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A educação aristocrática e o perfil do educador: um estudo sobre a filosofia de Nietzsche

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Agenda 29/10/2016 às 11:21

Pretende-se discutir se o surgimento de uma depende da outra. Se a educação aristocrática aponta para a dimensão individual, por outro lado, o perfil do educador para esta concepção de educação deverá ter como pano de fundo a busca de si mesmo.

INTRODUÇÃO

            Essa investigação é parte da produção do grupo de pesquisa Direito à Educação da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, e tem por objetivo apontar a questão da educação aristocrática  e o perfil do educador de excelência. Assim, será esquadrinhado um perfil deste com a intenção de se poder identificar e destacá-lo dos demais. Além disto, pretende-se avaliar se o surgimento do aristocrata depende da figura de um educador também aristocrático. Desta forma, dividiu-se o artigo de forma a introduzir os conceitos de educação e aristocracia, em seguida analisar a educação aristocrática, e finalmente poder desenvolver um perfil para o educador de excelência. O método é a revisão bibliográfica, tendo como principais fontes: a obra de Nietzsche (2000, 2005, 2007), assim como alguns de seus interlocutores, quais sejam, Almeida (2005), Sobrinho (2007), Mendonça (2009) e  Azeredo (2008).

            A educação pode ser averiguada como um dos aspectos que mais diferencia a humanidade da selvajaria animalesca. É possível a educação como o meio pelo qual o homem apreende noções comuns e inerentes às peculiaridades de seu grupo social. O próprio radical do vernáculo educação já é tautológico, dado que descende do verbo latino educere: “conduzir para fora, fazer sair, intimar, produzir, exaltar, elevar, criar” (DICIONÁRIO ACADÊMICO, 2008, p. 154). A etimologia sugere, desta forma, o caráter emancipatório[1] e transformador[2] do processo educativo.

            Entretanto, não obsta asseverar que a aprendizagem não se confunde com a atividade de educação propriamente dita. A aprendizagem é o processo de introjeção gnoseológica, ou seja, o ser cognoscente – neste caso o homem – apreende informações do mundo cognoscível por meio de seus órgãos do sentido, em seguida, interpreta-os utilizando sua percepção. Como preleciona Atkinson (2002), “pode-se definir aprendizagem como uma mudança relativamente permanente de comportamento que ocorre como resultado da prática” (p. 257). Assim sendo, nota-se que este processo de aprendizagem é o meio, enquanto que a educação é o fim.

            Também não se confunde educação – em sentido lato – com a educação formal. Aquela educação genérica é a que se conceituou alhures, correspondendo ao conhecimento vulgar[3]. A educação formal, por outro lado, dá-se por meio de um processo pedagógico e meticuloso, a qual vem sendo aperfeiçoada ao longo da humanidade. Atualmente, entende-se por ensino formal aquele ocorrido nas instituições de ensino autorizadas pelo Estado: escolas, universidades, academias e estabelecimentos de ensino à distância. É neste ambiente acadêmico que o indivíduo tem seus primeiros contatos com o conhecimento científico e filosófico. Este conjunto de conhecimentos torna-o apto à desempenhar determinada profissão, implementa sua relação no seio familiar e social, além de torná-lo cidadão politicamente consciente.

            O estudo da história aponta que no fim da Pré-história e início da Antiguidade, quando o conhecimento tecnológico ainda era incipiente e a filosofia dava seus primeiros passos, não havia nexo em haver a figura do educador e da escola como existe hoje. A religião, pela mitologia, fornecia ao homem todas as explicações do mundo. Além disto, grande parte do que as pessoas sabiam era basicamente intuitivo ou facilmente apreendido, o saber era relativo a um conhecimento prático, então os próprios adultos se faziam de educadores dos jovens mais inexperientes. Entretanto, com o avanço da tecnologia, no decorrer do período Clássico, foi necessário que o conhecimento agregado – na agropecuária, engenharia, matemática e artes – fosse ensinado para os jovens de uma forma mais didática e meticulosa. 

