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A família e a homoafetividade:

uma análise sociojurídica do conceito de família sob a ótica da afetividade

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Agenda 27/07/2016 às 12:24

O trabalho analisa a família homoafetiva, o atual conceito de família e alguns aspectos relevantes do projeto de lei nº 6.583 de 2013 (Estatuto da Família), do deputado federal Anderson Ferreira (PR-PE).

1 INTRODUÇÃO

A sociedade contemporânea é dinâmica, sendo recorrente a mutabilidade de tudo que a compõe. É importante destacar que todas essas mudanças geram importantes transformações de ordem moral, ética e cultural.

Grande parte dessas importantes mudanças deve estar sob gerência do Estado e, principalmente, da atividade legislativa, que deverá propor, sempre com base nas demandas sociais, alternativas mais satisfatórias para acompanhar todo esse ininterrupto processo de desenvolvimento social. Neste sentido, a tutela jurisdicional progressivamente abandona seu sistema clássico e parte em busca do conhecimento e da admissão de novas realidades sociais.

Considerando esse dinamismo típico de todo corpo social, algumas questões, que em tempos passados eram consideradas tabus, hoje se tornaram pauta de discussão na sociedade. Um dos protagonistas destas novas urgências sociais é a temática diversidade afetivo-sexual.     

A temática diversidade afetivo-sexual tem por objetivo promover e auferir visibilidade e respeito às diferenças afetivo-sexuais percebidas em uma parcela da coletividade, que ficou por muito tempo à margem do sistema jurídico, como os homoafetivos[1], desconstruindo o preconceito que ainda persiste.

Atualmente, além do questionamento persistente de parcela mais conservadora da sociedade sobre o enquadramento das uniões homoafetivas como família, encontramos inúmeros projetos de lei que, em sentido contrário, buscam legalizar essa percepção já ultrapassada, no nosso entender, sobre o que constitui uma família.

Como importante exemplo, temos o projeto de lei nº 6.583/2013, denominado Estatuto da Família, de autoria do deputado Anderson Ferreira (PR-PE), que tem como objetivo dispor sobre o direito das famílias e anunciar diretrizes para políticas públicas que visem valorizar e apoiar o núcleo familiar. Contudo, na proposta do referido projeto de lei, a definição de entidade familiar abrange exclusivamente o núcleo afetivo formado a partir da união heteroafetiva cisgênero[2] ou por qualquer destes e seus descendentes.

Este trabalho tem dois objetivos principais: analisar o conceito legal de família e trazer algumas considerações sobre a homoafetividade e a família homoafetiva. Tecidas tais considerações, cumpriremos nossa finalidade principal: analisar se há fundamentos jurídicos que sustentem o conceito de família proposto pelo projeto de lei nº 6.583/2013, atualmente em voga, e se as suas disposições anunciam ou contrariam os direitos conquistados pelo movimento LGBTTTIA.


2 A FAMÍLIA E A HOMOAFETIVIDADE

 2.1 A homoafetividade: um esforço histórico

 A homoafetividade é a condição biopsíquica dos sujeitos que sentem atração e se relacionam afetiva e sexualmente, exclusivamente, com pessoas do mesmo gênero.[3] Com base na lógica binária de gênero (feminino e masculino, seja trans ou cisgênero), o homoafetivo se difere do heteroafetivo, que se relaciona com pessoas do gênero oposto, e do biafetivo, que se relaciona com pessoas de ambos os gêneros[4].

O relacionamento entre pessoas do mesmo gênero é observado desde as civilizações antigas, apesar de que, nestas sociedades, a homoafetividade estava pautada exclusivamente no sexo (o homoafetivo era todo aquele que se relacionava com pessoas do mesmo sexo). Apesar da imprecisão temporal, existem relatos históricos de sua existência nos povos romanos, gregos e egípcios, por exemplo.  Nas sociedades clássicas, a homoafetividade assumia um caráter cultural e não era discriminada. A relação entre homens e mulheres existia para a procriação, enquanto a relação entre homens era uma necessidade natural, incorrendo em uma prática social que se tornou, inclusive, um fator histórico e característico destas sociedades. (BRANDÃO, 2002).

A homoafetividade na idade média, no entanto, foi paulatinamente sendo repreendida pela introdução de dogmas na sociedade por instituições religiosas, como a igreja católica, e pelo culto à procriação. Segundo Maria Berenice Dias:

A tendência de engessamento dos vínculos afetivos sempre existiu, variando segundo valores culturais e, principalmente, influências religiosas dominantes em cada época. No mundo ocidental, tanto o Estado como a Igreja sempre buscaram limitar o exercício da sexualidade ao casamento. (DIAS, 2014, p. 2).   

Percorrendo as idades média e moderna, percebemos que a homoafetividade foi se tornando cada vez mais condenável em razão dos ensinamentos da igreja católica, em crescimento exponencial, que pregava que a função do homem e da família era a procriação. Desta forma, quaisquer outras práticas sexuais que fugiam desta concepção eram taxadas como pecaminosas e abomináveis.

Entre os séculos XIX e XX, percebe-se que a situação do homoafetivo chegou a seu ápice. A fragilidade entre o estado, a sociedade e a igreja foi uma brecha encontrada pelos homoafetivos para que houvesse uma tentativa de organização e luta contra a discriminação e pelo reconhecimento de direitos. No entanto, a estruturação do movimento homoafetivo sofreu forte oposição com o regime nazista, responsável pela morte de milhares de homoafetivos, que eram considerados impuros.

Segundo Toni Reis (2007), no segundo pós-guerra, o movimento homoafetivo começa a se reestruturar, culminando, por exemplo, na criação do movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e travestis) nos Estados Unidos. A rebelião de Stonewall (1969), em Nova-Iorque, protagonizada por grandes ícones da cultura queer[5], como Marsha Johnson e Sylvia Rivera, representou um importante marco na luta civil dos homoafetivos. Inclusive, em 28 de junho de 1970, um ano após a rebelião de Stonewall, aconteceram as primeiras marchas do orgulho gay nos Estados Unidos, em Nova Iorque, Chicago, Los Angeles e São Francisco, que influenciaram, anos mais tarde, movimentos sociais de outros países pelo mundo.

No pós-guerra, a homoafetividade tomou novas feições, desvinculadas das ultrapassadas concepções de ser o homoafetivo um sujeito pervertido ou doente. A homoafetividade passou a ser encarada como um modo próprio de ser. Neste sentido, citamos Leon Denis, em seus Esclarecimentos Básicos sobre a Homossexualidade:

A homossexualidade não é doença. Embora, desde a 2ª metade do Século XIX, a Medicina, a Psiquiatra e a Psicologia a tenham apontado como doença, em 1973, a Associação Americana de Psiquiatria afirmou que é antiético tentar mudar a orientação sexual de um gay. Em 1984, a Associação Brasileira de Psiquiatria opôs-se a qualquer discriminação e preconceito contra gays e lésbicas. No mesmo ano, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e, no ano seguinte, o Conselho Federal de Medicina, proibiram a classificação como desvio ou doença. Em 1990, a OMS retirou a homossexualidade da CID (Classificação Internacional de Doenças). Portanto, a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio, nem perversão. Hoje, os estudos falam em homossexualidade e não homossexualismo, justamente porque algumas palavras com final ismo dão ideia de doença, como no caso de alcoolismo e raquitismo, por exemplo. Então, é importante usar apenas o termo homossexualidade. (DENIS, 2007, p. 29).

