CAPÍTULO II
1.DOS ATOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA QUE IMPORTAM ENRIQUECIMENTO ILÍCITO
1.1.Enriquecimento ilícito: conceito e abrangência
Enriquecimento, segundo De Plácido e Silva [33], deriva de enriquecer (em-rico-ecer), que significa ser engrandecido, aumentado o patrimônio de uma pessoa pela integração de bens.
Juridicamente, o enriquecimento tem duas variáveis distintas, podendo ser lícito, que se opera de causa justa, ou que se promove dentro dos princípios do suun cuique tribuere (a cada um o que é seu) e do neminen laedere (não lesar ninguém); ou ilícito, considerado enriquecimento sem causa ou também locupletamento ilícito, vedado no ordenamento jurídico pátrio.
O enriquecimento, de um modo geral, não se opera apenas pela ascensão patrimonial de uma pessoa, mas também pela obtenção de alguma vantagem, mesmo que esta não importe aumento de patrimônio. Assim, o enriquecimento pode ser tanto material quanto moral ou intelectual. O enriquecimento material pressupõe a soma de bens ao patrimônio, enquanto que o moral e o intelectual "resultam de fatos que impedem uma diminuição patrimonial ou asseguram a conservação de um direito, já integrado ao patrimônio" [34].
O simples enriquecimento à custa de outrem não é considerado ilícito. O que infringe a ordem moral e legal é o enriquecimento injusto, que fere o princípio da eqüidade, e que gera o dever moral de indenizar aquele que empobreceu.
Segundo Emerson Garcia [35]:
[...] o princípio do não-locupletamento indevido reside na regra de eqüidade que veda a uma pessoa enriquecer às custas do dano, do trabalho ou da simples atividade de outrem, sem o concurso da vontade deste ou o amparo do direito – e tal ocorrerá ainda que não haja transferência patrimonial.
Para o mesmo autor, são necessários quatro requisitos essenciais para a identificação do enriquecimento indevido: a) o enriquecimento material, moral ou intelectual de alguém; b) o empobrecimento de outrem; c) ausência de justa causa para o enriquecimento; d) nexo de causalidade entre o enriquecimento e o empobrecimento.
Presentes estes requisitos, surge para o empobrecido o direito de pleitear o ressarcimento proporcional ao enriquecimento indevido do favorecido.
Traçados os preceitos básicos do enriquecimento sem causa, resta analisá-lo sob o prisma da Lei n. 8.429/92, que reuniu em um único artigo a disciplina dos "atos de improbidade administrativa que importam em enriquecimento ilícito", verbis:
Artigo 9º Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no artigo 1º desta lei, e notadamente: I – receber, para si ou para outrem, dinheiro, bem móvel ou imóvel, ou qualquer outra vantagem econômica, direta ou indireta, a título de comissão, percentagem, gratificação ou presente de quem tenha interesse, direto ou indireto, que possa ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público; II – perceber vantagem econômica, direta ou indireta, para facilitar a aquisição, permuta ou locação de bem móvel ou imóvel, ou a contratação de serviços pelas entidades referidas no artigo 1º por preço superior ao valor de mercado; III – perceber vantagem econômica, direta ou indireta, para facilitar a alienação, permuta ou locação de bem público ou o fornecimento de serviço por ente estatal por preço inferior ao valor de mercado; IV – utilizar, em obra ou serviço particular, veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer natureza, de propriedade ou à disposição de qualquer das entidades mencionadas no artigo 1º desta lei, bem como o trabalho de servidores públicos, empregados ou terceiros contratados por essas entidades; V – receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indireta, para tolerar a exploração ou a prática de jogos de azar, de lenocínio, de narcotráfico, de contrabando, de usura ou de qualquer outra atividade ilícita, ou aceitar promessa de tal vantagem; VI - receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indireta, para fazer declaração falsa sobre medição ou avaliação de obras públicas ou qualquer outro serviço, ou sobre quantidade, peso, medida, qualidade ou característica de mercadorias ou bens fornecidos a qualquer das entidades mencionadas no artigo 1º desta lei;
E ainda,
VII – adquirir, para si ou para outrem, no exercício de mandato, cargo, emprego ou função pública, bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda do agente público; VIII – aceitar emprego, comissão ou exercer atividade de consultoria ou assessoramento para pessoa física ou jurídica que tenha interesse suscetível de ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público, durante a atividade; IX – perceber vantagem econômica para intermediar a liberação ou aplicação de verba pública de qualquer natureza; X – receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indiretamente, para omitir ato de ofício, providência ou declaração a que esteja obrigado;
Continua,
XI – incorporar, por qualquer forma, ao seu patrimônio bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no artigo 1º desta lei; XII – usar, em proveito próprio, bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no artigo 1º desta lei.