            Até o período Arcaico o trabalho braçal era visto como o único caminho para se alcançar a virtude. Segundo a mitologia grega, o próprio Ulisses – rei de Ítaca – gabava-se ao dizer que colhia mais rápido do que qualquer um de seus escravos (ASSIS; KÜMPEL; SPAOLONZI, 2010). Não obstante, com o aumento da densidade demográfica, os donos das terras mais férteis passaram a adquirir mais escravos. A abundância de mão-de-obra fez com que os senhores se tornassem cada vez mais ociosos, deixando o trabalho prático para os escravos. Os aristocratas e a nobreza passaram a não mais admirar o trabalho braçal como virtuoso, levando sua atenção para o conhecimento das artes e da filosofia, que dava seus primeiros passos.

            Foi neste contexto histórico do período clássico antigo que a escola – como se entende hoje – tem sua gênese (BRANDÃO, 1983). Durante este momento surgem duas instituições de ensino “a oficina de trabalho, para onde vão os filhos dos escravos, dos servos e dos trabalhadores artesãos; e a escola livresca, para onde vão os futuros senhores” (Idem, p. 52). A respeito deste modelo de educação formal, cita-se como exemplo Alexandre III da Macedonia, cujo preceptor foi Aristóteles. A história mostra que o resultado de tão portentosa educação resultou no maior conquistador da história: Alexandre, o Grande, tornou-se Rei da Macedonia, Hegemônico da Liga Helênica, Xá da Pérsia e Faraó do Egito.

            Este modelo educacional estratificado – a educação servil e senhoril – foi bastante eficiente durante o período clássico e perdurou por toda a Idade Média. Os servos recebiam a educação técnica formal nas oficinas, onde tinham contato com o saber tecnológico, meramente voltado para o trabalho. Nesta sociedade estratificada não havia muita possibilidade de escolha, nem opções disponíveis, o trabalho era sempre de força brutal, as únicas exceções eram os artistas e os comerciantes. Os servos e os burgueses medievais, em geral, aprendiam o ofício pelo qual suas famílias estavam ligadas e o exerciam pelo resto de suas vidas.

            Este saber técnico, pertinente à atividade servil, era absolutamente desnecessário tanto aos pontífices e aristocratas antigos, quanto aos clérigos, nobres e senhores feudais medievais. Por pertencerem a uma sociedade de estratificação imutável, a elite jamais exerceria qualquer atividade relativa ao escravismo. Então, para ela restava o ensino das artes, da matemática, da física e da filosofia. Estas categorias de conhecimento teórico eram muito apropriadas para eles, uma vez que passariam o resto de suas vidas dedicando-se exclusivamente à religião, à governança, à administração de suas terras ou à atividade bélica.

            Outrossim, o início da Idade Moderna, com o alvorecer do movimento Iluminista e o legado da Revolução Francesa, transformou a dicotomia entre educação proletária e elitista cada vez mais anacrônica. O avanço tecnológico exigiu da classe trabalhadora um conhecimento cada vez mais aprofundado e as escolas de ofício da Idade Média não atendiam mais à demanda do mercado. Os proletários deveriam especializar-se cada vez mais para conseguir manusear as máquinas cada vez mais modernas e o analfabetismo passou a ser cada vez mais inaceitável ao exercício profissional. Além disto, o aumento populacional do último século, jugado à entrada da mulher no mercado de trabalho e os novos maquinários – que substituíam cada vez mais a mão de obra humana –, fizeram aumentar demasiadamente a oferta de trabalhadores. Dentro da massa de desempregados, o proletário necessitava implementar suas habilidades e conhecimentos para conseguir um emprego ou mesmo ser promovido. 

            A contemporaneidade trouxe uma nova significação à ideia de melhoria educacional, uma vez que, cada vez mais, confunde-se democratização[4] com fomento no sistema educacional. Neste sentido, democratizar a educação equivale a dizer que o Estado deve proporcionar formas igualitárias de acesso à ela. Facilitando não só o ingresso do indivíduo na escola, como sua continuidade. Além disso, a democratização é apontada, muitas vezes, como a única forma de tornar os indivíduos intelectualmente capacitados para serem cidadãos conscientes e, consequentemente, a solução para o desenvolvimento do país.

            Entretanto, nesta trincheira, Nietzsche (2007) argui que essa ideia de democracia educacional como solução para o desenvolvimento do país é errônea. A luta pela igualização – ou, segundo o filósofo, a mediocrização – dos indivíduos por meio da educação, pressupõe que todos são iguais. Este pensamento ignora totalmente a idiossincrasia humana e o fato de que é absolutamente natural a desigualdade. Sendo seres singulares, não há dúvida de que haverá diferença no desenvolvimento intelectual. Esta diferença é apontada como perniciosa, uma vez que  alguns serão melhores[5] que outros.