Podemos afirmar que toda essa transição pela qual a homoafetividade passou acompanhou a transformação do próprio entendimento da sociedade sobre o que é orientação afetivo-sexual e a sexualidade, o que foi fragmentando cada vez mais a concepção repleta de dogmas e preconceitos para abrigar um reconhecimento mais humano da condição vivida pelo homoafetivo.

Parte da atual doutrina jurídica sugeriu, no começo do séc. XXI, com base no neoconstitucionalismo e no ativismo dos direitos humanos, uma nova concepção sobre a homoafetividade, como bem doutrina Maria Berenice Dias, aduzida pela: “mistura de fatores, resultado de influências biológicas, psicológicas e socioculturais, sem peso maior para uma ou para outra – nunca uma determinação genética ou uma opção racional.” (DIAS, 2009).

A despatologização da homoafetividade foi aos poucos reduzindo a intolerância e o preconceito social. A possibilidade dos homoafetivos se organizarem e reivindicarem seus direitos auferiu uma maior visibilidade ao movimento das lésbicas, gays, biafetivos, travestis, transexuais, transgêneros, intersexuais e assexuais (LGBTTTIS).

Entretanto, no Brasil, ainda há certa oposição discriminatória contra os homoafetivos. Percebe-se que há, ainda, muito preconceito, pois persiste a noção de que a homoafetividade é uma ameaça à heteroafetividade e ao conceito tradicional de família, o que fortalece o estigma social sofrido pelo homoafetivo.

Apesar disso, é dever do Estado contribuir para que sejam potencialmente minimizados o preconceito e a discriminação ao homoafetivo e não permitir que seus direitos sejam ainda mais restringidos, embasados por dogmas, preceitos e pré-conceitos não recepcionados pela nova ordem jurídico-constitucional, inaugurada pela Constituição da República de 1988. Desta forma, independentemente da orientação afetivo-sexual do sujeito, o Estado deve reconhecer a igualdade por meio de suas leis e erradicar quaisquer formas de discriminação.

Neste entendimento, Maria Berenice Dias:

A identificação da orientação sexual está condicionada à identificação do sexo da pessoa escolhida em relação a quem escolhe, e tal escolha não pode ser alvo de tratamento diferenciado. Se todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, aí está incluída, por óbvio, a orientação sexual que se tenha. O exercício da sexualidade, a prática da conjunção carnal ou a identidade sexual não é o que distingue os vínculos afetivos. A identidade ou diversidade do sexo do par gera espécies diversas de relacionamento. Assim, melhor é falar em relações homoafetivas. (DIAS, 2009, P. 09).

O reconhecimento do conceito de homoafetividade, construído pela doutrina da grande jurista e ex-desembargadora brasileira Maria Berenice Dias[6], é uma das mais inovadoras propostas do séc. XXI. A homoafetividade vai além da concepção de que a relação entre homoafetivos é estritamente sexual, demonstrando que nestas relações também existe o amor, o companheirismo e a cumplicidade. O afeto é um dos valores mais importantes da sociedade, é um vínculo criado em virtude da intenção e do desejo de duas pessoas, não importando seu sexo, gênero ou orientação afetivo-sexual, conviverem afetivamente como família.

A homoafetividade e a família homoafetiva devem ser refletidas. Discutir a concepção de homoafetividade contraria nosso preconceito e imprime a visão de que a relação entre homoafetivos também está fundamentada no afeto e não apenas no sexo.

2.2 O conceito de família

As interações e relações entre familiares, cônjuges e companheiros e parentes são tutelados pelo direito de família. O direito de família pode ser definido como um conjunto de princípios, direitos e costumes que visa aperfeiçoar a sociedade em relação à instituição e mantença da entidade familiar, resguardando-a pela importância e influência que representa no desenvolvimento da personalidade e na conduta dos sujeitos.

2.2.1 A evolução da família e a família homoafetiva

É inegável que a estrutura familiar sofreu, ao longo dos séculos, uma sedimentação de sua concepção-modelo. Pereira e Silva, citado por Sérgio Domingos (2008), doutrina que, desde a pré-história, as sociedades primitivas se apoderaram da imagem de autoridade do chefe da sociedade familiar. A partir deste período, a figura paterna tomou corpo de divindade. O modelo de família, então, assentou-se sobre os marcos patriarcal e heterossexual. (DOMINGOS, 2008).

O casamento surgiu como uma forma de institucionalizar e formalizar uma convenção social, que esteve subordinada, dentre outros aspectos, a uma concepção religiosa, o que sedimentou ainda mais a concepção de um molde-familiar.

Essa formatação de família foi se fortalecendo ao longo dos séculos, admitida por várias sociedades clássicas, sendo resumida a uma relação doméstica orientada pelo patrimônio e com uma natureza patriarcal, cabendo à mulher subordinar-se ao homem, o chefe familiar. Este modelo de família, portanto, seguia um molde patriarcal, heterossexual, hierarquizado e matrimonializado. (DOMINGOS, 2008).

Transcorrendo a idade média, temos que essa concepção de família foi estimulada pelos ensinamentos doutrinários de instituições religiosas. A doutrina da igreja se baseava na mantença do enlace matrimonial e na garantia da perpetuação das gerações através da procriação.

João Batista Villela, citando Sérgio Domingos, doutrina que: “(...) perdemos a capacidade de ler a família fora da ótica do Estado e da Religião. No entanto, a família não só precede ao Estado e à Religião, como é dotada de um dinamismo que dispensa um e outra, para se constituir e sobreviver.” (VILLELA apud DOMINGOS, 2008, p. 245).

Já no fim da idade média, temos que essa hierarquia familiar, recaída sobre a figura e o poder do homem, o chefe familiar, entrou em declínio. Na idade moderna, este modelo de família começou a ruir, a partir do momento em que a mulher saiu da situação de submissão e começou a exercer atividades laborativas fora de sua residência. (DOMINGOS, 2008).

A busca pela inserção da mulher como um importante ator social representou uma ruptura da visão-modelo de entidade familiar, e a concepção da família como um núcleo irradiador do amor e do companheirismo, fruto da intenção de duas pessoas celebrarem e institucionalizarem seus laços de afetividade, começou a se consolidar.

Novos contornos de família foram moldados em virtude das urgentes demandas sociais, trazendo para dentro do conceito de família novos valores, estruturas e composições. O séc. XX, em especial, o período pós 2ª guerra, foi um divisor de águas para a institucionalização dos novos moldes de família, advindos da ruptura do modelo clássico pré-determinado. O casamento ou a procriação deixaram de servir de parâmetro para se conceituar o que é uma família.

A família passou então a ser sedimentada por uma visão pluralista, que a considera como uma expressão doméstica do amor e da afetividade, conformando-se como aquela que não somente é constituída por casais heteroafetivos cisgêneros casados, mas também por famílias homoafetivas, socioafetivas, reconstruídas ou rearranjadas, monoparentais, anaparentais e informais. 

