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A família e a homoafetividade:

uma análise sociojurídica do conceito de família sob a ótica da afetividade

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27/07/2016 às 12:24
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3 O ESTATUTO DA FAMILIA 

Tecidas as principais considerações sobre a família homoafetiva e seu reconhecimento jurídico, passaremos então à análise do projeto de lei nº 6.583/2013, que institui o Estatuto da Família e propõe diretrizes para políticas públicas voltadas para a valorização e apoio à entidade familiar.

O referido projeto de lei é de autoria do deputado Anderson Ferreira Rodrigues (Partido da República de Pernambuco – PR-PE), pastor evangélico e membro da chamada bancada evangélica no Congresso Nacional. O deputado Anderson Ferreira é autor de inúmeros projetos de lei polêmicos, geralmente fundamentados em valores morais ou religiosos, como o projeto de lei nº 4.396/2016, que visa alterar o Código Penal para prever aumento de pena em caso de aborto cometido em razão de microcefalia ou anomalia do feto.

Atualmente, até a última revisão deste trabalho, o projeto de lei nº 6.583/2013 tramita na Câmara dos Deputados e aguarda a apreciação dos recursos 77/2015, apresentado pela deputada Erika Kokay (PT-DF) contra a apreciação conclusiva do projeto, e 78/2015, apresentado pelo deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), requerendo que o projeto seja apresentado ao Plenário da Câmara dos Deputados.

O projeto de lei popularizou-se no Brasil por propor o engessamento do conceito de família, mesmo após os precedentes de 2011 do STF e do STJ, que reconhecem as uniões homoafetivas como entidade familiar.  

O art. 2º do projeto de lei conceitua a família da seguinte forma:

Art. 2º: Para os fins desta Lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. (BRASIL, 2013).

Assim, o conceito de família abrangeria apenas a união heteroafetiva (cisgênero) (instituída pelo casamento ou pela união estável) ou a família monoparental. Ou seja, pela atual redação, outras configurações familiares, como a união homoafetiva ou a anaparental, por exemplo, não seriam consideradas como família, não sendo destinatárias das políticas públicas propostas pelo projeto de lei.

Ademais, a redação do projeto parece sugerir que o sexo e não o gênero seja o critério usado para definir a composição da família heteroafetiva, pela análise literal do artigo 2º: “(...) entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher.”.

O deputado Anderson Ferreira (PR-PE) defende na justificação que não há políticas públicas efetivas voltadas especialmente para a valorização da família e para o enfrentamento de questões complexas que estão submetidas no contexto contemporâneo. Ademais, defende que uma destas questões é a desconstrução do conceito de família, o que aflige a família e repercute na dinâmica psicossocial do indivíduo. (BRASIL, 2013).

O deputado Anderson Ferreira (PR-PE) evidentemente busca definir o conceito de família, conforme justificativa do projeto de lei: “o estatuto aborda questões centrais que envolvem a família. Primeiro propugna duas ideias: o fortalecimento dos laços familiares a partir da união conjugal firmada entre o homem e a mulher, ao estabelecer o conceito de entidade familiar.” (BRASIL, 2013).

A proposta de definição do conceito de família foi bastante audaciosa, pois o autor do projeto foi além do próprio constituinte.

A desconstrução do conceito de família citado pelo deputado federal está relacionada à mutação que o conceito de entidade familiar vem sofrendo ao longo dos tempos. Hoje não é mais possível se admitir um conceito sacralizado de família, uma vez que novos arranjos familiares compõem nossa sociedade. O projeto, apesar de trazer a importante proposta de estabelecer diretrizes para atuação das políticas públicas voltadas para a família, não reflete a realidade brasileira desta instituição na sociedade. A letra da lei não se comunica com realidade.

No Brasil, atualmente, normatizar esta definição de família representaria um grande retrocesso, tendo em vista que o entendimento dos Tribunais Superiores têm sido em sentido contrário, o que garantiu, nos últimos anos, inúmeros direitos aos homoafetivos, como o reconhecimento da união estável, o casamento civil e a adoção. O projeto de lei retrocede à definição segregadora de família.

A tendência da nossa sociedade, conforme já debatido, caminha em sentido contrário. Concluímos anteriomente, inclusive, que não há no ordenamento jurídico nenhuma lei válida que defina expressa e taxativamente o que é a família. Ademais, a família homoafetiva, assim como outras entidades familiares inseridas no que chamamos pluralismo familiar, está amparada não somente pela interpretação das normas constitucionais, como também pelo reconhecimento jurídico dado pelos Tribunais Superiores. 