            Em súmula, é inútil democratizar a educação por dois motivos: primeiramente pela própria singularidade humana, por isso uma vez que não há porque se falar em dar oportunidades iguais, já que as pessoas não são iguais e nunca serão; o segundo motivo habita diretamente nas ideias de Nietzsche (2007), de acordo com ele, a equalização da educação é um processo atroz que levariam os indivíduos à uma mediocridade sem precedentes.

            Destarte, dada a própria singularidade humana, é perfeitamente normal que alguns indivíduos desenvolvam-se melhor em determinada habilidades que outros, assim sendo, no caso da educação, é natural e aceitável a existência de uma elite intelectual. Então, segundo esta ideia nietzschiana de hierarquia, como podem ser classificados os homens segundo sua capacidade intelectiva?

1.Gregários e Aristocratas[6]

            Aristóteles (1998) já havia observado a necessidade do homem de viver em grupo, daí sua célebre frase dizendo que o homem é, necessariamente, um ser social. Utilizando-se de um viés evolucionista, observa-se que historicamente o desenvolvimento da vida humana, desde o tempo primitivo, sempre ocorreu em um contexto coletivo. A vida em sociedade, para o homem, é mais do que um instinto, é uma condição essencial para sua sobrevivência[7]. Deste modo, é inconcebível a existência de um homem absolutamente fora da sociedade.

            Não obstante, em vários momentos de sua obra Nietzsche critica um tipo especial de agrupamento, onde a gregaridade humana é vivenciada ao limite. Neste caso ocorre o próprio afastamento da individualidade, onde o homem deixa de ser uma figura ativa e passa a ser apenas um mero elemento coadjuvista do conjunto. Segundo o próprio filósofo, esse estado amariçador pode ser entendido como um retrocesso intelectivo e é um evidente retorno à gênese animalesca. Para esta demasiada e nefasta gregaridade, Nietzsche dá o nome de rebanho:

O rebanho é o modo e a condição de existência do homem moderno: o rebanho é a massa. O rebanho moderno é o resultado da exacerbação do antigo e originário instinto gregário (o instinto animalesco de bando), quer dizer, a sociedade de massa moderna é o instinto gregário levado até as suas últimas consequências (SOBRINHO, p. 21).

            In summa, Nietzsche não critica aquele aspecto social do homem, visto que é uma característica própria do homem – ou seja, aquela característica aristotélica essencial ao gênero humano. A crítica está justamente na excessiva e absoluta dependência que alguns homens adquirem do grupo social. Acrescenta o filósofo alemão que esta gregariedade humana não ocorre arbitrariamente nesta espécie. Foi inicialmente o animus de sobreviver em um mundo extremamente hostil e o medo de morrer que fez com que os homens se agrupassem:

A gregaridade não nasceu da espontaneidade de um instinto social colocado no homem pela natureza, mas de uma obrigação imposta pelas castas dos mais fortes pelo medo da morte que sobreviria caso os homens não estabelecessem uma associação diante de um perigo comum (SOBRINHO, 2007, p. 13.).

            Este instinto de sobrevivência, desenvolvido nos clãs primitivos, tornou-se tão forte que vem a sobreviver até os dias hodiernos. Evidentemente que os dilemas psicológicos e as ardualidades ambientais enfrentadas pela humanidade transformaram-se muito no decorrer da história. Sem embargo, pode-se observar que, por mais que a tecnologia tenha avançado do ponto de vista salutar e axiológico, a peleja pela sobrevivência permanece viva no âmago de cada indivíduo. Assim como o homem pré-histórico escudava-se entre os semelhantes diante das hostilidades dos animais perniciosos e das tempestuosidades da natureza, o homem coevo igualmente busca a mesma proteção de seu grupo social diante da violência urbana e dos tormentos morais.

            Consoante à filosofia nietzschiana, pode-se conceber a ideia de que o rebanho nada mais é que uma massa, um conjunto de homens que, por pensarem e agirem de forma homogênea, transformaram-se em um único grupo – o que explica a metáfora do rebanho. Os componentes deste grupo transformam-se em seres totalmente dependentes uns dos outros. Eles não pensam de forma crítica, não têm uma opinião sobre si mesmos, muito menos a capacidade de autopsia crítica sobre seus atos.

