A Lava Jato e operações congêneres são uma microrrevolução jurídica (com forte apoio social) que está mostrando limites para as elites poderosas (políticas e econômicas) que se enriquecem (criminosa ou favorecidamente) com o dinheiro público. Se a magistratura se mancomunar covardemente com os usurpadores da coisa pública, tudo vai por água abaixo. Se extrapolar os seus próprios limites, tudo será anulado (Satiagraha, Castelo de Areia etc.). Caminha-se como malabarista sobre fio escorregadio. Nem oito, nem oitenta. Equilíbrio, firmeza, prudência. Não se pode violar o Estado de Direito, tampouco entregar o ouro para os bandidos (no caso, bandidos que fazem fortunas com a coisa pública, em detrimento da população).
A situação está preocupante, porque as águas da Justiça já começam a sair pelos ladrões (e isso é tudo que querem os caciques políticos corruptos assim como os empresários picaretas aproveitadores que vivem das tetas do governo). Não se faz uma microrrevolução, com abertura para outras iniciativas semelhantes da sociedade civil, sem a firmeza de caráter e a força da lei. Não sendo assim, a vitória final será da kleptocracia (não da moralização que o país tanto almeja).
Delcídio delatou que o Presidente do STJ (que está deixando o cargo) teria se envolvido com a nomeação (por Dilma) de um ministro (Navarro) para conceder habeas corpus em favor de Marcelo Odebrecht. E o ministro efetivamente votou favoravelmente. Os demais não, daí a não concessão do pedido de liberdade. Mas tudo isso está no ar, porque ninguém sabe como andam as investigações. É assunto da maior gravidade institucional, daí a imperiosa necessidade de que tudo seja esclarecido o mais rápido possível. Ou a desconfiança da população vai aumentando.
O ministro Toffoli, a quem ninguém pediu a liberdade do ex-ministro Paulo Bernardo, deu um “salto duplo carpado” e concedeu-lhe habeas corpus de ofício (pulando as anteriores instâncias). É fundamental que o juiz cumpra seu papel de protetor da liberdade (sem isso não existe Estado de Direito), mas tem que cuidar sempre do aspecto formal (de modo a não transparecer favoritismo). Um “salto duplo carpado” só faz degringolar a baixa reputação que a Justiça tem da população.
A competência (como decidido anteriormente pelo próprio STF), para o caso Paulo Bernardo, é do juiz de primeiro grau. Logo, no momento da concessão do habeas corpus, Toffoli não tinha nenhuma possibilidade de interferir no assunto da prisão citada. Só depois de esgotadas as duas instâncias intermediárias isso ocorreria de forma regular. Juiz é como o ditado machista que diz que a mulher de César não basta ser honesta, tem que aparentar. A sensação que ficou, no caso Toffoli-Paulo Bernardo, foi de favorecimento, privilégio, e isso é tudo que mais denigre a credibilidade da Justiça, que vive desse patrimônio imaterial.
No Rio de Janeiro, um desembargador do TRF concedeu prisão domiciliar para Carlinhos Cachoeira, Fernando Cavendish etc. (acusados de desvios de milhões dos cofres públicos). O Ministério Público está pedindo o afastamento dele do caso em virtude das relações de amizade e profissionais com o advogado. Eis outro campo minado que desmorona a reputação da Justiça. Se é verdade que o desembargador já foi cliente do advogado do caso, deveria, por cautela, afastar-se do seu julgamento.
O ministro Teori Zavaschi (“o fechadão”) já concedeu mais de 10 habeas corpus, na Lava Jato, em favor de vários empreiteiros, convertendo a prisão preventiva (decretada por Moro) em domiciliar. Mas não há nenhuma suspeita de que Teori tenha relações de clientelismo com os advogados postulantes. Isso preserva a honorabilidade da Justiça (não gera desconfiança). No caso do Rio de Janeiro, a desconfiança navega como o ar que respiramos (daí a necessidade de que tudo seja devidamente esclarecido).
Por que todo esse clima de suspeita contra a magistratura? Isso se deve também à nossa história. O Primeiro juiz corregedor (ouvidor) no Brasil (Pero Borges) foi um grande corrupto (já em meados do século XVI – veio ao Brasil juntamente com Tomé de Sousa). Daí para cá deveria a magistratura cuidar incansavelmente do seu patrimônio imaterial mais valioso: a credibilidade (que exige, ademais, prudência e equilíbrio e transparência absoluta nas decisões).
Mais ainda: Sarney afirmou (no áudio do Sérgio Machado) que “o juiz é nosso cúmplice”. Não é paradigma de confiabilidade, não é um imparcial que julga, sim, “nosso cúmplice”. Quando a cacicagem tem os juízes como cúmplices, a sociedade fica espantada.
Se a Lava Jato constitui uma guerra contra a kleptocracia (contra os ladrões e barões ladrões do dinheiro público), não se pode dar passos falsos (como foi o pedido de prisão preventiva formulado por Janot contra Renan, Sarney e Jucá, sem situação de flagrância configurada). Por força da Constituição, a flagrância no caso de Jucá e Renan é absolutamente indispensável.
À medida que avançam as operações Lava Jato e congêneres vão se descortinando, com nitidez olímpica, os malefícios profundos para a sociedade da governança kleptocrata, que é o sistema de governo onde prima o interesse pelo enriquecimento (criminoso ou favorecido) de uma pequena elite (de governantes e dominantes) à custa dos bens públicos (que são administrados como se fossem privados).
A cada revelação a sociedade (já sem nenhuma estupefação, exaurida em sua indignação) vai confirmando o que ela sempre soube, agora com as provas diante dos olhos: todo o sistema estatal-empresarial kleptocrata está prioritariamente voltado para o bem-estar de poucos, restando as migalhas para a população, sobretudo a mais carente (e menos influente).
A intervenção firme da polícia, do ministério público e da Justiça nos meandros do clube da kleptocracia desferiu neste um golpe profundo, a ponto de transformar em pó a tese de que a corrupção sistêmica seria fenômeno exclusivo do Estado e dos agentes públicos (destacando-se os políticos), tentando assim obnubilar a presença real e efetiva (nesse empreendimento criminoso ou privilegiado) das corporações, empresários e agentes financeiros (bem posicionados dentro do Estado), que sempre se enriqueceram em virtude, precisamente, dos laços de amizade, favorecimentos e cortesias recíprocos.
As kleptocracias, desgraçadamente, por natureza, não são inclusivas, porque elas buscam o enriquecimento com o dinheiro público das pequenas elites (políticas e econômicas). Quanto mais extrativista (e kleptocrata) o país, mais desigualdade (logo, mais miséria, pobreza, analfabetismo, violência etc.). Todos esses efeitos se invertem, quando as instituições são inclusivas (veja Acemoglu-Robinson, Por que as nações fracassam). A magistratura é inclusiva quando atua de forma imparcial e, sobretudo, quando tem coragem de enfrentar os poderosos, impondo-lhes freios (às suas ganâncias, arbitrariedades, egoísmo, avareza e vaidade, coisas que costumeiramente acompanham os chamados humanos). A magistratura brasileira não pode ser vista como uma kleptomagistratura.