Uma enquete[9] foi realizada pela Câmara dos Deputados em seu site oficial, propondo avaliar se os cidadãos brasileiros são contra ou a favor do conceito de família incluído na redação do projeto de lei nº 6.583/2013. A votação, que já está encerada, apurou 10.282.070 (dois milhões duzentos e oitenta e dois mil e setenta) votos.

O resultado da enquete foi o seguinte: 51,62% (cinquenta e um inteiros e sessenta e dois centésimos por cento) dos votantes não concordam com a definição de família como núcleo formado por homem e mulher, contra 48,09% (quarenta e oito inteiros e nove centésimos por cento) que concordam e 0,29% (vinte e nove centésimos por cento) que não têm opinião formada. Este resultado nos parece conclusivo: considerando eventuais erros de apuração e possível empate técnico, a sociedade brasileira está dividida. 

Definir como o núcleo familiar aquele formado apenas pelo casal heteroafetivo cisgênero gera outros problemas para a aplicação das próprias diretrizes do projeto, conforme extraímos da leitura do artigo 10:

Art. 10. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter em sua base nacional comum, como componente curricular obrigatório, a disciplina “Educação para família”, a ser especificada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, de acordo com as características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela. (BRASIL, 2013).

Neste ponto, podemos antever que a inclusão de uma disciplina sobre Educação para Família no currículo obrigatório dos ensinos fundamental e médio, fundamentada, logicamente, no conceito de família defendido pela lei que a instituiu, servirá como instrumento de segregação.

Estaremos diante da reafirmação e da promoção de ideais conservadores e incompatíveis com a realidade social, que afastarão as questões afetas à dignidade afetivo-sexual, respeito às diferenças e igualdade do âmbito de maior aprendizado das crianças e adolescentes. A escola, que deve promover o respeito e a tolerância às diferenças, será o espaço utilizado para a efetivação de várias das medidas propostas pelo projeto, que terão destinatários certos: exclusivamente as famílias heteroafetivas cisgêneras e monoparentais.

As propostas de segregação trazidas pelo projeto não param por aí: apensado ao projeto de lei nº 6.583/2013 está o projeto de lei nº 6.584 de 2013, também de autoria do deputado federal Anderson Ferreira (PR-PE), que, com base na sanção daquele, se aprovado, instituirá a semana nacional de valorização da família, que integrará o calendário oficial do Brasil:

Art.1º – Fica por Lei, instituída, “A Semana Nacional de Valorização da Família”, que integrará o calendário oficial do País. Art.2º – A Semana Estadual de Valorização da Família tem por objetivos: I – ressaltar o dever das instituições em zelar pela família e pela promoção do seu fortalecimento; II - promover a reflexão e a discussão acerca do conceito de família na sociedade atual e seus problemas econômicos, sociais, culturais, éticos e morais. (...) Art.4º – O poder executivo apoiará as comemorações da semana da família, com mobilização dos serviços públicos, divulgação e orientação dos programas mantidos por seus distintos órgãos e secretarias, ficando assegurada a participação local, através das suas organizações respectivas, na formulação das atividades e festejos.§ 1º – Nas atividades definidas neste artigo, o poder público estimulará a participação de organizações comunitárias, culturais, religiosas e empresariais, dentre outras, com as mesmas finalidades.§ 2º – Os palestrantes serão do quadro próprio do Estado ou convidados como voluntários, sob a coordenação do Ministério da Educação. (BRASIL, 2013).

Ainda, nos termos do art. 13 do projeto de lei 6.583/2013, será instituído também o dia nacional de valorização da família, no dia 21 de outubro de cada ano:

Art. 13. O Dia Nacional de Valorização da Família, que ocorre no dia 21 de outubro de cada ano, nos termos da Lei nº 12.647/2012, deve ser celebrado nas escolas as públicas e privadas com a promoção de atividades no âmbito escolar que fomentem as discussões contemporâneas sobre a importância da família no meio social.

É inegável que o projeto de lei tem um intuito louvável: buscar a valorização da família em uma sociedade que, naturalmente, se desvia de laços afetivos. Mas não podemos perder de vista que todas as medidas previstas e demais propostas dos projetos citados são destinadas apenas às famílias heteroafetivas cisgêneras e monoparentais, e poderão servir como instrumento de segregação e discriminação aos filhos de casais homoafetivos (ou outra composição não abrangida pelo conceito da lei) nas escolas. Isso impedirá que inúmeras crianças e adolescentes, pertencentes a outros núcleos familiares, sejam conscientizados sobre a importância da família na sociedade. Além disso, estes não serão estimulados, por preconceito, a participarem com sua família de todo conteúdo programático planejado pelas instituições de ensino voltadas para a valorização da entidade familiar.

