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Terrorismo policial: a persistência da memória e sua deformação jornalística

Agenda 06/09/2016 às 12:55

O problema da extrema direita é acreditar que tem o monopólio da Lei. O da esquerda é não exigir o cumprimento da Lei pelos órgãos estatais.

Ao se referir à prisão de vários jovens pela PM/SP, dois blogs evocaram o filme Minority Report.:

MINORITY REPORT: JOVENS FORAM DETIDOS POR CRIMES QUE “IRIAM COMETER”

http://www.brasil247.com/pt/247/sp247/253621/Minority-Report-Jovens-foram-detidos-por-crimes-que-%E2%80%9Ciriam-cometer%E2%80%9D.htm

http://www.revistaforum.com.br/2016/09/05/minority-report-jovens-foram-detidos-por-crimes-que-iriam-cometer/

A referência ao filme parece ser adequada, pois os garotos não haviam cometido atos criminosos antes de serem presos e a ação policial ocorreu para supostamente impedir que delitos fossem praticados. A idéia de uma justiça preventiva e capaz de se antecipar ao criminoso é tão sedutora quanto prejudicial ao Direito e à vida em sociedade. De fato, o filme trata exatamente destas questões.

O problema da referência ao filme norte-americano é outro. O paradigma para a ação policial abusiva referida no blog pode ser encontrado na própria História do Brasil. Transcrevo aqui um fragmento do texto de minha autoria que há bastante tempo está publicado na internet:

A reação policial à revolta de 1935 foi instantânea e brutal. “Como nas limpezas de 1925 e nas denúncias apresentadas perante o Tribunal de Segurança Nacional, as prisões eram determinadas por uma simples classificação de delito. Não é a realização do crime, mas a sua expectativa provável fundada na periculosidade construída sobre os delitos perpetrados anteriormente.” Mais adiante o autor detalha melhor o expediente policial: “É o currículo do antigo criminoso ou o potencial criminoso de um suspeito que determina a prisão. É o antigo sonho de uma lei penal que prevê e impede que o cidadão pratique o crime.” Esta tradição bem brasileira de punir sem processo, julgar sem instrução criminal e incriminar por suspeita poderia render bons filmes. Mas como estamos no Brasil, fomos obrigados a assistir o ator Tom Cruise encarnar o herói que se dedica a impedir que os crimes aconteçam como se isto fosse algo que ocorreria num futuro distante.

“A ligação entre o crime e a revolução decorre da concepção que se tem do crime como uma atividade fundamental das classes populares, vistas como perigosas. Esse preconceito sempre esteve profundamente arraigado no discurso oficial do poder e das classes dominantes.”  As palavras de Paulo Sérgio Pinheiro sobre o que ocorreu na segunda metade dos anos 1930 servem para descrever de maneira exata o que está ocorrendo neste momento em São Paulo. O Estado Novo equiparou os revolucionários aos criminosos comuns assim como Geraldo Alckimin pretende equiparar manifestantes, Blak Bloc e PCC na atualidade. Um pouco mais adiante, o autor de ESTRATÉGIAS DA ILUSÃO afirma que “Filinto Muller não fez nenhuma inovação no exercício do poder, pois desde 1889 pelo menos, o Estado sempre funcionou assim em relação às classes populares. O autoritarismo e o estado de exceção favoreceram essas práticas tanto no governo Artur Bernardes quando no Estado Novo. A polícia brasileira não precisava recorrer a doutrinas estrangeiras para justificar essas iniciativas de puro arbítrio.”

É interessante notar como em matéria de repressão fornecemos um verdadeiro paradigma para os EUA. A caçada aos comunistas realizada pelos mcartistas na década de 1950 em tudo de assemelha à Comissão Nacional de Repressão ao Comunismo instalada em 1936 no Brasil. Seguindo o exemplo das autoridades brasileiras, os norte-americanos também incriminaram seus adversários por suspeita. É claro que os norte-americanos acrescentaram às seções de incriminação alguma publicidade, coisa que nunca fizemos porque como latinos somos mais recatados. 

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http://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/estrategias-da-ilusao-resenha-do-livro-de-paulo-sergio-pinheiro

É possível, portanto, estabelecer um paralelo entre a ação policial no domingo e à que ocorria aqui mesmo no Brasil no início do século XX. A referência ao filme norte-americano, quando muito, deveria ser feita após uma contextualização histórica dos fatos.

A persistência centenária da memória dentro das instituições policiais (através da instrução, do treinamento, dos ritos e dos mitos que se tornaram objeto de culto oficial) é um fato cultural. Este fenômeno explica, de maneira plausível, a incapacidade da PM/SP de se ajustar aos contornos da nova Constituição brasileira. Este é o verdadeiro problema a ser combatido.

Usar filmes norte-americanos para explicar o presente sem fazer referência ao nosso próprio passado deforma a realidade. E assim uma ilusão jornalística (a de que o que está ocorrendo é apenas uma perversidade do presente ligada ao consumo de ideologias ou produtos culturais estrangeiros) fragiliza a capacidade da sociedade brasileira de combater o problema.

Não se enganem: o mal da “culpa presumida”, da “suspeita elevada à condição de crime” e da “prisão efetuada para evitar a consumação do ato criminoso” sempre esteve presente em nossa própria cultura. Nenhuma destas coisas se ajusta aos princípios constitucionais do Direito Penal, dentre os quais podemos citar: a presunção de inocência, a necessidade de prévia tipificação do crime para que a ação do suspeito possa ser considerada criminosa e, principalmente, a nulidade da imposição de uma punição sem a prévia cognição do processo pela autoridade judiciária competente.

Ao soltar os meninos presos pela PM/SP o Juiz disse que “Vivemos dias tristes para a democracia”.Ele tem toda razão, pois cumpriu e fez cumprir uma Constituição que tem sido escandalosamente desrespeitada pelas autoridades policiais que seguem agindo como se estivéssemos no princípio do século XX.  

Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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