"quero retirar a queixa"
A Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, promulgada em agosto de 2006, veio com a finalidade de criar mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Ainda que haja pessoas que digam que a mencionada lei foi apenas um meio de angariar votos nas eleições presidenciais de 2006, cumpre-nos enaltecer que esta lei é fundamental no trato de crimes praticados em face da mulher, se tornando um marco histórico no combate à violência doméstica contra a mulher, no Brasil.
Para iniciarmos a explanação do tema ora posto, devemos saber que há crimes em que o processo se inicia a partir de uma ação penal privada por meio da queixa crime apresentada pelo próprio ofendido, por meio de advogado (crimes contra honra de injúria, calúnia e difamação); há outros casos em que a ação se inicia por meio de ação penal pública incondicionada, cabendo ao Ministério Público ofertar a denúncia, iniciando-se o processo mesmo sem a anuência da vítima, a qual passa a ser apenas objeto processual (crimes contra vida, racismo, trafico de entorpecentes etc.); por outro lado, há casos em que o processo somente se inicia após uma representação da vítima, dando início a uma ação penal pública condicionada à representação do ofendido, cabendo ao Ministério Público ofertar a denúncia, após o “aval” da vítima, é neste caso em que vamos nos ater.
Então, nos crimes de ação penal condicionada à representação, o Ministério Público somente pode dar início à ação penal se houver a expressa manifestação de vontade da ofendida nesse sentido (representação), vou além, sem a representação se quer pode se iniciar procedimento investigatório seja via inquérito policial, seja através de investigação ministerial. Na prática, o que ocorre, é que em casos de violência, principalmente naqueles em que estas acontecem corriqueiramente, após a vítima oferecer a representação, ela acaba por fim em se retratar “retirar a queixa” e assim o processo se encerrar por ali mesmo, pois falta condição específica de procedibilidade.
É visível, em nossa sociedade que situações como estas ocorrem diariamente, principalmente pelos desdobramentos das violências já suportadas pelas vítimas, que se retratam da representação na grande maioria das vezes por diversos sentimentos, como medo, vergonha, dependência financeira, ou simplesmente para manter o seio familiar, suportando dessa forma, diariamente, uma grande pressão psicológica e vivendo alienada moralmente ao agressor.
Sabendo disso, o legislador trouxe como uma possível arma no enfrentamento destas situações, que a desistência de prosseguimento na ação por parte da ofendida se daria somente diante de um Juiz e do representante do Ministério Público, em uma audiência designada especialmente para tal finalidade e desde que seja anterior ao início do processo, ou seja, antes do recebimento da inicial acusatória (denúncia - MP). Consoante art. 16 da lei 11.340/2006:
Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.
Oportuno foi essa medida, pois garante à vítima um acesso pessoal ao Juiz e ao Ministério Público, especializados em casos de violência desta natureza, que ao invés de incentivar a retratação, conscientizará e encorajará a vítima sobre a necessidade de dar prosseguimento ao processo.
É salutar também tal audiência para a desistência, pois, possibilita o Juiz e o Ministério Público a constatar se a ofendida vem suportando algum tipo de pressão, por parte do agressor, principalmente porque a decisão de retratar deve ser voluntária e espontânea livre de vícios de consentimento. Pois, na maioria dos casos, posteriormente a sofrer vários atos de agressão, a vítima se retrata da representação após a ocorrência de outra violência, por parte do agressor, qual seja ameaças.
Esclarecendo, conforme previsto em lei, embora seja de ação penal pública condiciona, a pratica de lesões corporais de natureza leve, (art. 88 da Lei 9.099/95), quando se trata de lesões corporais praticadas em violência doméstica contra mulher a ação é publica incondicionada, pois, o STF determinou que a natureza da ação penal no crime de lesão corporal é incondicionada, pouco importando a extensão da lesão praticada em face da mulher no ambiente doméstico. Afasta, ainda, a necessidade de representação para este crime, o enunciado no art. 41 da Lei 11.340/06, que determina a inaplicabilidade da Lei 9.099/95 aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher.
Quando uma mulher é violentada, não é somente ela que sai ferida deste fato, mas toda a sociedade, a mulher é a base de uma estrutura familiar saudável, que por vez, é o alicerce de uma sociedade sólida, ordeira, justa e próspera. Quando se rompe, ou se macula de alguma forma essas bases, os reflexos na sociedade são amplamente visíveis e perversos. O que por si só justifica esta atenção especial à mulher por parte do Estado, que reconheceu tal importância ao fundamentar a implantação da Lei Maria da Penha no § 8º do art. 226 da Constituição da República.
Mencionado dispositivo, aduz que:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
(...)
§8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
Por fim, o desejo é que este mesmo Estado, que reconheceu essa nobre função da mulher no seio social, é que efetivamente trabalhe para isto, que as instituições realmente prestem seus múnus como descritos em lei, de modo a dar o devido suporte que as vítimas de violência doméstica necessitam e trabalhe muito no sentido de prevenção da violência. Que só assim teremos uma sociedade bem mais justa e próspera.