            No mesmo argumento, segundo Azeredo (2008), o conceito de sociedade de rebanho representa a grande maioria da população. A relação que existe entre esse grupo social e o rebanho está na forma homogênea em que estes animais obedecem ao pastor e caminham na mesma direção: comportamento gregário. Os homens deste substrato social representam a “mediocridade coletiva” (NIETZSCHE, apud, AZEREDO, 2008, p. 18). Neste sentido, como se pode pensar em uma origem para este processo pernicioso de gregaridade? “Desde que houve homens, houve também rebanhos de homens – associações de famílias, comunidades, tribos, povos, Estados, Igrejas – e sempre muito obedientes em comparação com o pequeno número daqueles que mandam”. (NIETZCHE, 2000, p. 109).

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            Com efeito, pode-se entender que a concepção de rebanho é um instinto inerente a própria condição de espécie humana. Aobediência citada pelo filósofo refere-se, pois, à própria passividade com que este tipo humano relaciona-se com os valores impostos para eles. É uma característica do rebanho seguir o pastor cegamente, ou seja, não refletir sobre seus atos e seus sentimentos. Em suma, pertencer ao rebanho representa a própria incapacidade e submissão aos domínios da moral[8].

            Não obstante, falou-se até aqui apenas de uma parte da sociedade, o famigerado rebanho, claramente visto de forma perniciosa à luz das ideias nietzschianas. Dada a inferioridade intelectual, seus indivíduos acabam por se submeterem aos valores, ideias e comportamentos impostos à sociedade. Sua subalternidade se dá, em última análise, pelo seu conhecimento medíocre, sua falta de desenvolvimento no campo da intelectualidade e pela falta de crítica e reflexão. Pode-se perceber então que esta divisão social realizada por Nietzsche se utiliza de um parâmetro intelectual[9]. Neste sentido, como Nietzsche classifica os indivíduos que não representam a mediocridade gregária?

            A despeito de não existir uma dicotomia exata nessa classificação, os homens que não representam o rebanho recebem a denominação de homens de excelência. Para este grupo se pode atribuir, como uma de suas características mais ululantes, o fato de possuírem seus espíritos livres, são senhores de seus atos  e não se submetem aos valores da moral dominante (NIETZSCHE, 2007).

            Esta ideia de homem superior não é uma inovação desenvolvida por Nietzsche. Os gregos já falavam nesse indivíduo singular que se destaca da sociedade. Por este motivo, o conceito nietzschiano de aristocrata[10] está relacionado a sua própria raiz etimológica: άριστος, onde se lê “aristós”, vocábulo grego que significa o melhor, aquele que se destaca entre muitos, o que se diferencia do comum, o que foge da massificação e do nivelamento (MENDONÇA, 2009). Destarte, torna-se evidente que o homem aristocrata é o oposto do homem da sociedade de rebanho. Estes dois elementos estão diretamente ligados com a educação, uma vez que “a tese da educação aristocrática está estruturada em contraposição à educação de rebanho e à igualdade” (Idem, p. 117). Neste sentido:

A aristocracia de Nietzsche é então uma nova classe de homens superiores, afastados da religião, da política e dos valores morais vigentes. O seu aristocratismo está fundado na ideia de que os homens são desiguais: guias e rebanhos, homens completos e homens fragmentados, homens bem-sucedidos e homens fracassados (MELO SOBRINHO, 2007, p. 55).

            A ideia de aristocracismo, oposto ao rebanho, deve ser entendida nesta pesquisa apenas em relação à potência intelectual do indivíduo, ou seja, sua inteligência e capacidade de pensar, refletir e autossuperar-se. A aristocracia pode estar vinculada a uma sólida formação, através de cursos universitários, ou mesmo na dedicação docente à pesquisa. Não obstante, a aristocracia não se resume a tais títulos acadêmicos, nem tão pouco a seus doutos, na medida em que a aristocracia transcende a mera educação forma e acadêmica[11].