Como se observa, o caput do artigo traça os lineamentos gerais da espécie de improbidade, estabelecendo como ilícito abrangido pela lei o recebimento, pelo funcionário público, de qualquer espécie de vantagem econômica em razão da função exercida. Assim, a definição de enriquecimento ilícito, nos termos da Lei n. 8.429/92, difere da definição oriunda do direito privado, posto que está direcionada especificamente aos entes ocupantes de cargos públicos ou a estes equiparados, tendo sempre como sujeito passivo a Administração Pública.
Marcelo Figueiredo [36], na obra Probidade Administrativa, define com propriedade o conceito de enriquecimento ilícito preconizado pela Lei n. 8.429/92:
Cremos que, para a lei anotada, configura enriquecimento ilícito a conduta de todo e qualquer agente público ou equiparado que acrescente a seu patrimônio valores, direitos ou bens em detrimento da Administração Pública. Do mesmo modo, o agente ou equiparado que age, que conduz sua ação administrativa, de modo a tisnar o princípio da moralidade administrativa, tal como vazada concretamente na lei anotada.
Segundo Emerson Garcia [37], será considerado ilícito "todo enriquecimento relacionado ao exercício da atividade pública e que não seja resultado da contraprestação paga ao agente".
Assim, o artigo 9º e seus incisos da Lei n. 8.429/92 cuidam exclusivamente dos atos que importam enriquecimento ilícito do agente, modalidade que na concepção de Marino Pazzaglini Filho [38], é a mais grave das espécies de improbidade, verbis:
Trata-se da modalidade mais grave e ignóbil de improbidade administrativa, pois contempla o comportamento torpe do agente público que desempenha funções públicas de sua atribuição de forma desonesta e imoral. Expressa a norma do artigo 9º da LIA o tráfico, a negociação da função pública pelo administrador no exercício de qualquer atividade estatal.
O núcleo do tipo vem expresso no próprio caput do artigo 9º: "auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no artigo 1º desta Lei".
O termo "auferir" provém do Latim auferre, que significa "perceber", "colher", "obter" ou "tirar". A expressão "vantagem patrimonial indevida", que a primeira vista denota apenas o aspecto econômico, deve ser estendida a todos os "interesses" que afrontem a moralidade administrativa, mas que não importem imediata redução patrimonial, como por exemplo o favoritismo, a intenção concreta de privilegiar alguém para futuramente obter alguma vantagem, etc.
A complementar o preceito genérico inserido no caput, os incisos do artigo 9º da Lei n. 8.429/92 arrolam as mais variadas condutas típicas, que guardam entre si uma característica comum: o agente aufere vantagem indevida, em razão do exercício da função pública.
Os núcleos verbais contidos nos incisos do artigo 9º resumem-se nos verbos receber, perceber, aceitar, utilizar, usar, adquirir e incorporar. Receber e perceber têm o sentido de entrar na posse de algo, disso passando a ter disponibilidade. Aceitar significa anuir, concordar com determinada situação ou em receber alguma coisa. Utilizar e usar têm sentido de empregar algo, no caso, em benefício próprio. Adquirir denota alienação onerosa, enquanto que incorporar é acrescentar ao patrimônio, é fazer sua determinada coisa.
Antes de analisar um a um os incisos do artigo 9º, cumpre salientar que nenhuma das condutas arroladas comporta a forma culposa, sendo necessário, em todos os casos, a demonstração do dolo do agente. "Não há, pois, enriquecimento ilícito imprudente ou negligente" [39].
