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Da aplicabilidade do incidente de deslocamento de competência

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Agenda 17/08/2016 às 11:45

ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À CONSTITUCIONALIDADE DO INCIDENTE

Os principais argumentos dos defensores da federalização residem justamente em sua função precípua: preservar os direitos consagrados como humanos, coibindo e punindo as graves violações que ensejem uma responsabilização internacional do Brasil.

Por oportuno, faz-se necessário elucidar que o ato de interpretar o texto constitucional não se caracteriza por uma atividade anódina, sem importância, ou ainda de um ato mecânico. Interpretar implica a busca de um sentido, através da qual, serão resguardados uma série de princípios, como bem aduz Eros Grau:

O intérprete produz a norma jurídica não por diletantismo, porem visando a sua aplicação a casos concretos. Interpretamos para aplicar o direito e, ao fazê-lo, não nos limitamos a interpretar os textos normativos, mas também, compreendemos os fatos. A norma jurídica é produzida para ser aplicada a um caso concreto. Essa aplicação se dá mediante a formulação de uma decisão judicial, uma sentença, que expressa a norma da decisão. Aí a distinção entre normas jurídicas e norma de decisão. Esta é definida a partir daquelas (GRAU, 2003, p. 09).

De máxima importância para o correto entendimento dos argumentos favoráveis à constitucionalidade do incidente de deslocamento de competência, é de se destacar o pensamento de Luís Roberto Barroso:

[...] a distinção qualitativa entre regra e princípio é um dos pilares da moderna dogmática constitucional, indispensável para a superação do positivismo legalista, onde as normas se cingiam a regras jurídicas. A Constituição passa a ser encarada como um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as ideias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central. A mudança de paradigma nessa matéria deve especial tributo à sistematização de Ronald Dworkin. Sua elaboração acerca dos diferentes papéis desempenhados por regras e princípios ganhou curso universal e passou a constituir o conhecimento convencional na matéria. (BARROSO, 2006, p. 30).

Ainda, o referido autor discorre sobre a valoração dos princípios, vejamos:

Os princípios contêm, normalmente, uma maior carga valorativa, um fundamento ético, uma decisão política relevante, e indicam determinada direção a seguir. Ocorre que, em ordem pluralista, existem outros princípios que abrigam decisões, valores ou fundamentos diversos, por vezes contrapostos. A colisão de princípios, portanto, não só é possível como faz parte da lógica do sistema, que é dialético. Por isso a sua incidência não pode ser posta em termos de tudo ou nada, de validade ou invalidade. Deve-se reconhecer aos princípios uma dimensão de peso ou importância. À visa dos elementos do caso concreto, o intérprete deverá fazer escolhas fundamentadas, quando se defronte com antagonismos inevitáveis, como os que existem entre a liberdade de expressão e o direito de privacidade, a livre iniciativa e a intervenção estatal, o direito de propriedade e a sua função social. A aplicação dos princípios se dá, predominantemente, mediante ponderação (BARROSO, 2006, p. 30).

Neste diapasão, se tratando de interpretação constitucional, José Jesus Cazetta Júnior (2004) afirma que a necessária ponderação é aplicável ao caráter constitucionalismo pós-guerra, onde o modelo tradicional de solucionar conflitos entre regras é inútil, tendo em vista que a Constituição não mais consagra valores homogêneos, mas um amplo conteúdo material de princípios de direitos fundamentais, até mesmo contraditórios. Apenas através da ponderação é possível manter a coexistência e a igualdade abstrata entre as normas ou direitos que refletem valores plurais, próprios de uma sociedade heterogênea, mas que pretende manter-se unida em torno da Constituição.

Essa é a situação a qual se encontra a análise do incidente de deslocamento de competência, tendo em vista as supostas violações aos princípios constitucionais alhures mencionados, em contraposição a outros princípios de efetividade e proteção aos direitos humanos, como a consagração da dignidade da pessoa humana, por exemplo. Essa contradição aparente enriquece o debate e permite uma melhor compreensão dos interesses colocados em pauta, desempenhando papel eminentemente dialético.

Não obstante, é inegável que não existem direitos fundamentais ilimitados, como afirmou o Supremo Tribunal Federal, veja-se:

[...] os direitos e garantias individuais não tem caráter absoluto. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revista de caráter absoluto, mesmo porque razoes de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerando o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros (BRASIL, 2000, p. 20).

