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Da aplicabilidade do incidente de deslocamento de competência

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Agenda 17/08/2016 às 11:45

Assegurar o cumprimento de obrigações internacionais de direitos humanos

A Emenda Constitucional nº 45/04 também introduziu no ordenamento jurídico pátrio a denominada “constitucionalização dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, desde que aprovados pelo quorum qualificado das emendas constitucionais” conforme o artigo 5º, § 3º da Constituição Federal e ainda, a submissão do Brasil ao Tribunal Penal Internacional, consoante o artigo 5º, § 4º da Constituição Federal (LENZA, 2009, p.339).

Ademais, o Brasil é signatário de uma série de tratados e convenções internacionais nos quais se compromete a apurar e punir os delitos considerados graves contra os direitos humanos, responsabilizando-se perante cortes e organismos internacionais.

Portanto, a violação em comento deve estar arrolada entre as quais a União tem o dever de reprimir, em decorrência da assinatura de algum tratado internacional. A partir do momento em que o Brasil passa a se submeter ao Tribunal Penal Internacional e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, cria-se um rol de possibilidades de responsabilização. Nesta esteira, o segundo requisito para o deslocamento de competência reside justamente nesta possibilidade de responsabilização internacional do Brasil perante os tratados internacionais dos quais seja signatário.

Neste passo, o Procurador-Geral da República assim se manifestou durante o julgamento do IDC nº 1:

No que diz com a possibilidade de responsabilização internacional decorrente do descumprimento de obrigações assumidas em tratados internacionais, é de se ressaltar que a República brasileira, signatária dos principais atos internacionais de proteção de direitos humanos, responsabiliza-se pelo efetivo cumprimento de tais obrigações, submetendo-se tanto ao sistema global, quanto ao sistema interamericano de direitos humanos, especialmente diante do reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos (BRASIL, 2005, p. 217)

Novamente, faz-se necessário a análise de cada caso concreto, a fim de que seja avaliado se os fatos narrados configuram o descumprimento de obrigação internacional, indicando aquela que fora desrespeitada.

Ainda, Flávia Piovesan e Renato Stanziola Vieira ensinam que há vários casos contra o Brasil pendentes de apreciação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, onde alguns apontam, inclusive, para a responsabilidade direta da União em face da violação dos direitos humanos (PIOVESAN; VIEIRA, 2005, p. 08).

Por oportuno, faz-se necessário mencionar que o Estado brasileiro fora condenado perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, através do caso “Ximenes Lopes”, alhures mencionado.

Ressalta-se, por derradeiro, que não se trata de mera presunção de risco da responsabilidade internacional, mas sim de descumprimento explícito de obrigação anteriormente assumida pelo Estado brasileiro.

Assim, presentes os dois primeiros requisitos contidos na letra da lei, mesmo que de caráter subjetivo, faz-se necessário a existência de um terceiro pressuposto, a incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas efetivas à grave violação ocorrida.


Inércia ou incapacidade das autoridades responsáveis de responder ao caso específico

A omissão ou demora injustificada na resolução do crime, na sua apuração ou no seu julgamento, é um requisito implícito ao parágrafo 5º do artigo 109 da Constituição Federal, tendo em vista que não haveria justificativa em deslocar a competência caso o órgão estadual responsável cumprisse adequadamente com seu dever de persecução penal e consequente julgamento.

Tal requisito elucida o caráter subsidiário do deslocamento, no qual, a federalização não pode ser entendida como prima ratio, ou seja, como primeira medida a ser tomada no caso de grave violação a direitos humanos.

Em verdade, o deslocamento de competência é medida excepcional, de caráter subsidiário tal como as demais medidas constitucionais que dispõem sobre conflitos federativos, pois se não as fosse, o legislador teria atribuído a competência diretamente à Justiça Federal. Sendo assim, a competência do Estado federado resta reafirmada, transferindo para o âmbito federal apenas os casos em que o poder estadual não possuir meios efetivos para reprimir e punir a grave violação aos direitos humanos (CAZETTA, 2009, p. 159).

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Outrossim, analisando o bojo constitucional voltado à autonomia dos entes federados, a transferência dessa autonomia pela federalização só estará justificada de forma excepcional para preservar um bem maior, nos estritos limites da legalidade.

Insta mencionar que a necessidade de esgotamento dos recursos internos é uma regra geral para que se chegue às cortes internacionais, e desse modo, não poderia ser diferente com o deslocamento de competência ora estudado.

Vladimir Aras leciona sobre este requisito:

A omissão ou demora injustificada na elucidação do crime é pressuposto implícito à norma em comento, porquanto não haveria razão para o deslocamento se os órgãos estaduais estivessem cumprindo adequadamente seu dever na persecução penal (ARAS, 2005, p. 03).