1.2.Recebimento de vantagem econômica indevida (inciso I)
No inciso I o legislador define como ato de improbidade, sujeito às cominações da lei, o fato do funcionário público praticar a seguinte conduta:
I - receber, para si ou para outrem, dinheiro, bem móvel ou imóvel, ou qualquer outra vantagem econômica, direta ou indireta, a título de comissão, percentagem, gratificação ou presente de quem tenha interesse, direto ou indireto, que possa ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público.
Segundo Paulo Mascarenhas [40], "trata-se da chamada propina". É o caso, por exemplo, do agente público que recebe vantagem para agilizar determinado procedimento, ou do fiscal que recebe propina para não reter determinada carga no posto fiscal.
A norma, nesse caso, preocupa-se com os atos de ofício do agente público e com a possibilidade deste "comercializar" suas atribuições em troca de "presentes ou gratificações". Segundo Marcelo Figueredo [41], "deseja-se evitar a maléfica troca de interesses ou favores".
Caracteriza-se o ilícito pela presença dos seguintes requisitos: a) recebimento, pelo agente público, de dinheiro, bens ou qualquer espécie de vantagem direta ou indireta; b) conhecimento, pelo agente, da ilicitude da vantagem obtida; c) existência de um interesse direito ou indireto do fornecedor da vantagem, que possa ser alcançado por ação ou omissão do funcionário público.
Para a configuração da improbidade basta o recebimento da vantagem pelo agente, pouco importando se este tenha praticado algum ato para beneficiar o terceiro corruptor.
1.3.Percebimento de vantagem para facilitar negócio superfaturado (inciso II)
Estabelece o inciso II punição para o agente que:
II - perceber vantagem econômica, direta ou indireta, para facilitar a aquisição, permuta ou locação de bem móvel ou imóvel, ou a contratação de serviços pelas entidades referidas no artigo 1º por preço superior ao valor de mercado.
Trata-se de verdadeira troca de favores, onde o funcionário público recebe vantagem econômica para facilitar a realização de negócio superfaturado entre o particular e a Administração Pública. A conduta ímproba revela-se no verbo "facilitar", que significa fazer fácil, tornar possível, em troca de compensação econômica indevida.
O superfaturamento é a aquisição, locação ou contratação de serviço por preço superior ao valor de mercado. A aquisição, permuta, locação e prestação de serviços são institutos regulados pela Lei n. 8.666, de 1993 [42], e, a exceção da permuta que exige lei autorizadora e prévia avaliação, todos necessitam de processo licitatório.
O ato de improbidade pode se dar em qualquer das fases do procedimento licitatório, ou até por sua total supressão. O objetivo desse inciso é exatamente fazer com que sejam observados todos os procedimento previstos pela lei para o trato com a coisa pública, de modo a evitar o favorecimento de alguns em detrimento da coletividade.
1.4.Percebimento de vantagem por subfaturamento (inciso III)
O inciso III da LIA define como ato de improbidade a seguinte conduta:
III - perceber vantagem econômica, direta ou indireta, para facilitar a alienação, permuta ou locação de bem público ou o fornecimento de serviço por ente estatal por preço inferior ao valor de mercado
Ao contrário do inciso II, o inciso III trata do recebimento, pelo agente público, de vantagem indevida para facilitar a celebração de negócio subfaturado, ou seja, por quantia inferior ao valor normal de mercado.
Requer a percepção pelo agente público de vantagem econômica direita ou indireta, e a sua atuação intencional no sentido de facilitar a alienação, permuta ou locação de bem público ou o fornecimento de serviço pelo ente estatal para terceiro corruptor por preço notadamente inferior ao praticado no mercado.
Exemplificando, Paulo Mascarenhas [43] cita o caso do agente público que recebe propina para "jogar fora", por valor irrisório, o bem público que estava para ser alienado, assim como também o caso do agente que, servindo em uma empresa pública, fornece serviços por preço abaixo do valor de mercado, com o intuito de favorecer terceiro e lesar o erário.
