência da sociedade.

Denota-se do exposto que cada espécie normativa possui uma série de características que a definem, tais como a forma de constituição, o nível de abstração, a maneira como se aplica ao caso concreto e a sua mutabilidade. Por consequência, uma possível confusão entre regras, princípios e postulados pode gerar graves inconsistências no ordenamento.

Imagine-se, novamente, o teor do princípio da liberdade humana.

A CF/88 traz no bojo do seu art. 5º a ideia de que o homem é, por natureza, um animal livre e a ele deve ser garantida, de forma indistinta, essa liberdade, até o momento em que este resolva invadir a esfera de liberdade de outro ser humano.

Pois bem, muito embora os constituintes originários tenham petrificado tal princípio na Carta Maior, por razões já discutidas em capítulos anteriores, não são eles os reais criadores do princípio da liberdade. Em verdade, aos legisladores coube apenas tornar expresso algo que já era comum à consciência da nossa e de maioria das sociedades.

Em vista disso, torna-se clara uma e talvez a mais importante diferença entre o processo de criação de uma norma-princípio e de uma norma-regra, que é a origem de cada uma.

Ao passo que os princípios do Direito emanam da consciência social, e, a partir desta, já passam a produzir a sua cogência, as regras (strictu sensu), muito embora, no mais das vezes, sejam também expressões do senso médio de uma comunidade, só se tornam cogentes após a chancela dos órgãos responsáveis pelo devido processo legislativo.   

Portanto, um princípio pode se tornar pleno apenas com a construção e aplicação reiterada de um conceito bem definido por uma comunidade; todavia, as regras em sentido estrito só se completam após a aquiescência do legislador.

Assim, o maior problema na confusão entre princípios e as demais normas está nos processos de criação. Se os legisladores acreditarem que regras e postulados normativos são essencialmente indistintos dos princípios, indubitavelmente, passarão a acreditar também que são sujeitos aptos a criar princípios e a alterá-los ao sabor de suas vontades.

Neste aspecto, não extrapola o objeto deste trabalho apontar que muito embora o parlamento seja o representante legítimo do povo, a vontade deste, num número considerável de hipóteses, não acompanha a vontade da sociedade. Tal afirmação está inserta na realidade da maioria dos países ocidentais, sendo o Brasil um de seus maiores atestadores.

Imagine-se, portanto, que os parlamentares estejam imbuídos da vontade de criar, sozinhos, princípios do Direito. Neste caso, o legislador poderia apontar a sua visão num sentido diametralmente oposto à visão da sociedade, o que faria de um princípio jurídico – que é, reconhecidamente, uma criação da consciência comunitária – um instrumento de repressão dos interesses coletivos.

Esta hipótese não é concebível num ordenamento jurídico embasado nos ideais democráticos da liberdade e da justiça social. Por esta razão é que os princípios não podem, jamais, nascer de compreensões particulares.


7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como se pôde observar, as normas de caráter principiológico e as normas-regras – incluídos aqui os postulados normativos – guardam entre si relevantes diferenças de ordem constitutiva, o que impede a confusão entre tais institutos. Em razão disso não há como conceber que alguns operadores do Direito tratem tais aparelhos de concretização jurídica de maneira indistinta.

Pelo exposto, muito embora princípios e regras tenham o mesmo objetivo, o de regular relações entre os seres humanos que vivem em comunidade, estes apresentam formas distintas de concepção, mutação, abstração e aplicabilidade; ao passo que os princípios jurídicos, de modo geral, nascem do seio coletivo, as regras são criações específicas que têm sua origem pautada em atos de cognição individuais.

Há de se observar, por oportuno, que esta abissal diferença entre os processos de constituição de uma regra e de um princípio impedem que princípios sejam criados de forma isolada, por atos de reflexão do operador e do hermeneuta jurídico, ou do legislador.  

Do quanto dito, conclui-se que a teoria dos princípios, aliada à crescente evolução no estudo das espécies normativas, deu um salto significativo no que pertine às suas estruturas fundamentais. Este novo pensamento acerca dos aparelhos básicos do Direito trará, nos próximos anos, mudanças significativas na maneira como se concebe a ordem jurídica atual, fazendo com que as regras, antes ocupando posição central e absoluta no estudo do Direito, dividam lugar com as demais fontes normativas.                


TABELA DE REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2ª ed.  (trad. de Virgílio Afonso da Silva) São Paulo: Malheiros, 2011;

ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014;

BÄCKER, Carsten. (Regras, Princípios e Derrotabilidade. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, n.º 102, p. 60, jan./jun. 2011);

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. 1ª ed. São Paulo: Ícone, 2006;

BRASIL. Constituição, 1988;

BRASIL. Código Civil, 2002;

BRASIL. Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, 1942;

BRITO, Ronaldo. Distinção entre normas jurídicas: princípios, regras e postulados jurídicos. 03 Maio 2012. Disponível em: www.blogdoronaldobrito.blogspot.com.br/ 2012/05/distincao-entre-normas-juridicas;

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e Teoria da Constituição. 4ª ed. Coimbra: Almeida, 2000;

DINIZ, Maria Helena, Conflito de Normas. São Paulo: Saraiva, 1987;

ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais: Elementos teóricos para uma formulação dogmática constitucionalmente adequada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999;

HART, Herbert Lionel Adolphus. The Ascription of Responsibility and Rights, apud Vasconcellos, Hermenêutica jurídica e derrotabilidade;

LEITE, George Salomão. A Abertura da Constituição em Face dos Princípios Constitucionais. Disponível em http://www.jfpb.gov.br/esmafe/Pdf. Acesso em 28.01.2009;

LIMA, George Marmelstein. Hierarquia entre Princípios e Colisão de Normas Constitucionais. Disponível em http://jus.com.br/artigos/2625. Acesso em: 27.01.2009.

Sobre os autores
Eric Felipe Silva e Caldas

Bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina - FACAPE; Ex-Estagiário da 3ª Vara do Trabalho em Petrolina - PE (TRT6); Ex-Estagiário da 17ª Vara da Justiça Federal em Petrolina-PE (TRF5); Advogado; Conciliador da Justiça Federal na subseção de Petrolina-PE; Pós-graduado em Direito Público Municipal pela Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina - FACAPE.

Chirley Vanuyre Vianna Cordeiro

Docente do Curso de Direito da Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina - FACAPE, Especialista em Direito Público pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Procuradora Jurídica do Município de Juazeiro (BA).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CALDAS, Eric Felipe Silva; CORDEIRO, Chirley Vanuyre Vianna. Quando os princípios do Direito se afastam da principiologia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4726, 9 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/49371. Acesso em: 22 nov. 2024.

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