O posicionamento retro encontra-se relativamente pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça, através dos dois julgamentos de incidentes de deslocamento de competência propostos até o presente momento. É o que preconiza o relator do IDC-1, caso Dorothy Stang[8]:

Na espécie, as autoridades estaduais encontram-se empenhadas na apuração dos fatos que resultaram na morte da missionária norte-americana Dorothy Stang, com o objetivo de punir os responsáveis, refletindo a intenção de o Estado do Pará dar resposta eficiente à violação do maior e mais importante dos direitos humanos, o que afasta a necessidade de deslocamento da competência originária para a Justiça Federal, de forma subsidiária, sob pena, inclusive, de dificultar o andamento do processo criminal e atrasar o seu desfecho, utilizando-se o instrumento criado pela aludida norma em desfavor de seu fim, que é combater a impunidade dos crimes praticados com grave violação de direitos humanos (BRASIL, 2005, p. 217).

Na mesma toada, no julgamento do IDC-2 fora reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça o apelo feito pelas autoridades locais no sentido de serem incapazes de promover a eficiente apuração dos fatos tendo em vista a magnitude da infiltração do crime organizado nas instâncias oficiais.

É notória a incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas efetivas, reconhecida a limitação e precariedade dos meios por elas próprias. Há quase um pronunciamento uníssono em favor do deslocamento da competência para a Justiça Federal, dentre eles, com especial relevo: o Ministro da Justiça; o Governador do Estado da Paraíba; o Governador de Pernambuco; a Secretaria Executiva de Justiça de Direitos Humanos; a Ordem dos Advogados do Brasil; a Procuradoria-Geral de Justiça do Ministério Público do Estado da Paraíba. As circunstâncias apontam para a necessidade de ações estatais firmes e eficientes, as quais, por muito tempo, as autoridades locais não foram capazes de adotar, até porque a zona limítrofe potencializa as dificuldades de coordenação entre os órgãos dos dois Estados. Mostra-se, portanto, oportuno e conveniente a imediata entrega das investigações e do processamento da ação penal em tela aos órgãos federais (BRASIL, 2010).

Na mesma toada, no julgamento do IDC-2 fora reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça o apelo feito pelas autoridades locais no sentido de serem incapazes de promover a eficiente apuração dos fatos tendo em vista a magnitude da infiltração do crime organizado nas instâncias oficiais.

Assim, a proteção dos direitos básicos não se esgota e nem poderia se esgotar apenas com a atuação dos estados-membros. A intervenção federal no âmbito estadual afigura-se como um reflexo, uma manifestação ou particularização da própria noção de soberania, tendo em mente que o Estado também é expressão de poder interno, possuindo supremacia no âmbito internacional. Por estes motivos, faz-se necessário que a intervenção em comento seja utilizada apenas em última análise, quando não restarem mais alternativas ao estado-membro, ou o mesmo se mostrar ineficaz na persecução que se fizer necessária (CAZETTA, 2009, p. 159).

Fica caracterizado, por derradeiro, que o incidente de deslocamento de competência é medida excepcional de caráter subsidiário, após a comprovação da incapacidade das autoridades locais em combater a grave violência aos direitos humanos.


ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À CONSTITUCIONALIDADE DO INCIDENTE

Mesmo antes da aprovação da Emenda Constitucional nº. 45, a constitucionalidade da norma que insere a federalização das causas relativas aos direitos humanos já era alvo de importantes debates no meio jurídico e político, sendo patente que tal debate continua mesmo após a entrada em vigor das alterações extraídas da Emenda alhures aduzida.

Após a suscitação do primeiro incidente perante o Superior Tribunal de Justiça, foram interpostas duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade contra o inciso V-A e o § 5º do artigo 109 da Constituição Federal. Tais ações foram propostas pela Associação dos Magistrados Brasileiros e pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais, refletindo a insatisfação que a emenda provocou nas classes dos magistrados estaduais e alguns membros do Ministério Público estadual. Do ponto de vista da fundamentação jurídica, as ADINs argumentam que o incidente de deslocamento de competência não possui auto aplicabilidade, sendo contrário a determinados princípios constitucionais. (CAZETTA, 2009, p. 69)

Sem o intuito de esgotar as teses de inconstitucionalidade do deslocamento de competência, do ponto de vista jurídico, elas possuem fundamentações semelhantes. Aduzem que o deslocamento fere as garantias constitucionais do juiz natural, do devido processo legal e do pacto federativo.

Lílian Mendes Haber, Carolina Ormanes Massoud e Ibrain José das Mercês Rocha afirmam que seria fato “menos danoso, se a EC nº. 45/04, pretendendo prestigiar a federalização dos crimes contra os direitos humanos, sem desmerecer o Ministério Público e a Justiça Estadual, tivesse atribuído competência expressa à Justiça Federal, pura e simplesmente” (HABER; MASSOUD; ROCHA, 2005, p. 27).