1.5.Uso em obra ou serviço particular de pessoal e de bens de entidades públicas ou assemelhados (inciso IV)
O inciso IV da LIA visa proibir o agente público de praticar a seguinte conduta:
IV - utilizar, em obra ou serviço particular, veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer natureza, de propriedade ou à disposição de qualquer das entidades mencionadas no artigo 1º desta lei, bem como o trabalho de servidores públicos, empregados ou terceiros contratados por essas entidades.
Trata-se de ato de improbidade em que o agente utiliza-se da estrutura e do trabalho de pessoas pertencentes a órgãos públicos com o fim de obter vantagem patrimonial indevida. É o caso, por exemplo, do agente público que ministra cursos de custo considerável servindo-se da estrutura do órgão público (prédio, iluminação, funcionários, etc.); ou o caso do agente que utiliza o veículo de serviço para levar seus filhos à escola.
De fato, a conduta prevista neste inciso era prática corrente na Administração Pública brasileira. Isso porque reiteradas decisões dos tribunais pátrios firmaram o entendimento de que o desvio de bens públicos em proveito de particulares não configurava o crime de peculato. Como também não existia a figura do "peculato de uso", ficavam os acusados dessa prática totalmente impunes.
Assim, a previsão da Lei n. 8.429/92 tipifica uma conduta tida como usual, ensejando a sua punição.
Cumpre destacar, ainda, que para configurar a prática de improbidade administrativa deve haver o abuso funcional e o propósito de auferir vantagem indevida, sem os quais resta excluído o elemento subjetivo – dolo – indispensável à configuração da espécie de improbidade. Assim, por exemplo, o fato do agente público, que encontra-se em plena jornada de trabalho, fazer uso de servidor público para ir ao banco, pagar contas, buscar lanche, ou fazer uso do telefone para ligações particulares não configura improbidade administrativa, vez que ausente o dolo de auferir vantagem indevida.
1.6.Recebimento de vantagem por tolerar prática criminosa (inciso V)
O inciso V descreve a seguinte conduta delitiva:
V - receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indireta, para tolerar a exploração ou a prática de jogos de azar, de lenocínio, de narcotráfico, de contrabando, de usura ou de qualquer outra atividade ilícita, ou aceitar promessa de tal vantagem.
O núcleo da espécie de improbidade é o verbo tolerar, que significa permitir, ser condescendente. Essa tolerância deve ter origem na promessa ou no recebimento de vantagem econômica indevida.
Somente está sujeito a esse tipo de improbidade o agente que detenha poder de fiscalização ou de repressão à determinadas práticas delitivas. Enquadram-se nessa categoria os membros da polícia judiciária - responsáveis pela repressão ao crime – e da polícia administrativa – que detém o poder de polícia e a competência para conceder e cassar alvarás de funcionamento de estabelecimentos comerciais.
Para a configuração da improbidade é necessária a consciência, pelo agente, da ilicitude do ato.
1.7.Recebimento de vantagem mediante declaração falsa (inciso VI)
O inciso VI cuida do seguinte ato de improbidade:
VI - receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indireta, para fazer declaração falsa sobre medição ou avaliação de obras públicas ou qualquer outro serviço, ou sobre quantidade, peso, medida, qualidade ou característica de mercadorias ou bens fornecidos a qualquer das entidades mencionadas no artigo 1º desta lei.
Somente está sujeito a esta espécie de improbidade o agente público que detém atribuição funcional e qualificação técnica para medir ou avaliar bens, obras ou serviços. Pratica o ato, por exemplo, o funcionário da Prefeitura Municipal encarregado de receber e conferir a mercadoria adquirida pela Municipalidade, emitindo termo de recebimento não verdadeiro quanto aos aspectos que tem obrigação funcional de atestar.
Exige-se, para a consumação do ilícito, que a declaração emitida pelo agente seja falsa e que este tenha consciência da sua falsidade.
1.8.Enriquecimento sem causa lícita (inciso VII)
Trata o inciso VII dos casos de enriquecimento sem causa do agente público, cuja conduta tipificada é a seguinte: "adquirir, para si ou para outrem, no exercício de mandato, cargo, emprego ou função pública, bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda do agente público".