Pierre Bourdieu, citado por Fátima Maria Marins Guerreiro, teoriza que:

A definição de família, antes de tudo, é ‘uma descrição construída pela realidade social’ na qual está inserida. O dia-a-dia dos homens em sociedade cria fatos reais de sua convivência na busca da felicidade, onde um conjunto de indivíduos aparentemente ligados entre si, através do casamento, filiação biológica ou por adoção (parentesco) ou coabitação, vivendo sob um mesmo teto, configuram uma realidade. Logo, não cabe impor modelos ou determinados padrões, mas tão somente aceitar a realidade social detectável. Assim deve proceder quem a analisa ou pesquisa; olhar a sociedade pelo que ela é, sem preconcepções de modelos ou padrões. (BOURDIEU apud GUERREIRO, 2007, p. 35).

Desta forma, foi necessário abandonar o conceito idealizado de família, para dar lugar a outros arranjos familiares que estão em surgimento e que refletem a diversidade das relações sociais.

A família homoafetiva é uma das protagonistas destas novas configurações familiares insurgidas na sociedade, porém, é ainda cercada de estigmas. Ela deve ser analisada sob prismas livres de preconceitos para ser efetivamente reconhecida como entidade familiar, uma vez que, como mencionado, a transformação do conceito de família se fundamenta no pluralismo familiar.

2.2.2 A homoafetividade e o conceito normativo de família

A CR/88 expressa, como um de seus fundamentos basilares, o respeito à dignidade da pessoa humana: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana.” (BRASIL, 1988).

A observância irrestrita da dignidade da pessoa humana se inseriu como uma urgência social denunciada pelos horrores das guerras mundiais, em especial a segunda, que dizimou milhares de pessoas. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento da ONU responsável por dar início ao processo de protagonismo dos direitos humanos no séc. XX, promoveu extremo interesse ao indivíduo em detrimento ao Estado, reconhecendo a dignidade da pessoa humana como pressuposto e fundamento para a liberdade, justiça e a paz no mundo. (TEIXEIRA, 2008).

O Brasil, signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, tornou-se integrante do sistema global e interamericano de proteção e promoção dos direitos humanos. Em consonância com as convenções e pactos internacionais ratificados pelo Brasil[7], a CR/88, apesar de consagrar tardiamente a tutela dos direitos humanos, em razão, principalmente, do golpe militar de 1964, buscou trazer o indivíduo e a dignidade humana ao centro do ordenamento jurídico.

Segundo Araújo, citado por Pacheco: “de todos os princípios constitucionais, o princípio da dignidade da pessoa humana e o da promoção do bem de todos merecem a nossa maior atenção, quer pelo seu alcance, quer pela sua clareza (...).” (PACHECO apud ARAÚJO, 2005, p. 17).

Além disso:

O fundamento e o fim de todo o direito é o homem em qualquer de suas representações: [...] Vale dizer que todo o direito é feito pelo homem e para o homem, que constitui o valor mais alto de todo o ordenamento jurídico. Sujeito primário e indefectível do direito, ele é o destinatário final tanto da mais prosaica quanto da mais elevada norma jurídica. Por essa razão, todos os princípios constitucionais encontram sua razão e origem no homem, fundamento de todo o dever ser. E, justamente por ser fundamento, o homem não constitui, em si, um princípio, pois o fundamento não é um princípio, mas a justificação radical dos próprios princípios. A humana condição não fundamenta e justifica o que é, mas o que deve ser, tanto no campo da moral como no do direito. No plano jurídico, como em tudo mais, o homem é medida de todas as coisas. A finalidade última do direito é a realização dos valores do ser humano. Pode-se, pois, dizer que o direito mais se aproxima de sua finalidade quanto mais considere o homem, em todas as suas dimensões, realizando valores que lhe são mais caros. (PACHECO apud ANDRADE, 2005, p. 18).

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É importante entendermos que o constituinte, ao conjugar a ratificação de convenções e tratados internacionais com o desenvolvimento do princípio da dignidade da pessoa humana e a adequação do ordenamento jurídico aos princípios fundamentais e ao Estado Democrático e Social de Direito, promoveu uma tutela integral à pessoa humana. Desta forma, a ordem principiológica constitucional propõe um discurso agregador, não expressando, de nenhuma forma, qualquer distinção entre os indivíduos. Segundo o art. 5º da CR/88: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.” (BRASIL, 1988).

A igualdade e a liberdade, portanto, integram todos os aspectos inerentes ao indivíduo. Em relação ao homoafetivo, podemos aduzir que a aplicação destes princípios deslegitima qualquer ação ou omissão do Estado que vise segregá-lo ou discriminá-lo por sua orientação afetivo-sexual. A afetividade e a sexualidade são próprias do humano, não podem ser excluídas do amparo estatal, ao contrário, devem ser garantidas a liberdade, a igualdade e o respeito às diferenças. A proteção ao homoafetivo, desta forma, encontra fundamento nos princípios da igualdade e da liberdade, pela vedação expressa a quaisquer formas de discriminação. Conforme previsão constitucional do artigo 3º, inciso IV: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] IV – Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” (BRASIL, 1988).

Ademais, o direito a sexualidade é direito personalíssimo. A dignidade afetivo-sexual é própria da personalidade de todos os sujeitos de direito, sendo, portanto, conforme artigo 11 do Código Civil de 2002, direito intransmissível e irrenunciável: “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.” (BRASIL, 2002). Os direitos personalíssimos também recebem o influxo principiológico da solidariedade, da autodeterminação, da intimidade e da não descriminação, harmonizados ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Desta forma, a lei não deve ou pode limitar a dignidade afetivo-sexual. As questões relativas a gênero, orientação afetivo-sexual e sexo extrapolam os limites da atividade legislativa e não podem ser reduzidas pela norma jurídica. Não há, portanto, base legal para definir, classificar ou limitar a homoafetividade, e nem mesmo para compará-la, não cabendo ao legislador, à lei ou a qualquer instituição social definir seus limites ou defender que as relações daí advindas não poderão ser tuteladas pelo direito.

Assim como ocorre com a homoafetividade, é impossível pensarmos que a atividade legislativa e, por conseguinte, as leis, podem descrever ou conceituar o que é família. Conforme concluído anteriormente, a família, cuja constituição decorre de uma necessidade socioafetiva variante, passou a ser vista de forma pluralista, entendida como uma expressão doméstica do amor e da afetividade, não importando como é constituída.

A CR/88, por sua vez, tratou da família, mas sem conceituá-la. No art. 226, caput, a Constituição apenas dispõe que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (BRASIL, 1988).  Não cuidou o legislador, assim, de dizer expressamente o que é ou o que compõe uma família.

Entretanto, apesar da ausência de expressa previsão legal, o que nos leva a interpretar que o legislador não ousou limitar o que é família, o discurso conservador, manifestado em vários diplomas legais, inclusive no Estatuto da Família, parte do pressuposto que, nos parágrafos 3º e 4º do artigo 226 da CR/88, o legislador supostamente definiu qual seria a concepção legal de família:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...] § 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. (BRASIL, 1988).       