Em se tratando de conflito entre princípios constitucionais, sobre os quais não se podem aplicar as regras da hierarquia das normas (lei superior prevalece sobre inferior); da cronologia (lei posterior revoga anterior) ou da especialização (lei específica prevalece sobre lei geral), Luís Roberto Barroso ensina:

[...] a denominada ponderação de valores ou ponderação de interesse é a técnica pela qual se procura estabelecer o peso relativo de cada um dos princípios contrapostos. Como não existe um critério abstrato que imponha a supremacia de um sobre o outro, deve-se, à vista do caso concreto, fazer concessões recíprocas, de modo a produzir um resultado socialmente desejável, sacrificando o mínimo de cada um dos princípios ou direitos fundamentais em oposição. O legislador não pode, arbitrariamente, escolher um dos interesses em jogo e anular o outro, sob pena de violar o texto constitucional. Seus balizamentos devem ser o princípio da razoabilidade e a preservação, tanto quanto possível, do núcleo mínimo do valor que esteja cedendo passo. Não há aqui, superioridade formal de nenhum dos princípios em tensão, mas a simples determinação da solução que melhor atende o ideário constitucional na situação apreciada (BARROSO, 2006, p. 30).

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Por conseguinte, para a análise da constitucionalidade da federalização em cotejo, interessa analisá-la sob a égide dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Nesta toada, explicitam Barcellos e Barroso:

O princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade [...] não está expresso na Constituição, mas tem seu fundamento nas ideias de devido processo legal substantivo e na de justiça Trata-se de um valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do interesse público, por permitir o controle da discricionariedade dos atos do Poder Público e por funcionar como a medida com que a norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido ou decorrente do sistema. Em resumo sumário, o princípio da razoabilidade permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: a) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado (adequação) b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo menos gravoso para chegar ao mesmo resultado (necessidade/vedação do excesso) e c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha (proporcionalidade em sentido estrito). O princípio pode operar, também, no sentido de permitir que o juiz gradue o peso da norma, em uma determinada incidência, de modo a não permitir que ela produza um resultado indesejado pelo sistema, assim fazendo a justiça do caso concreto (BARCELLOS; BARROSO, 2006, p. 362-363).

É possível reconhecer que a compatibilidade do incidente de deslocamento de competência somente acontecerá se este instituto atender ao princípio da razoabilidade, passando pela adequação ao caso concreto, pela necessidade de utilização deste meio, pela vedação ao excesso e pela proporcionalidade em sentido estrito. Muito embora a comprovação destas adequações esteja diluída pelo trabalho, é possível justificá-los sucintamente adiante.

Para que se possa identificar a adequação, faz-se necessário aferir qual o fim perseguido e o instrumento que será empregado para tanto. O incidente de deslocamento de competência possui como objetivo a criação de um instrumento que permita uma ampliação qualitativa da proteção dos direitos humanos, agindo como meio eficaz para realizar diretamente a resposta judicial aos casos de grave violação dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

Objetivando alcançar tal intento, criou-se um instrumento que, respeitando o modelo federal do Estado brasileiro, atribuiu a um tribunal superior, já responsável pela defesa e pela uniformização da ordem infraconstitucional, a missão de identificar os casos concretos em que haja efetiva necessidade de intervenção do ente federal. Concebeu-se, portanto, um mecanismo cuidadoso que envolve a manifestação fundamentada, em processo judicial, e que terá por resultado a redistribuição do feito a um juízo previamente reconhecível, dotado de todas as garantias institucionais típicas do Poder Judiciário e do Ministério Público (CAZETTA, 2009, p. 92).

Não pairam dúvidas de que o fim almejado encontra abrigo em uma sociedade que preza pelo princípio da dignidade da pessoa humana como um de seus fundamentos e na prevalência dos direitos humanos. Outrossim, o referido instrumento preserva a entidade federativa, salvaguardando a noção de devido processo legal, garantindo a adequação da federalização.

Ademais, não parece restar questionamento de que o incidente de deslocamento é uma medida exigível, uma vez que o Estado brasileiro poderá ser responsabilizado internacionalmente pelas obrigações assumidas. Afora outros casos de relevância, basta rememorar que o Brasil já fora condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo caso “Ximenes Lopes”, além de sofrer medidas provisionais adotadas no caso da Penitenciária “Urso Branco”[9] e do tratamento degradante nas unidades da FEBEM em São Paulo.

Nesta seara, a federalização é medida exigível diante da necessidade da concretização dos direitos humanos, em contraposição a uma realidade muito distante do ideal, com reiteradas situações de desrespeito aos direitos mais fundamentais do ser humano. Implica, por oportuno, averiguar se existe meio menos gravoso ou alternativo ao incidente de deslocamento de competência.