É o acréscimo patrimonial incompatível com os vencimentos percebidos durante o exercício do mandato, cargo, emprego ou função pública. Como bem salienta o insigne Marcelo Figueiredo [44], preocupa-se a lei "com a desproporção, o desequilíbrio, entre suas rendas, proventos em geral e a capacidade de adquirir bens".
Ocorre com bastante freqüência, porém é de difícil comprovação, pois exige a demonstração de que o acréscimo patrimonial desproporcional é oriundo do exercício inadequado da função pública.
Neste ponto, diverge a doutrina sobre o ônus da prova do enriquecimento imotivado. Para alguns, cabe ao autor da ação (geralmente o Ministério Público) comprovar apenas que a evolução patrimonial do agente é incompatível com o seu vencimento, cabendo a este provar que o acréscimo patrimonial é resultado dos seus proventos.
Neste sentido, leciona Wallace Paiva Martins Júnior, citado por Marino Pazzaglini Filho [45]:
A lei presume a inidoneidade do agente público que adquire bens ou valores incompatíveis com a normalidade do seu padrão de vencimentos, bastando provar que exercia função pública e que os bens e valores (mobiliários ou imobiliários) adquiridos são incompatíveis ou desproporcionais à evolução de seu patrimônio ou renda. A lei também censura os sinais exteriores de riqueza e a obtenção de bens e valores para outrem e pune igualmente artifícios empregados para dissimular o enriquecimento ilícito, de modo que atinge a aquisição direta ou indireta (simulação, triangularização, utilização de esquema de lavagem de dinheiro, de testas-de-ferro, membros da família etc.). A inidoneidade financeira gera a ilicitude do enriquecimento. Quem não tinha disponibilidade econômica para ter um patrimônio desproporcional e incompatível com a evolução da renda ou patrimônio não tem justificativa hígida para a sua aquisição, advindo esses recursos de origem ilícita.
Divergindo desse entendimento, Marcelo Figueiredo [46] salienta que cabe ao Estado a comprovação da ilicitude do enriquecimento, verbis: "Em síntese, o dispositivo não afasta a necessidade de demonstração, pelo Estado, da ilicitude ou desproporção das aquisições dos bens ou rendas tidas por ‘atos de improbidade’".
Sem destoar, Marino Pazzaglini Filho [47] destaca a inexistência de previsão legal para a inversão do ônus da prova e a conseqüente obrigatoriedade de aplicação da regra actore incumbit probatio (ao autor incumbe provar).
Em suma, para a configuração do ato de improbidade capitulado no inciso em comento, é necessário que o autor da ação civil pública comprove que o agente obteve evolução patrimonial incompatível com sua condição de servidor público; que portou-se de forma ilícita ou abusiva e que esse comportamento foi a causa do seu enriquecimento desproporcional.
1.9.Exercício de outras atividades profissionais incompatíveis (inciso VIII)
Estabelece o inciso VIII da Lei n. 8.429/92 como ato de improbidade:
VIII - aceitar emprego, comissão ou exercer atividade de consultoria ou assessoramento para pessoa física ou jurídica que tenha interesse suscetível de ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público, durante a atividade.
O dispositivo em comento visa a punição do agente público que dê consultoria ou assessoramento para entes privados que tenham interesses comuns ou qualquer espécie de vínculo com a Administração Pública. Busca evitar que o agente público exerça o papel de intermediário entre os interesses do ente privado perante a Administração Pública.
A norma não exige o efetivo benefício da pessoa física ou jurídica particular, bastando a simples possibilidade de favorecimento em razão da função exercida pelo agente público, bem como a consciência, por parte deste, dessa possibilidade.
1.10.Intermediação para aplicação de verba pública (inciso IX)
O inciso IX retrata a seguinte conduta: "perceber vantagem econômica para intermediar a liberação ou aplicação de verba pública de qualquer natureza".
O núcleo da ação é representada pelo verbo intermediar, que significa intervir, interceder, mediar. Veda a lei o recebimento de vantagem econômica para intervir na liberação de verba pública de qualquer natureza em favor de particular.