A lei nº 9.278/1996, que regula o §3º, do artigo 226, da CR/88, alude em seu art. 1º que: “é reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família” (BRASIL, 1996).  

Todavia, a interpretação dos referidos artigos, aliada à maximização dos direitos humanos e à valorização da dignidade da pessoa humana, permite-nos concluir de forma diversa. Os parágrafos que seguem o artigo 226 não definem o que é família, mas apresentam exemplos de quais relações são tutelas pelo ordenamento jurídico e que englobam o conceito de entidade familiar, mencionada sem qualquer qualificação no caput do referido artigo.

Sobre este artigo, é lição de Maria Berenice Dias (2014, p. 02):

Não há como afirmar que o art. 226, § 3º, da Constituição Federal, ao mencionar a união estável formada entre um homem e uma mulher, reconheceu somente esta convivência como digna da proteção do Estado. O que existe é uma simples e desnecessária recomendação para transformá-la em casamento. Em nenhum momento foi dito não existirem entidades familiares formadas por pessoas do mesmo sexo. Exigir a diferenciação de sexos do casal para haver a proteção do Estado é fazer distinção odiosa, postura nitidamente discriminatória que contraria o princípio da igualdade, ignorando a existência da vedação de diferenciar pessoas em razão de seu sexo. (DIAS, 2014, p. 02)

Ainda que se entenda de modo diverso, como a lei não menciona expressamente o que é família, deve-se buscar visualizar suas extensões na própria ordem principiológica adotada pela Constituição, que, como já mencionado, pauta-se principalmente no protagonismo dos direitos humanos e na dignidade da pessoa humana. Definir que a família é formada apenas por homem e mulher cisgêneros seria pensar de modo diverso.

A interpretação do artigo 266 da CR/88 não pode ser concebida de forma restritiva, uma vez que a constituição da família é de interesse público e deve ser vislumbrada primordialmente sob a ótica da afetividade. A aplicação da interpretação reducionista à norma constitucional contida no artigo 226, §3º, não se harmoniza com a ordem principiológica constitucional, uma vez que contraria todo o esforço do constituinte em elevar ao máximo grau a proteção à dignidade da pessoa humana, ao segregar e discriminar a constituição de outras entidades familiares, como a formada por pares homoafetivos. Como fundamento ao reconhecimento do pluralismo familiar, a própria CR/88, no artigo 226, reconhece e confere proteção legal a outras duas novas manifestações de família: a união estável e a família monoparental.

Portanto, o rol constitucional de previsão das entidades familiares não pode ser encarado como taxativo, mas meramente exemplificativo, uma vez que a própria Constituição busca trazer a dignidade da pessoa humana ao seu centro gerador e afastar do conceito de família os valores patrimoniais que estão incutidos nas Constituições anteriores. Ao admitir novas composições familiares, a própria Constituição afastou a idealização conservada do modelo tradicional de família.

Assim como a CR/88, o CC/02 também seguiu a mesma lógica: não definiu expressamente o que é família e tutelou algumas relações jurídicas dela decorrentes, como o casamento e a união estável. No Código Civil, o art. 1.723 reproduz as disposições da Constituição de 1988, o que é utilizado como fundamento pela parcela conservadora da sociedade: “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família” (BRASIL, 2002). Contudo, a interpretação deste dispositivo não nos permite concluir, mais uma vez, que o legislador cuidou de definir expressamente que uma família é formada exclusivamente por pares heteroafetivos cisgêneros. Apenas cuidou a lei de mencionar que também é considerada família a união estável heteroafetiva cisgênero. É possível que, ao silenciar sobre o casamento e união estável homoafetivas, o legislador tenha, intencionalmente, adiado uma discussão que foi retomada anos mais tarde, em 2011, conforme veremos.

De toda forma, não há fundamentos jurídicos que sustentem o entendimento de que os artigos 226, §3º, da CR/88, 1º da Lei 9.278/1996 e 1.723 do CC/02 definem expressa e taxativamente o que é família. Por outro lado, é inegável que as normas do ordenamento jurídico brasileiro privilegiam a entidade constituída entre cônjuges, pais e filhos ou qualquer dos pais e filhos. Vejamos, por exemplo, o artigo 25 da Lei nº 8.069/90, Estatuto da Criança, que a caracteriza como família natural:

Art. 25. Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes. Parágrafo único.  Entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade. (BRASIL, 1990).

Apesar de conceituar o que seja a família natural, o parágrafo único do referido artigo indica que as disposições legais abrangem também outras composições familiares, o que demonstra a intenção do legislador de, ao menos, não restringir o conceito de família.

No tocante ao tratamento privilegiado dado pelo ordenamento jurídico brasileiro à família heteroafetiva, temos, a título exemplificativo, a ordem de vocação hereditária prevista no regime sucessório do CC/02 (artigo 1.829 e seguintes) e a definição de quem são os dependentes e, portanto, beneficiários do Regime Geral de Previdência Social (artigo 16 e seguintes da Lei 8.213/1991).

O conceito normativo de família, por todo exposto, não é restritivo. As leis do nosso ordenamento jurídico que tratam sobre questões afetas à família não a conceituam, apenas exemplificam quais entidades são consideradas como familiares. Nosso sistema legal não somente não conceitua o que é família, como também não dispõe (e nem poderia) sobre quais requisitos seriam necessários para que ela seja formada. Desta forma, reduzir o conceito de família à entidade heteroafetiva cisgênero, constituída entre estes ou qualquer destes e seus filhos seria atribuir ao conceito de família um pressuposto moral (que gera discriminação, o que é vedado constitucionalmente), que é o sexo de seus componentes. E, conforme visto, não há base legal para tal interpretação e nem ao menos parece ser esta a vontade do legislador.

Uma vez que podemos considerar o afeto como aspecto basilar e indissociável da família, devemos atribuir às novas entidades os mesmos efeitos jurídicos relegados à composição tradicional, que recebe um tratamento privilegiado pela lei. É o afeto que certamente constituirá uma família, não importando como ela se manifesta na sociedade. Amparados pelo ordenamento jurídico e pela sua interpretação teleológica e lógico-sistêmica, conclui-se que os homoafetivos têm o direito de constituir, com base e proteção legal, uma família.

2.2.2.1 A inovadora concepção de família trazida pela Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha

A Lei 11.340 de 2006, mais conhecida como lei Maria da Penha, é uma lei federal brasileira que visa coibir a violência doméstica contra a mulher.[8]

Inspirada por ordenamentos jurídicos de países mais desenvolvidos, onde a observância dos tratados internacionais se deu de forma mais célere, a Lei Maria da Penha trouxe uma importante concepção de família, mais adequada às urgentes propostas sociais de acolhimento das novas formações de família. Em seu art. 5ª, inciso II, a lei propõe que:

Art. 5o  Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: (...) II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa. (BRASIL, 2006).

Nos termos da lei, a família também é constituída por afinidade ou vontade expressa e não somente por laços naturais ou biológicos, como a consanguinidade.