Neste diapasão, Ubiratan Cazzeta leciona que:

O IDC não é instrumento redentor, que trará, sozinho, a solução para o problema da violação dos direitos humanos. Todavia, não é, tampouco, um mecanismo autoritário ou abusivo, como se pretendeu configurá-lo nas críticas; aliado a um ampla teia de atuações estatais, poderá, sim, vir a ser um instrumento eficaz para romper situações concretas de desrespeito aos direitos humanos (CAZETTA, 2009, p. 93-94).

No que se refere aos ganhos decorrentes da medida, é patente que se configuram como maiores do que as eventuais perdas de que se pode cogitar, pois o incidente preserva os contornos do federalismo, assegura o juízo natural, sem ofender o devido processo legal, garante a ampla defesa e se configura por importante aparato para manter alerta os estados-membros.

Nesse comenos, o primeiro argumento balizador da constitucionalidade do instituto reside no término da conjectura paradoxal onde o Estado brasileiro é responsabilizado pelo descumprimento das obrigações internacionais na pessoa jurídica da União, de forma única e exclusiva, sem que a mesma tivesse a possibilidade de chamar para si tal responsabilidade, investigando, processando ou julgando os crimes que ensejaram sua punição.

Pedro Lenza (2011) ressalta que a previsão estabelecida no artigo 109, V-A e no §5º do mesmo artigo da Constituição Federal fora muito bem vindo e acertado no sentido de adequar o funcionamento do Judiciário brasileiro ao sistema de proteção internacional dos direitos humanos, destacando ainda que a União é que será responsabilizada em nome do Estado brasileiro, por aquilo que fora acordado em tratados internacionais. Outrossim, havendo descumprimento ou afronta a direitos resguardados pelos referidos tratados, a União não poderá invocar a cláusula federativa para se eximir das responsabilidades assumidas perante os órgãos internacionais.

No mesmo sentido, Flávia Piovesan ressalta que a federalização será importante instrumento na concretização e realização dos direitos humanos, quando os mesmos padeçam de graves violações, primando por um Estado Democrático de Direito, consoante o disposto no artigo 1º da Constituição Federal, salientando ainda:

Se qualquer Estado Democrático pressupõe o respeito dos direitos humanos e requer a eficiente resposta estatal quando de sua violação, a proposta de federalização reflete sobretudo a esperança de que a justiça seja feita e os direitos humanos respeitados (PIOVESAN, 2005, p. 42).

Outro argumento que consolida a constitucionalidade do incidente de deslocamento reside na possibilidade de dotar o sistema jurisdicional de melhores instrumentos para enfrentar a impunidade e a afronta à ordem jurídica, em casos quem envolvam as já badaladas graves violações aos direitos humanos, fato que muitas vezes não ocorre nos órgãos estaduais. Trazendo à baila sua experiência defronte as Cortes Internacionais, Francisco Rezek aduz:

Em geral, nas federações os crimes dessa natureza, os crimes previstos por qualquer motivo em textos internacionais, são crimes federais e da competência do sistema federal de Justiça. Isso tem várias vantagens, como uma jurisprudência uniforme, uma jurisprudência unida, a não tomada de caminhos diversos segundo a unidade da federação em que se processe o crime. É vantajoso e é praticado em outras federações (REZEK, 2002, p. 150).

Outrossim, pode-se citar outros casos de federalização através do estudo do direito comparado, como acontece com o crime de narcotráfico nos Estados Unidos da América (REZEK, 2002, p. 152).

Ademais, é cediço que o estado brasileiro já se mostrou por vezes ineficaz e inoperante na persecução e julgamento de crimes de grande repercussão internacional, como no caso do massacre de Eldorado dos Carajás[10] e a chacina da Candelária[11]. Ressalta-se que ambos os casos foram marcados pela influencia negativa de agentes estatais, incluindo a presença de policiais no banco dos réus. A então Relatora das Nações Unidas sobre Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais, Asma Jahangir, identificou a Emenda Constitucional 45/2004 como “um passo bem-vindo para combater a impunidade” (GAJOP. 2010, p. 28).