            Ora, se o rebanho se encontra tão distante da aristocracia, do ponto de vista intelectual, como é possível pensar no desenvolvimento desta aristocracia? Em outra palavras, será possível deixar de pertencer ao rebanho e vir a se tornar um aristocrata? Pertencer ao rebanho não significa uma total incapacidade ou irrestrita possibilidade de vir a ser um aristocrata. Então, é possível entender, segundo as ideias nietzschianas, que as pessoas não nascem aristocratas. O trabalho árduo e o exercício intelectual que o homem ganha a independência do aristocrata.

Uma aristocracia se define pela independência, auto-referência e autodomínio dos seus membros em relação a todos os outros homens, que são escravos e devem trabalhar como instrumento dela. (…) Esta nova nobreza se define então pelo distanciamento e oposição ao populacho, para quem todos são iguais e não há homens superiores (MELO SOBRINHO, 2007, p. 55).

            Ora, se a aristocracia é uma característica intelectual, quando ele se inicia? Será que é possível pensar em um desenvolvimento para ela? Visto que a aristocracia aponto para autossuperação, este desenvolvimento não poderia ser inato, uma vez que a criança não seria capaz de apresentar este desenvolvimento maturacional. Logo, esta faculdade intelectiva provavelmente começa a ser experienciada na juventude. O próprio amadurecimento psicológico, durante a meninice, possibilita o surgimento do fenômeno da excelência[12]

            Evidentemente este processo não se apresenta dessa forma causuística na prática. Além de toda a questão supra-analisada – a respeito da influência orgânica, psicológica e ambiental –, são inúmeros os fatores que levam ao desenvolvimento da aristocracia. Porém, a excelência não envolve necessariamente um fenômeno de maturação da criança ou do jovem. Isto significa que a aristocracia poderia florescer em um momento de maior maturidade da vida. Nietzsche não estabelece uma exatidão nesta gênese, nem ao menos trata de seu caráter psicológico ou orgânico. Contudo, sendo uma capacidade intelectual, entende-se que ela depende de todo este plexo. Então,  o aristocracismo de Nietzsche não é uma essência inata, ou uma característica própria natural. Pode-se entender que ele necessariamente deve ser trabalhado com o tempo, ao longo da vida.

            Desta forma o aristocrata não representaria o ápice do desenvolvimento humano intelectual? A filosofia de Nietzsche não aponta para esta afirmação, pode-se entender que existam diversos graus de excelência. Sendo assim, não se deve entender a aristocracia como um fim, mas como um meio, visto que a capacidade de apreender e se tornar melhor não possui um limite pré-determinado.  O trabalho, o estudo e as novas experiências transformam o indivíduo diariamente até o fim da vida. Outros fatores de ordem salutar, como a demência e a exclerose, por exemplo, poderiam impedir este fluxo.

            Mas quem são estes poucos homens que conseguem atingir este patamar de superioridade?Como já exposto, é pela demasiada dificuldade que encontra cada indivíduo em se tornar um homem de excelência que esta atividade é para poucos. Observando essa relação entre a aristocracia e a educação, propõe-se a reflexão primordial desta pesquisa, qual seja, quais as condições para se tornar um aristocrata? Será que a educação de excelência influenciaria deste processo? Ou, em outras palavras, a educação aristocrática seria necessária à formação dele?

2. Condições para excelência

            Retomando a discussão das condições para excelência, relembra-se que, segundo Nietzsche, a sociedade é estratificada, grosso modo, em suas categorias: rebanho e aristocracia. Re-assevera-se ainda que, devido a própria idiossincrasia humana, existem infindáveis subdivisões a estas categorias. Assim, existindo esta sub-hierarquização, pode-se entender que alguns indivíduos estão mais fadados à permanecer no rebanho do que outros? Será que o mesmo ocorre com o aristocrata? Então, pode-se considerar que alguns aristocratas seriam mais aristocratas que outros? Neste sentido, quais as condições para se tornar um aristocrata ou aproximar-se de sua existência?

            Em relação à própria análise desenvolvida por Nietzsche, contrário à qualquer tipo de dogma ou ideia fixa e derradeira, é demasiadamente dificultoso e complexo traçar um perfil exato para o aristocrata. Pensar nestas condições e nos processos de desenvolvimento da aristocracia é algo praticamente impossível. Nenhuma afirmativa feita por Nietzsche pode ser interpretada de forma finalística e exata. Desta forma, pensar nas condições para a excelência demanda uma análise de grande divagação.