Este entendimento comunga, de toda forma, com o pluralismo familiar, ao invés da idealização matrimonialista e heterrosexualizada que por muito tempo definiu as famílias. A transformação do conceito de família, neste caso, representa uma ruptura à visão conservadora imprimida nas nossas leis e na própria sociedade e contrapõe certos valores que estão inseridos na cultura brasileira. A lei Maria da Penha, portanto, reafirma os princípios previstos na Constituição de 1988 e busca adequar a instituição família ao ideal de justiça, à liberdade, à igualdade e ao pluralismo inerente às interações sociais.

2.3 A união estável e casamento civil homoafetivos

Conforme visto acima, não há no ordenamento jurídico brasileiro um conceito legal que defina expressamente o que é ou quais são os pressupostos para a constituição de uma família. Ademais, não há um rol taxativo que indique, determine ou enumere quais entidades ou composições sociais são consideradas como entidade familiar.

Concluiu-se, portanto, que não há óbice legal para impedir que as entidades constituídas pela relação homoafetiva sejam consideradas como família.

Analisar-se-á em seguida o reconhecimento jurídico da união estável e do casamento civil homoafetivos, que representaram um importante marco na luta civil do movimento LGBTTTIA.

2.3.1 O reconhecimento jurídico da união estável e casamento civil homoafetivos

A união estável e o casamento civil são, no nosso ordenamento jurídico, dois institutos que representam composições familiares. Não há entre eles qualquer hierarquia, ambos recebem tutela legal.

O casamento civil e a união estável têm em comum a constituição de uma livre união entre duas pessoas, sendo que neste, estas pessoas não estão ligadas pelo ato solene do matrimônio, que é a manifestação pública do interesse de duas pessoas em estabelecer vínculo conjugal perante autoridade estatal (BRASIL, 2002), conforme o art. 1.514 do CC/02. A união estável, por sua vez, conforme o art. 1.723 do CC/02, configura-se pela convivência pública, contínua e duradoura, e estabelecida com o objetivo de constituição de família.

A união estável no Brasil, diferentemente do casamento civil, passou por diversas transformações substanciais. “Antes do atual Código Civil, a doutrina e a jurisprudência utilizavam a expressão concubinato e concubino(a) como gênero, abrangendo o companheiro(a), concubino(a) e amante, relações extramatrimoniais” (CARVALHO, 2013, p. 384).

Ou seja, o concubinato era utilizado para denotar: a existência de união estável; as relações entre pessoas casadas, mas separadas de fato; e as relações entre pessoas que já tinham outro matrimônio. Como leciona Maria Berenice Dias (2009, p. 15): “a palavra concubinato carrega consigo o estigma de relacionamento alvo de preconceito. Historicamente, sempre traduziu relação escusa e pecaminosa, quase uma depreciação moral”.

Pelo tratamento generalizado sob a denominação concubinato, que era encarada como relação extramatrimonial, de caráter adulterino, foi necessário que se fizesse uma distinção entre as relações extramatrimoniais para que fosse possível reconhecer a formação de outros núcleos familiares, como daqueles que viviam juntos, mas de forma irregular (não eram casados, mas unidos civilmente).

A CR/88, recepcionando o princípio do pluralismo familiar, mediou as discussões travadas na doutrina e na jurisprudência ao prever, no artigo 226, §3º, que a união estável heteroafetiva cisgênero é também reconhecida como entidade familiar. E a atribuição da expressão união estável à relação antes chamada de concubinato visou afastar o estigma social que acompanhava este termo. Recebendo agora a tutela do Estado, a união estável, que antes integrava apenas o direito obrigacional (por ser considerada como sociedade de fato), se tornou entidade familiar. Para ser configurada, bastaria apenas a vida em comum, laços afetivos, coabitação e a intenção em constituir família.

O novo Código Civil, por sua vez, propôs a seguinte distinção entre relações extramatrimoniais, como leciona Dimas Messias de Carvalho (2014, p. 384):

União estável ou concubinato puro – são os relacionamentos estáveis havidos entre pessoas livres, não comprometidas com deveres matrimoniais ou outra relação concubinária, ou se casados, estejam separados de fato (art. 1723, CC), com atributos de entidade familiar; Concubinato impuro – são os demais, onde existe vínculo efetivo do casamento com outra pessoa ou várias relações concubinárias (RT458/224 e arts. 1.723, §1º, CC), incluindo, entre estes, os incestuosos e os demais impedidos de se casarem, posto que não pode ser convertido em casamento. São, portanto, os concubinos (amantes) e os impedidos de se casarem, exceto o separado de fato, e que são excluídos da proteção legal (art. 1.727, CC). (...) Assim, não cabe no conceito legal de união estável ou concubinato puro as uniões adulterinas, incestuosas e as recentes ou transitórias (sem tempo para caracterizar estabilidade).

Portanto, a CR/88 e o CC/02 tratam o casamento civil e a união estável heteroafetiva cisgênero como entidade familiar, silenciando sobre sua extensão aos casais homoafetivos. Conforme concluído anteriormente, não há vedação legal para o casamento ou união estável homoafetiva, e a falta de previsão legal pode ser encarada, salvo melhor juízo, como uma forma que o Legislativo encontrou de adiar as discussões sobre o reconhecimento igualitário de direitos aos homoafetivos.

A utilização do critério de sexo como pressuposto para caracterizar a união estável e o casamento civil contraria a dignidade humana e sexual, a liberdade, igualdade e o pluralismo familiar, além de violar os direitos à intimidade e à vida privada. E o direito não pode, a seu turno, servir como instrumento ideológico reafirmador de valores segregadores.

Proclama Maria Berenice Dias (2014, p.10):

Preconceitos de ordem moral não podem levar à omissão do Estado. Nem a ausência de leis nem o conservadorismo do Judiciário servem de justificativa para negar direitos aos vínculos afetivos que não tenham a diferença de sexo como pressuposto. É absolutamente discriminatório afastar a possibilidade de reconhecimento das uniões estáveis homossexuais. São relacionamentos que surgem de um vínculo afetivo, gerando o enlaçamento de vidas com desdobramentos de caráter pessoal e patrimonial, estando a reclamar um regramento legal.

Prossegue:

As uniões homoafetivas são uma realidade que se impõe e não podem ser negadas, estando a reclamar tutela jurídica, cabendo ao Judiciário solver os conflitos trazidos. Incabível que as convicções subjetivas impeçam seu enfrentamento e vedem a atribuição de efeitos, relegando à marginalidade determinadas relações sociais, pois a mais cruel consequência do agir omissivo é a perpetração de grandes injustiças. (DIAS, 2000, p. 17).

Ainda que não haja expressa previsão legal permissiva à união homoafetiva, deve o juiz, ante a lacuna na lei, valer-se da analogia, dos costumes e dos princípios gerais do direito. Desta forma, há fundamentos jurídicos que sustentam o reconhecimento da união estável aos casais homoafetivos, uma vez que nossa legislação confere respaldo legal às formas plurais de família. Deve-se afastar a compreensão de que a união homoafetiva está pautada em relações estritamente sexuais ou de interesse, para ser reconhecida como uma relação de efetividade e respeito mútuo.

Em face da resistência de ver a afetividade nas relações homossexuais, foram elas relegadas ao campo obrigacional e rotuladas de sociedades de fato a dar ensejo a mera partilha dos bens amealhados durante o período de convívio, mediante a prova da efetiva participação na sua aquisição. (DIAS, 2003, p. 17).