Verba pública é considerado "todo e qualquer recurso constante dos orçamentos ou dos cofres públicos" [48].
Infelizmente são corriqueiros os casos de liberações de verbas públicas mediante o pagamento de "participações", ou as chamadas "comissões".
Somente pode ser sujeito ativo dessa espécie de ilícito o agente público com poderes ou influência na condução das verbas públicas.
1.11.Recebimento de vantagem para prevaricar (inciso X)
Outra conduta considerada ato de improbidade administrativa, tipificada no inciso X, do artigo 9º, da LIA é "receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indiretamente, para omitir ato de ofício, providência ou declaração a que esteja obrigado".
Referido inciso contempla a omissão do agente público do seu dever de ofício. Os agentes públicos, titulares de competências administrativas e funcionais, obrigam-se a dar cumprimento à lei. Nenhum servidor poderá omitir-se de cumprir com o seu dever, salvo se suas ordens forem manifestamente ilegais.
No caso, a lei visou proteger o fiel cumprimento do dever funcional do agente público, impondo-lhe uma sansão para o caso de omissão consciente e preordenada.
Para configuração do ilícito, no entanto, exige-se o recebimento de vantagem econômica e a consciência do dever funcional e da antijuridicidade do não cumprimento.
1.12.Apropriação de bens ou valores públicos (inciso XI)
O inciso XI tipifica a seguinte conduta: "incorporar, por qualquer forma, ao seu patrimônio bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no artigo 1º desta lei".
Refere-se o inciso ao enriquecimento ilícito mediante a incorporação, por qualquer forma, de bens ou rendas pertencentes ao patrimônio público. Incorporar significa apoderar, anexar, apropriar. Visa o dispositivo evitar a "mistura" do patrimônio público com o dos agentes públicos.
Configura-se a improbidade administrativa por apropriação do patrimônio público quando o agente público, em razão da função que exerce, tem a posse ou guarda de bens, verbas ou valores pertencentes ao erário, e, de livre consciência, apropria-se dos mesmos, em proveito próprio ou alheio.
Tal conduta amolda-se à tipificação do crime de peculato, inscrito no artigo 312 do Código Penal, cuja redação é a seguinte: "Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa."
Pena que o texto legal subestimou a capacidade dos agentes corruptos pressupondo que estes seriam ingênuos ao ponto de apropriarem-se de forma direta de bens ou valores públicos. Sabe-se que hoje existem inúmeras formas mais complexas, porém eficazes, de lesar o patrimônio público. Como bem salienta Marcelo Figueiredo [49] ao analisar o inciso em comento:
É que, na verdade, existem várias fórmulas e meios para tal objetivo. Normalmente utiliza-se de terceiros como testas-de-ferro, adquire por si ou terceiros áreas que futuramente serão desapropriadas – enfim, realiza verdadeiras manobras e estratégias para que, depois de longo tempo, possa finalmente incorporar ao seu patrimônio os bens a que alude a lei.
Anote-se que se o agente público for Prefeito Municipal, aplicar-se-á, a par da Lei n. 8.429/92, as sanções do Decreto-Lei n. 201/67, por tratar-se, também, de crime de responsabilidade sujeito ao julgamento do Poder Judiciário. [50]
1.13.Uso particular de bens ou valores públicos (inciso XII)
E o último inciso do artigo 9º tipifica o ato de "usar, em proveito próprio, bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no artigo 1º desta lei".
Procura o referido inciso coibir o uso abusivo de bens, rendas ou valores públicos pelos próprios agentes públicos. Caracteriza o ilícito a mera utilização, mesmo sem intenção de incorporação, de bens ou valores pertencentes ao ente público.
A utilização de bens públicos somente pode se dar no exercício regular da atividade administrativa, no cumprimento dos deveres e obrigações funcionais, nunca em proveito próprio.
Da mesma forma que no inciso anterior, de o agente público for Prefeito Municipal, estará sujeito às sanções do Decreto-Lei n. 201/67 (crimes de responsabilidade dos Prefeitos).