Paulo Bonavides (2010) atesta que o incidente de deslocamento de competência visa preservar os mais altos valores protegidos pela Constituição Federal, sem que com isso as demais cláusulas pétreas sejam prejudicadas, pois inexiste direito absoluto, que não possa ser relativizado diante do choque com outro direito normatizado e de mesma força hierárquica. Para tanto, faz-se necessário o uso do princípio da proporcionalidade, mais elástico que os demais, protegendo o cidadão contra excessos do Estado e defendendo as liberdades constitucionais.

Não obstante, em regra, tem-se que a Justiça Federal é mais isenta e imparcial, não sendo influenciada pelas injunções políticas ou coorporativas da localidade do crime. Flávia Piovesan e Renato Vieira corroboram com tal posicionamento, se referindo as vantagens da “competição saudável” entre as policias judiciárias e entre a Justiça Federal e a Estadual:

Com a federalização dos crimes contra os direitos humanos passa a existir uma salutar concorrência institucional para o combate à impunidade e para a garantia e justiça, expondo-se à sociedade civil os poderes e os limites estatais no cumprimento de seus compromissos internacionais e domésticos. De um lado, encoraja-se a atuação estatal sob o risco de deslocamento de competência em razão da matéria, e de outro se aumenta a responsabilidade das instancias federais para o efetivo combate à impunidade das violações aos direitos humanos (PIOVESAN; VIEIRA, 2005, p. 09).

Entrementes, para a real eficácia do incidente em estudo, faz se necessário que o mesmo esteja balizado pelo princípio da proporcionalidade, com fito de que tal instituto não se torne uma medida banalizada, fugindo de seu escopo principal. Segundo Gilmar, citado por Jorge Assaf Maluly:

A proporcionalidade se dá quando verificada restrição a determinado direito fundamental ou a um conflito entre distintos princípios constitucionais de modo a exigir que se estabeleça o peso relativo de cada um dos direitos por meio da aplicação das máximas que integram o mencionado princípio da proporcionalidade. São três as máximas parciais do princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Há de perquirir-se na aplicação do princípio da proporcionalidade, se em face do conflito entre os dois bens constitucionais contrapostos, o ato impugnado afigura-se adequado (isto é, apto para produzir o resultado desejado), necessário (isto é, insubstituível por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcional em sentido estrito (ou seja, se estabelece uma relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto) (MENDES apud MALULY, 2005, p. 06).

Note-se que o incidente de deslocamento de competência não chega a subtrair nenhuma competência originária dos estados, tampouco se apresenta como uma violação ao pacto federativo, tendo em vista sua natureza subsidiária e mediante a comprovação da incapacidade do estado-membro em investigar, processar ou julgar o acontecido.  Neste mesmo sentido, assim se manifestou o Ministro Arnaldo Esteves Lima quando do julgamento do primeiro incidente de deslocamento de competência:

O deslocamento de competência – em que a existência de crime praticado com grave violação aos direitos humanos é pressuposto de admissibilidade do pedido – deve atender ao princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), compreendido na demonstração concreta de risco de descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil, resultante da inércia, negligência, falta de vontade política ou de condições reais do Estado-membro, por suas instituições, em proceder à devida persecução penal (BRASIL, 2005, p. 217).

Trata-se, pois, de uma garantia constitucional de eficácia plena, com caráter eminentemente instrumental, possibilitando o deslocamento da competência, de forma horizontal, da Justiça Estadual para a Justiça Federal, pois ambas compõe uma só Justiça, um só sistema judiciário brasileiro. Assim, embora não seja contemporâneo à Emenda Constitucional 45, o ilustre magistério de João Mendes Júnior, datado de 1916 ainda sobrevive ao tempo, servindo como base para o presente estudo:

O Poder Judiciário, delegação da soberania nacional, implica a idéia de unidade e totalidade da força, que são as notas características da idéia de soberania. O Poder Judiciário, em suma, quer pelos juízes da União, quer pelos juízes dos estados, aplica leis nacionais para garantir os direitos individuais; o Poder Judiciário não é federal, nem estadual, é eminentemente nacional, quer se manifestando nas jurisdições estaduais, quer se aplicando ao cível, quer se aplicando ao crime, quer decidindo em superior, quer decidindo em inferior instância (MENDES JR., 1916).

A advertência de ontem há de ser o farol de hoje, pois o Brasil não é um país de tradição cujos estados-membros são fortes individualmente. O papel central da União na manutenção da cidadania é uma realidade que não se pode olvidar (CAZETTA, 2009, p. 98).

Destaca-se que o deslocamento de competência está inserido em um sistema de federalismo considerado cooperativo, nascido a partir da crise do Estado Liberal clássico, onde a União foi adquirindo ainda mais competências, repassando algumas aos seus estados-membros.