No Brasil, no âmbito legislativo, é importante frisar a atuação do Estado do Rio Grande do Sul no tratamento inovador dado à diversidade afetivo-sexual e ao direito homoafetivo. Com a Lei Estadual nº 11.872, de 19 de dezembro de 2002, que dispõe sobre a promoção e reconhecimento da liberdade de orientação, prática, manifestação, identidade e preferência sexual, o Estado gaúcho já colocava em pauta o tratamento digno e igualitário ao homoafetivo, ao bissexual e ao transgênero, nos seguintes termos:

Art. 2º - Consideram-se atos atentatórios à dignidade humana e discriminatórios, relativos às situações mencionadas no art. 1º, dentre outros: (...) VIII - proibir a livre expressão e manifestação de afetividade do cidadão homossexual, bissexual ou transgênero, sendo estas expressões e manifestações permitidas aos demais cidadãos.

Com fulcro em uma lei que veda expressamente a discriminação, o Rio Grande do Sul promoveu um importante avanço no tratamento das novas urgências relacionadas à dignidade afetivo-sexual. Esta lei foi importante no sentido de fomentar uma temática que recebeu notoriedade no Brasil somente anos mais tarde.

Além da atuação legislativa, o Tribunal do Rio Grande do Sul foi o responsável por proferir inúmeras sentenças que reconheceram a união homoafetiva, adequando seu entendimento à afirmação da cidadania afetivo-sexual prevista na legislação estadual.

Aduz Roberto Arriada Lorea (2014) que:

Com absoluto ineditismo, a Corregedoria-Geral da Justiça, do TJRS, através do Provimento nº 06/2004, assegurou que “as pessoas plenamente capazes, independente da identidade ou oposição de sexo, que vivam uma relação de fato duradoura, em comunhão afetiva, com ou sem compromisso patrimonial, poderão registrar documentos que digam respeito a tal relação”. Foi, sem dúvida, um passo importante no sentido de democratizar o acesso à tutela estatal, assegurando tratamento igualitário e revelando a orientação sexual do cidadão como um indiferente legal. Contudo, ainda não se alcançara a solução definitiva – e justa – para a questão das uniões entre pessoas do mesmo sexo.

O Poder Judiciário do Rio Grande do Sul também propôs, de forma emblemática, a competência dos juizados especializados da família para apreciar as questões afetas às uniões homoafetivas. Ou seja, o judiciário reconheceu a união homoafetiva como família. A transformação deste entendimento na jurisprudência gaúcha vem se consolidando desde o final do século passado, em um momento em que as questões acerca da homoafetividade não eram debatidas, ainda que de forma incipiente.

O Brasil acompanhou uma morosa caminhada em relação ao reconhecimento de direitos aos homoafetivos, em especial a união estável e o casamento. A omissão do Legislativo incorreu no ajuizamento de diversas ações que visavam o reconhecimento da família homoafetiva, para efeitos no direito de família, sucessório e previdenciário.

Apesar da atuação inovadora do Rio Grande do Sul, o divisor de águas para a situação jurídico-social dos homoafetivos no Brasil veio somente em maio de 2011. O Supremo Tribunal Federal equiparou a união homoafetiva às uniões estáveis heteroafetivas cisgênero (tuteladas pela CR/88), adotando uma interpretação não-reducionista do conceito de família, eliminando o preconceito quanto à orientação sexual e reconhecendo a liberdade para dispor da própria sexualidade como direito fundamental. (CARVALHO, 2014, p. 401).

A Suprema Corte decidiu conjuntamente, em 05 de maio de 2011, a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, julgando-as procedentes, com eficácia erga omnes e efeito vinculante.

Vejamos a ementa do julgamento conjunto das ações constitucionais:

1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. Encampação dos fundamentos da ADPF nº 132-RJ pela ADI nº 4.277-DF, com a finalidade de conferir “interpretação conforme à Constituição” ao art. 1.723 do Código Civil. Atendimento das condições da ação. 2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO Supremo Tribunal Federal Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que institui a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil. O documento pode ser acessado no endereço eletrônico http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/ sob o número 1319703. ADI 4.277 / DF DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos”. Silêncio normativo da Carta Magna a respeito do concreto uso do sexo dos indivíduos como saque da kelseniana “norma geral negativa”, segundo a qual “o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido”. Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana”: direito a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea. 3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos 2 Supremo Tribunal Federal Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que institui a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil. O documento pode ser acessado no endereço eletrônico http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/ sob o número 1319703. ADI 4.277 / DF ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por “intimidade e vida privada” (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas. 4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS DE “ENTIDADE FAMILIAR” E “FAMÍLIA”. A referência constitucional à dualidade básica homem/mulher, no §3º do seu art. 226, deve-se ao centrado intuito de não se perder a menor oportunidade para favorecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia no âmbito das sociedades domésticas. Reforço normativo a um mais eficiente combate à renitência patriarcal dos costumes brasileiros. Impossibilidade de uso da letra da Constituição para ressuscitar o art. 175 da Carta de 1967/1969. Não há como fazer rolar a cabeça do art. 226 no patíbulo do seu parágrafo 3 Supremo Tribunal Federal Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que institui a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil. O documento pode ser acessado no endereço eletrônico http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/ sob o número 1319703. ADI 4.277 / DF terceiro. Dispositivo que, ao utilizar da terminologia “entidade familiar”, não pretendeu diferenciá-la da “família”. Inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico. Emprego do fraseado “entidade familiar” como sinônimo perfeito de família. A Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese sub judice. Inexistência do direito dos indivíduos heteroafetivos à sua não-equiparação jurídica com os indivíduos homoafetivos. Aplicabilidade do §2º do art. 5º da Constituição Federal, a evidenciar que outros direitos e garantias, não expressamente listados na Constituição, emergem “do regime e dos princípios por ela adotados”, verbis: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. 5. DIVERGÊNCIAS LATERAIS QUANTO À FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO. Anotação de que os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso convergiram no particular entendimento da impossibilidade de ortodoxo enquadramento da união homoafetiva nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas. Sem embargo, reconheceram a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma de entidade familiar. Matéria aberta à conformação legislativa, sem prejuízo do reconhecimento da imediata auto-aplicabilidade da Constituição. 6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de “interpretação 4 Supremo Tribunal Federal Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que institui a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil. O documento pode ser acessado no endereço eletrônico http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/ sob o número 1319703. ADI 4.277 / DF conforme à Constituição”. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva. (BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Julgamento Conjunto ADI nº 4.277/DF e ADPF nº 132/RJ. Relator: Ministro Ayres Britto. DJ: 05/05/2011).  

Este precedente (proferido com eficácia vinculante) foi um importante marco jurídico para o direito homoafetivo. O mais qualificado órgão jurisdicional brasileiro reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar, além de proibir a discriminação das pessoas em razão do sexo e da orientação sexual. Inclusive, ficou decidido no julgado que a CR/88 não empresta significado ao substantivo família, reconhecendo e dando tratamento constitucional à família homoafetiva.