            Dessarte, as ideias nietzchianas sugerem que uma das principais condições para se tornar um aristocrata é o próprio sentimento de querer ser um. O homem primeiramente deve ter a percepção de seu estado animalesco de gregaridade e saber que existe uma aristocracia, ou seja, existe uma classe humana intelectualmente acima dele. Somente após ter esta certeza é que o homem pode ter a sensação desta vontade. Uma vez que o processo de excelência é demasiadamente trabalhoso, não parece lógico imaginar que uma pessoa poderia desenvolver este dom naturalmente.

            Por outro lado, mesmo considerando este processo aristocrático extenuantemente penoso, esse longo período de formação poderia ser notado de forma sutil ao indivíduo que o vivencia, tão sutil que ele nem teria consciência de sua mudança. Em outras palavras, estas transformações e aprimoramentos intelectuais poderiam ser tão lentos e gradativos que ao atingir tal hierarquia, ultrapassando esse limite imaginário entre as debilidades gregárias e a superioridade de excelência,  a experiência de ser um aristocrata passaria-lhe despercebido. Quiçá para grandes gênios da humana, cujas prodigiosas capacidades já eram notadas desde a mais tenra idade, a percepção de ser um aristocrata deva ser algo absolutamente natural ou prosaico[13]. Mas como pensar no aristocracia enquanto prática? “Maior será aquele que souber ser o mais solitário, o mais escondido, o mais afastado, o homem que viver para além do bem e do mal, o senhor de suas virtudes, que será dotado de uma vontade abundante”. (NIETZSCHE, 2000, p. 134).

            Nietzsche mais uma vez ressalta a importância da solidão enquanto meio possível à reflexão, pois só é possível pensar verdadeiramente quando se está afastado dos tumultos da sociedade gregária. Além disso, o bem e o mal representam a própria questão da moral, ou seja, o aristocrata não deve ser submisso a moral vigente. A aristocracia aponta para a ressignificação da moral e possibilidade de se criar novos valores e suas próprias virtudes. Já a vontade abundante é provável que representa a própria ideia da energética da vontade de potência.

            Neste sentido, caso realmente exista esta energia, a qual dá a alguns homens a consciência e o desejo de se tornar um aristocrata, pode-se entender que esta representa o que Nietzsche denomina de vontade de potência. Esta ideia pode ser entendida como a própria força pela sobrevivência, ou seja, o próprio animus em querer sobreviver e se superar. Segundo Nietzsche, “a própria vida é vontade de potência” (2000, p. 30).

            Este fenômeno humano potencial é desenvolvido na filosofia nietzschiana e refere-se, segundo Mendonça (2009), diretamente a um plexo de forças internas e ao próprio desejo de acumular mais forças. Em outro pensamento, esta ideia poderia ser entendida como um sentimento de insatisfação do próprio estado de inferioridade e ignorância inato. Esta incompletitude de conhecimento e a sede pelo querer ser melhor que representa a vontade de potência. O mesmo autor ainda completa:

A vontade de potência parece ser a base da teoria do conhecimento de Nietzsche, considerando o homem como o experimentador que busca realizar a vontade da vontade, ou seja, busca constantemente a superação e destruição do que é, a fim de se criar e recriar um novo homem (2009, p. 56).

            Em analogia com o que se espera de um filósofo, esta volúpia por superação sugere a própria necessidade do homem pelo conhecimento, sua intensa busca por respostas. O tormento da dúvida leva este desbravador do saber às últimas consequências. Destarte, essa vontade de potência é interpretado como uma grande necessidade de se conquistar o máximo de sapiência possível, na utópica tentativa de se chegar a verdade. Uma vez que – por mais que Nietzsche negue a existência de uma verdade absoluta – o que é a filosofia se não o eterno devaneio em busca de respostas que se resumem em uma pergunta: qual é a verdade?

            Uma vez que não se pode conceber a ideia de que um homem torna-se aristocrata de uma forma inata ou natural, assevera Mendonça (2009) que a vontade de potência é o pano de fundo da possibilidade de construção de uma educação aristocrática. Ou seja, é através dessa grande energia fluida que se pode conceber a ideia de uma educação propriamente aristocrática. Dado que a vontade de potência aponta para uma dinâmica de forças internas que se superam continuamente. Destarte, explica o mesmo autor que a vontade de potência refere-se diretamente a um plexo energético de forças internas, em especial forças de resistência: “a vontade de potência pode se manifestar somente na oposição; depois ela procura aquilo a que se opôs” (NIETZSCHE apud MENDONÇA, 2009, p. 53).