Luiz Alexandre Cruz Ferreira e Maira Cristina Vidotte Blanco Tárrega (2005) asseveram ainda:

Mais grave, entretanto, é a fixação de um critério de competência condicional e fundado na pura subjetividade de uma única autoridade. Ora, o art. 5º, LIII, da CF/88 assegura que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. É inerente ao princípio do devido processo legal que a regra de competência seja objetivamente fixada antes do ajuizamento da lide. Assim foi durante grande parte da história brasileira. Ocorre que, a partir da reforma, a competência para as ações relativas à violação de direitos humanos não pode ais ser fixada no momento da propositura da ação, as depende de uma condição extrínseca às próprias partes litigantes, qual seja o oferecimento de pedido de “deslocamento de competência” formulado pelo Procurador-Geral da República (FERREIRA; TARREGA, 2005, p. 462).

Pelos argumentos acima elencados, o deslocamento de competência alteraria a competência das ações relativas à violação de direitos humanos após o momento oportuno, violando o devido processo legal.

Sucintamente, aduzem os defensores da inconstitucionalidade do presente instituto que haveria clara violação ao pacto federativo, vez que subsistirá uma livre intervenção federal nos estados, bem como a volta da avocação por parte do Procurador-Geral da República. Aduzem ainda, que há a criação de uma descriminação para com as instituições judiciárias estaduais e a criação de “tribunais de exceções”, vedados pela Constituição Federal.

Antonio Scarance Fernandes (2010) afirma que o juiz natural estaria sendo duplamente violado, em face do artigo 5º, incisos XXXVII e LIII da Constituição Federal, pois só são órgãos do judiciário aqueles instituídos pela Constituição, reforçando que ninguém pode ser julgado por órgão constituído após o fato e entre os órgãos pré-constituídos, vigora uma ordem taxativa e hierárquica de competências.

Nesta seara, o incidente de deslocamento de competência feriria a proibição dos tribunais ex post facto, uma vez que a modificação da competência se daria após o crime, sendo que tal incidente poderia ou não ser suscitado pelo Procurador-Geral da República, ensejando maiores objetividades sobre quais delitos serão considerados de grave violação aos direitos humanos. Outrossim, a reforma do judiciário estaria violando o princípio da segurança jurídica, tendo em vista que o infrator não saberia ao certo qual juízo será competente para julgar seu caso. Ressalta-se que todos os aspectos relacionados à existência do crime, bem como à persecução e à condenação penal devem ser previamente fixados em lei.

Ademais, a federalização dos crimes atingiria o principio constitucional do devido processo legal, ignorando a ampla defesa, tendo em vista que o acusado encontraria grande dificuldade na produção de provas em razão da distancia às Varas Federais.

Nesta linha de raciocínio, Luiz Alexandre Cruz Ferreira e Maira Cristina Vidotte Blanco Tárrega comentam:

A primeira matéria que cumpre discutir é o reconhecimento expresso pelo reformador de uma maior dignidade e importância da Justiça Federal em relação à Justiça Estadual. Aquela antiga preocupação do constituinte originário de relacionar a matéria da competência às atividades objetivas desenvolvidas, preservando-se uma idêntica importância institucional, já não existe mais. Fica reconhecida a indignidade da Justiça Estadual e sua incapacidade em “assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais”. O critério utilizado é muito claro: quando a violação dos direitos humanos for leve, a competência é da Justiça Estadual. Quando a violação for grave, a competência é da Justiça Federal (FERREIRA; TARREGA, 2005, p. 462).

A associação nacional dos membros do ministério público (CONAMP) elenca uma série de argumentos contrários à constitucionalidade do artigo 109, § 5º da Constituição Federal de 1988, alguns, já mencionados neste trabalho, quais sejam: a violação da cláusula pétrea do juiz natural, já que o mesmo será estabelecido por critério subjetivo, onde não há o exato conceito de “violação de direitos humanos”; a violação do contraditório por parte do Procurador-Geral do estado que deverá simplesmente obedecer ao Procurador-Geral da República; a quebra da razoável duração do processo, tendo em vista que a demora será maior no âmbito federal, levando até a prescrição de alguns crimes (BRASÍLIA, 2005).

Sobre o autor
José Gabriel Pontes Baeta Costa

Graduado em Direito pela PUC/MG, campus Poços de Caldas. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera/UNIDERP. Advogado inscrito na OAB/MG, atuante nas áreas de Direito Constitucional, Administrativo, Penal e Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, José Gabriel Pontes Baeta. Da aplicabilidade do incidente de deslocamento de competência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4795, 17 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51254. Acesso em: 22 nov. 2024.

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