A partir da decisão do STF, gerou-se grande discussão sobre a possibilidade do casamento civil homoafetivo, diretamente ou por conversão da união estável homoafetiva, com base na Constituição de 1988, que determina que a lei deverá facilitar a conversão da união estável em casamento. Aplicando essa interpretação, os casais homoafetivos passaram a buscar a conversão da união estável em casamento ao juiz ou a habilitação para o casamento junto aos cartórios. (CARVALHO, 2014, p. 404).

Alguns juízes passaram a autorizar a conversão da união homoafetiva em casamento ou habilitação para o casamento homoafetivos. “O primeiro casamento homoafetivo foi realizado em Jacareí/SP, em 28 de junho de 2011 (dois homens) e o segundo em Brasília, em 29 de junho de 2011 (duas mulheres).” (CARVALHO, 2014, p. 405).

No mesmo ano, em outubro de 2011, foi a vez do Superior Tribunal de Justiça reconhecer a um casal homoafetivo o direito ao casamento civil, inspirado no entendimento do STF e na interpretação principiológica da CF/88. Vejamos a ementa do Recurso Especial nº 1.183.378, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão:

DIREITO DE FAMÍLIA. CASAMENTO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO (HOMOAFETIVO). INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. INEXISTÊNCIA DE VEDAÇÃO EXPRESSA A QUE SE HABILITEM PARA O CASAMENTO PESSOAS DO MESMO SEXO. VEDAÇÃO IMPLÍCITA CONSTITUCIONALMENTE INACEITÁVEL. ORIENTAÇÃO PRINCIPIOLÓGICA CONFERIDA PELO STF NO JULGAMENTO DA ADPF N. 132/RJ E DA ADI N. 4.277/DF. 1. Embora criado pela Constituição Federal como guardião do direito infraconstitucional, no estado atual em que se encontra a evolução do direito privado, vigorante a fase histórica da constitucionalização do direito civil, não é possível ao STJ analisar as celeumas que lhe aportam "de costas" para a Constituição Federal, sob pena de ser entregue ao jurisdicionado um direito desatualizado e sem lastro na Lei Maior. Vale dizer, o Superior Tribunal de Justiça, cumprindo sua missão de uniformizar o direito infraconstitucional, não pode conferir à lei uma interpretação que não seja constitucionalmente aceita. 2. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento conjunto da ADPF n. 132/RJ e da ADI n. 4.277/DF, conferiu ao art. 1.723 do Código Civil de 2002 interpretação conforme à Constituição para dele excluir todo significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família . 3. Inaugura-se com a Constituição Federal de 1988 uma nova fase do direito de família e, consequentemente, do casamento, baseada na adoção de um explícito poliformismo familiar em que arranjos multifacetados são igualmente aptos a constituir esse núcleo doméstico chamado "família", recebendo todos eles a "especial proteção do Estado". Assim, é bem de ver que, em 1988, não houve uma recepção constitucional do conceito histórico de casamento, sempre considerado como via única para a constituição de família e, por vezes, um ambiente de subversão dos ora consagrados princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Agora, a concepção constitucional do casamento - diferentemente do que ocorria com os diplomas superados - deve ser necessariamente plural, porque plurais também são as famílias e, ademais, não é ele, o casamento, o destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade. 4. O pluralismo familiar engendrado pela Constituição - explicitamente reconhecido em precedentes tanto desta Corte quanto do STF - impede se pretenda afirmar que as famílias formadas por pares homoafetivos sejam menos dignas de proteção do Estado, se comparadas com aquelas apoiadas na tradição e formadas por casais heteroafetivos. 5. O que importa agora, sob a égide da Carta de 1988, é que essas famílias multiformes recebam efetivamente a "especial proteção do Estado", e é tão somente em razão desse desígnio de especial proteção que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, ciente o constituinte que, pelo casamento, o Estado melhor protege esse núcleo doméstico chamado família. 6. Com efeito, se é verdade que o casamento civil é a forma pela qual o Estado melhor protege a família, e sendo múltiplos os "arranjos" familiares reconhecidos pela Carta Magna, não há de ser negada essa via a nenhuma família que por ela optar, independentemente de orientação sexual dos partícipes, uma vez que as famílias constituídas por pares homoafetivos possuem os mesmos núcleos axiológicos daquelas constituídas por casais heteroafetivos, quais sejam, a dignidade das pessoas de seus membros e o afeto. 7. A igualdade e o tratamento isonômico supõem o direito a ser diferente, o direito à auto-afirmação e a um projeto de vida independente de tradições e ortodoxias. Em uma palavra: o direito à igualdade somente se realiza com plenitude se é garantido o direito à diferença . Conclusão diversa também não se mostra consentânea com um ordenamento constitucional que prevê o princípio do livre planejamento familiar (§ 7º do art. 226). E é importante ressaltar, nesse ponto, que o planejamento familiar se faz presente tão logo haja a decisão de duas pessoas em se unir, com escopo de constituir família, e desde esse momento a Constituição lhes franqueia ampla liberdade de escolha pela forma em que se dará a união. 8. Os arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565, todos do Código Civil de 2002, não vedam expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não há como se enxergar uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a caros princípios constitucionais, como o da igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa humana e os do pluralismo e livre planejamento familiar.

9. Não obstante a omissão legislativa sobre o tema, a maioria, mediante seus representantes eleitos, não poderia mesmo "democraticamente" decretar a perda de direitos civis da minoria pela qual eventualmente nutre alguma aversão. Nesse cenário, em regra é o Poder Judiciário - e não o Legislativo - que exerce um papel contramajoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam das maiorias. Dessa forma, ao contrário do que pensam os críticos, a democracia se fortalece, porquanto esta se reafirma como forma de governo, não das maiorias ocasionais, mas de todos. 10. Enquanto o Congresso Nacional, no caso brasileiro, não assume, explicitamente, sua coparticipação nesse processo constitucional de defesa e proteção dos socialmente vulneráveis, não pode o Poder Judiciário demitir-se desse mister, sob pena de aceitação tácita de um Estado que somente é "democrático" formalmente, sem que tal predicativo resista a uma mínima investigação acerca da universalização dos direitos civis. 11. Recurso especial provido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Quarta Turma). RESP Nº 1.183.378/RS. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. DJ: 25/10/2011).

Apesar de inovadoras, as decisões do STF e do STJ não vincularam ou inspiraram todos os magistrados, juízes de paz e cartórios no Brasil. Foi necessária a intervenção do Conselho Nacional de Justiça, em maio de 2013, por meio da aprovação da Resolução 175, que dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento homoafetivo.

Art. 1º É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo. Art. 2º A recusa prevista no artigo 1º implicará a imediata comunicação ao respectivo juiz corregedor para as providências cabíveis. Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação.

Esta resolução do CNJ se tornou um marco na luta civil dos homoafetivos. O ordenamento jurídico brasileiro recebeu então o primeiro texto normativo a dispor expressamente sobre a possibilidade de constituírem matrimônio civil.

Outro marco jurídico importante no reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar foi o julgamento monocrático do Recurso Extraordinário nº 846.102/PR pela relatora Ministra Carmem Lúcia, em 16/03/2015. Nesta decisão, a relatora negou seguimento ao recurso extraordinário interposto contra um acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Paraná que reconheceu a união estável homoafetiva e o direito à adoção por casais homoafetivos.