A sanção do projeto de lei nº 6.583/2013 representaria, portanto, outro marco na luta do movimento LGBTTTIA: a discriminação legal em um regime democrático em pleno séc. XXI.  Um verdadeiro retrocesso na luta centenária liderada por uma parcela estigmatiza da sociedade que há tão pouco tempo teve sua situação jurídica tutelada pelos Tribunais Superiores.

As recentes conquistas do direito homoafetivo serão confrontadas com a aprovação do projeto de lei nº 6.583/2013, que retomará velhas concepções sobre uma família há muito incompatível com a realidade. Ademais, fomentará uma discussão que, conforme amplamente debatemos, não encontra fundamentos legais.

Além das hipóteses suscitadas em que o projeto de lei promove, ainda que de forma não intencional, a discriminação e a segregação das famílias homoafetivas, temos também que o mesmo restringe a participação de homoafetivos na formação do Conselho da Família, que assessorará o Poder Executivo local na elaboração dos planos, programas, projetos, ações e proposta orçamentária das políticas públicas voltadas à família.

Percebe-se que o interesse de poucos em defender ideologias e concepções morais, que não deveriam interferir a vida pública e no funcionamento do Estado, obstarão a harmonização e a interação entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e atrasarão ainda mais o pleno reconhecimento de iguais direitos à comunidade LGBTTTIA.

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Antevendo os impactos no caso de aprovação do projeto de lei, eis uma simples proposta de alteração da sua redação: para os fins desta Lei, define-se entidade familiar como qualquer núcleo socioafetivo formado por duas ou mais pessoas, unidos por laços naturais, matrimônio, afinidade ou vontade expressa.

Ao partir do entendimento de que o único pressuposto para a constituição de uma família é a afetividade, o Legislativo dará um importante passo na efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana.

Acertado não é outro senão o conceito de família trazido pelo projeto de lei nº 3.369 de 2015, de autoria do deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), que institui o Estatuto das Famílias do Século XXI:

Art. 1º Esta lei institui o Estatuto das Famílias do Século XXI.

Parágrafo único. O Estatuto das Famílias do Século XXI prevê princípios mínimos para a atuação do Poder Público em matéria de relações familiares.

Art. 2º São reconhecidas como famílias todas as formas de união entre duas ou mais pessoas que para este fim se constituam e que se baseiem no amor, na socioafetividade, independentemente de consanguinidade, gênero, orientação sexual,

nacionalidade, credo ou raça, incluindo seus filhos ou pessoas que assim sejam consideradas.

Parágrafo único. O Poder Público proverá reconhecimento formal e garantirá todos os direitos decorrentes da constituição de famílias na forma definida no caput. (BRASIL, 2015).

Este projeto de lei, que atualmente aguarda parecer do relator, o deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), retoma e amplia o conceito de família trazido pela lei Maria da Penha: qualquer união entre duas ou mais pessoas constituída pelo amor, nacionalidade, credo ou raça será considerada família.

A adoção deste conceito de família possibilitará um enorme avanço social, a começar pela previsão legal do pluralismo familiar. As leis, as políticas públicas e os pronunciamentos judiciais se pautarão pela tolerância e respeito à diversidade familiar. A tendência é que o conceito de família seja tão plural quanto as manifestações que esta instituição tomou na sociedade, e não que se reduza, por meio das leis, seu âmbito de incidência.

O Estado deve a dignidade da pessoa humana (em todos os seus aspectos), a liberdade e a igualdade, mesmo que, para isso, tenha que romper com velhos paradigmas e valores morais compartilhados por parcela conservadora da sociedade. O direito deverá se ocupar de realizar uma releitura dos conceitos e institutos jurídicos clássicos da família, luz aos princípios constitucionais e à realidade social, e deve considerá-la como uma instituição que, acima de qualquer coisa, caracteriza-se pelo afeto, respeito e solidariedade. 

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANDREY, Petterson. A família e a homoafetividade:: uma análise sociojurídica do conceito de família sob a ótica da afetividade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4774, 27 jul. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50976. Acesso em: 2 mai. 2024.

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