A cooperação de competências jurisdicionais é necessária sempre que determinado ente da federação não possuir condições para cumprir as prescrições constitucionais, seja por negligência, por inércia, ou por falta de vontade dos governantes. Reitera-se que quando o poder local não conseguir desempenhar suas tarefas, caberá à União, subsidiariamente, assumi-las (CAZETTA, 2009, p. 98).

A federalização dos crimes constitui regra de modificação de competência interna com base constitucional e subsidiária, no sentido de complementar a competência residual da justiça estadual e não de suprimi-la. Analisando as competências delimitadas pela Constituição de 1988 há, de modo geral, um favorecimento às competências concorrentes, no sentido de que exista um federalismo cooperativo, com os olhos voltados mais para a colaboração de seus estados-membros do que com a independência total. Segundo Alexandre de Moraes (2002) a intervenção consiste em medida excepcional de supressão temporária a autonomia de determinado ente federativo, fundada em hipóteses taxativamente previstas no texto constitucional e que visa à unidade e preservação da soberania do Estado Federal e das autonomias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Cumpre anotar que a distribuição da competência entre União e os estados varia de acordo com condições históricas, relembrando que no Brasil, os estados-membros jamais gozaram de autonomia absoluta. Com o saber de quem ajudou a construir o sistema federativo brasileiro, Rui Barbosa bem situa a origem unitária da federação:

Senhores, não somos hoje uma federação de povos até ontem separados, e reunidos de ontem para hoje, Pelo contrário, é da união que partimos. Na união nascemos. Na união se geraram e fecharam os olhos nossos pais. Na união ainda não cessamos de estar. Para que a união seja a herança de nossa descendência, todos os sacrifícios serão poucos (BARBOSA, 2003).

É justamente embasado nessa substituição de tarefas que o legislador constitucional previu a possibilidade de intervenção federal, consoante o artigo 34 da Constituição Federal. Ademais, tal medida possui caráter mais drástico, possuindo como um dos fundamentos, a proteção dos direitos humanos, conforme alínea b, inciso VII do artigo em comento.

Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior (2005), analisando o instituto da intervenção federal, dissertam que “o Estado Federal deve conter um dispositivo de segurança, necessário à sua sobrevivência. Esse dispositivo constitui, na realidade, uma forma de mantença do federalismo diante de graves ameaças”.

 Ora, se é possível tal medida drástica para assegurar os direitos da pessoa humana, não há de se falar em inconstitucionalidade ao realizar uma intervenção considerada pontual, apenas em relação à determinado caso concreto.

Por derradeiro, insta salientar acerca da decisão do Superior Tribunal de Justiça quando do julgamento do IDC-1, porquanto as preliminares de inépcia da inicial e de que o dispositivo seria uma norma de eficácia contida, carecendo de um rol definidor e exemplificativo dos crimes considerados graves, foram rejeitadas de plano, restando patente que “não há incompatibilidade do incidente de deslocamento de competência com qualquer outro principio constitucional ou com a sistemática processual em vigor” (BRASIL, 2005, p. 217).

Arrematando a temática, leciona Alexandre de Moraes:

As justiças especializadas no Brasil não podem ser consideradas justiças de exceção, pois são devidamente constituídas e organizadas pela própria Constituição Federal e demais leis de organização judiciária. Portanto, a proibição de existência de tribunais de exceção não abrange a justiça especializada, que é atribuição e divisão da atividade jurisdicional do Estado entre vários órgãos do Poder Judiciário (MORAES, 2002, p. 109).

Importante destacar que a federalização dos crimes graves contra os direitos humanos reafirmou a competência dos órgãos estaduais para apuração e julgamento dos mesmos, disponibilizando apenas, um instrumento subsidiário e extraordinário para ser aplicado quando houver incapacidade do órgão estadual em cumprir com as obrigações assumidas internacionalmente pela União. Outrossim, haverá sempre a possibilidade de não haver o deslocamento, desde que a Justiça Estadual atue de forma competente diante da grave violação ocorrida.

Sobre o autor
José Gabriel Pontes Baeta Costa

Graduado em Direito pela PUC/MG, campus Poços de Caldas. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera/UNIDERP. Advogado inscrito na OAB/MG, atuante nas áreas de Direito Constitucional, Administrativo, Penal e Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, José Gabriel Pontes Baeta. Da aplicabilidade do incidente de deslocamento de competência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4795, 17 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51254. Acesso em: 5 nov. 2024.

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