Vejamos o relatório da referida decisão monocrática:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA E RESPECTIVAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS. ADOÇÃO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 4.277. ACÓRDÃO RECORRIDO HARMÔNICO COM A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO. Relatório 1. Recurso extraordinário interposto com base na al. a do inc. III do art. 102 da Constituição da República contra o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Paraná: “APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO POR CASAL HOMOAFETIVO. SENTENÇA TERMINATIVA. QUESTÃO DE MÉRITO E NÃO DE CONDIÇÃO DA AÇÃO. HABILITAÇÃO DEFERIDA. LIMITAÇÃO QUANTO AO SEXO E À IDADE DOS ADOTANDOS EM RAZÃO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DOS ADOTANTES. INADMISSÍVEL. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. APELO CONHECIDO E PROVIDO. 1. Se as uniões homoafetivas já são reconhecidas como entidade familiar, com origem em um vínculo afetivo, a merecer tutela legal, não há razão para limitar a adoção, criando obstáculos onde a lei não prevê.2. Delimitar o sexo e a idade da criança a ser adotada por casal homoafetivo é transformar a sublime relação de filiação, sem vínculos biológicos, em ato de caridade provido de obrigações sociais e totalmente desprovido de amor e comprometimento” (doc. 6). Os embargos de declaração opostos foram rejeitados. 2. O Recorrente alega contrariado o art. 226, § 3º, da Constituição da República, afirmando haver “duas questões jurídicas que emergem do contexto apresentado, para que se possa oferecer solução ao presente recurso: i) se há possibilidade de interpretação extensiva do preceito constitucional para incluir as uniões entre pessoas do mesmo sexo na concepção de união estável como entidade familiar; ii) se a interpretação restritiva do preceito constitucional incorreria em discriminação quanto à opção sexual. (…) Logicamente, nem dois homens e uma mulher; nem duas mulheres e um homem (fatos estes que não chegam a ser tão raros em certas regiões do Brasil); nem dois homens ou duas mulheres; foram previstos pelo constituinte como configuradores de uma união estável, ainda que os integrantes dessas relações, hipoteticamente consideradas, coabitem em caráter análogo ao de uma união estável, ou seja, de forma pública e duradoura, e estabelecida com o objetivo de constituição de família. (…) Com isso, a nível constitucional, pelo que foi dito, infere-se, em primeiro lugar, que não há lacuna, mas sim, uma intencional omissão do constituinte em não eleger (o que perdura até a atualidade) a união de pessoas do mesmo sexo como caracterizadores de entidade familiar. (…) E vamos além, a generalização, no lugar da individualização do tratamento jurídico a ser dado a situações materialmente diversas, poderá, sim, se não respeitadas e previstas as idiossincrasias e particularidades dos relacionamentos homoafetivos, vir em maior prejuízo que benefício aos seus integrantes, ferindo axialmente o princípio da igualdade, por tratar igualmente situações desiguais” (doc. 7). Apreciada a matéria trazida na espécie, DECIDO. 3. Razão jurídica não assiste ao Recorrente. 4. No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 132, Relator o Ministro Ayres Britto, por votação unânime, este Supremo Tribunal Federal deu interpretação conforme ao art. 1.723 do Código Civil, “para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva” (DJe 14.10.2011). No voto, o Ministro Relator ressaltou que “a Constituição Federal não faz a menor diferenciação entre a família formalmente constituída e aquela existente ao rés dos fatos. Como também não distingue entre a família que se forma por sujeitos heteroafetivos e a que se constitui por pessoas de inclinação homoafetiva. Por isso que, sem nenhuma ginástica mental ou alquimia interpretativa, dá para compreender que a nossa Magna Carta não emprestou ao substantivo “família” nenhum significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica. Recolheu-o com o sentido coloquial praticamente aberto que sempre portou como realidade do mundo do ser. Assim como dá para inferir que, quanto maior o número dos espaços doméstica e autonomamente estruturados, maior a possibilidade de efetiva colaboração entre esses núcleos familiares, o Estado e a sociedade, na perspectiva do cumprimento de conjugados deveres que são funções essenciais à plenificação da cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho. Isso numa projeção exógena ou extramuros domésticos, porque, endogenamente ou interna corporis, os beneficiários imediatos dessa multiplicação de unidades familiares são os seus originários formadores, parentes e agregados. Incluído nestas duas últimas categorias dos parentes e agregados o contingente das crianças, dos adolescentes e dos idosos. Também eles, crianças, adolescentes e idosos, tanto mais protegidos quanto partícipes dessa vida em comunhão que é, por natureza, a família. Sabido que lugar de crianças e adolescentes não é propriamente o orfanato, menos ainda a rua, a sarjeta, ou os guetos da prostituição infantil e do consumo de entorpecentes e drogas afins. Tanto quanto o espaço de vida ideal para os idosos não são os albergues ou asilos públicos, muito menos o relento ou os bancos de jardim em que levas e levas de seres humanos abandonados despejam suas últimas sobras de gente. Mas o comunitário ambiente da própria família. Tudo conforme os expressos dizeres dos artigos 227 e 229 da Constituição, este último alusivo às pessoas idosas, e, aquele, pertinente às crianças e aos adolescentes. Assim interpretando por forma não-reducionista o conceito de família, penso que este STF fará o que lhe compete: manter a Constituição na posse do seu fundamental atributo da coerência, pois o conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico. Quando o certo − data vênia de opinião divergente - é extrair do sistema de comandos da Constituição os encadeados juízos que precedentemente verbalizamos, agora arrematados com a proposição de que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Entendida esta, no âmbito das duas tipologias de sujeitos jurídicos, como um núcleo doméstico independente de qualquer outro e constituído, em regra, com as mesmas notas factuais da visibilidade, continuidade e durabilidade”. O acórdão recorrido harmoniza-se com esse entendimento jurisprudencial. Nada há, pois, a prover quanto às alegações do Recorrente. 5. Pelo exposto, nego seguimento a este recurso extraordinário (art. 557, caput, do Código de Processo Civil e art. 21, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal). (BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. REX 846.102/PR. Relatora: Ministra Carmem Lúcia. DJ: 05/03/2015).

O STF, portanto, entende que a união homoafetiva é família. O tratamento jurídico dado pelo Judiciário às uniões homoafetivas, entabulado pelo STF e acompanhando pelo STJ, CNJ e Tribunais de Justiça do país, coloca fim aos fundamentos de inconstitucionalidade ou ilegalidade da união estável e casamento civil homoafetivos.

O reconhecimento das uniões homoafetivas como família no Brasil, hoje, não se fundamenta somente na evolução do conceito de família, na ordem principiológica constitucional e no trabalho hermenêutico sobre as leis. O mais importante órgão jurisdicional do Brasil já reconheceu, em controle concentrado de constitucionalidade, a homoafetividade como fenômeno jurídico e a família homoafetiva como entidade familiar.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANDREY, Petterson. A família e a homoafetividade:: uma análise sociojurídica do conceito de família sob a ótica da afetividade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4774, 27 jul. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50976. Acesso em: 23 dez. 2024.

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