            Grosso modo, segundo a filosofia nietzschiana, pode-se entender que a vontade de potência, a despeito de toda a complexidade com que é tratada pelo filósofo, é influenciada principalmente por dois elementos essenciais, quais sejam: a autossuperação e a autocrítica. Em relação à autossuperação, explica Mendonça (2009) que esta diz respeito à tentativa dos pensadores em serem protagonistas do conhecimento e não mais se submeterem a uma aceitação da autoridade divina na esfera cognitiva. Ora, não seria este sentimento o próprio desejo de deixar seu estado de mediocridade e atingir uma superioridade?

            A aristocracia não deve ser entendida como o estado de apogeu do homem. Relativo ao que foi examinado sobre o dever-ser aristocrático, a sabedoria e a emancipação intelectual são processos que não tem fim. É por este motivo que o aristocrata deve ter a autossuperação como uma característica peculiar, uma vez que deve sempre buscar a perfeição e o aprimoramento. Ressalta-se porém que a perfeição neste caso é hipotética, uma vez que não existe um homem perfeito. Desta forma, os sentimentos de preguiça e comodismo são opostos à figura do aristocrata.

            Esta superação, em última análise, representa a negação da própria pré-existência gregária, uma vez que a aristocracia não representa um ponto de partida, visto que ninguém nasce aristocrata, a excelência é uma característica alcançada após muito esforço. Em todo o desenvolvimento e processo de aprendizado, o homem é limitado por uma força inércica, assim como os corpos no universo, esta força impele-o ao estado de estagnação e impotência.

            A autossuperação, por sua vez, pressupõe a árdua tarefa de autocrítica (Mendonça, 2009). Neste diapasão, nota-se que para haver a superação de si e o enfrentamento dos limites, é necessária esta criticidade. Evidentemente que quando se fala em autocrítica não denomina-se apenas a autopsia, ou seja, a reflexão subjetiva e individual. A autocrítica deve ser entendida como atividade ligada ao próprio pensamento reflexivo do universo, e não apensas si mesmo. Nota-se que autossuperação e autocrítica estão interligadas neste processo aristocrática, apresentam-se então uma a depender da outra.

            Analisando as condições para o surgimento da figura do aristocrata, é plausível arguir que são aquelas que afastam o homem de sua origem gregária e animalesca. Elenca-se, como fator primordial ao processo de afastamento do primitivismo alienante, segundo a própria ideia de Nietzsche, a vontade potência contendo estes sentimentos de autossuperação e autocrítica. Inobstantemente, em aderência à figura do educador, como se poderia pensar em um perfil para o educador aristocrático? Quiçá, não seria menos leviano pensar se seria possível a existência de um educador aristocrata?

3. Perfil do educador aristocrático

            Sigmund Freud escreveu certa vez que existem três profissões impossíveis de serem exercidas: governar, analisar e educar[14]. Nesta citação, Freud assevera sobre a complexidade e subjetividade que existe nesta três tarefas. O homem é um ser tão complexo e idiossincrático que é impossível estabelecer uma padronagem, ou seja, delimitar um sistema de comportamentos que leve a resultados sempre iguais[15]. Destarte, assim como o analista e o político, a tarefa pedagógica não é fácil.  

            Nesse sentido, a ideia de educação aristocrática nasce da tentativa de se pensar a figura do educador em consonância com o aristocrático. Não obstante, ressalta-se que Nietzsche jamais falou em educação aristocrática, esta ideia de aglutinar estes dois universos filosófico foi do eminente professor Mendonça (2009) em sua tese de doutoramento. Segundo o mesmo autor:

A tese formulada de que é possível conceber a educação aristocrática em Nietzsche por meio do perspectivismo e da autossuperação do sujeito apontou uma educação individual, do destaque, do homem solitário; educação da exceção. Essa educação que sugere a autocrítica como elemento para a autossuperação do sujeito não é para todos, mas para os que têm reverência por si  (2009, p. VII).

            Sem embargo, admitindo-se que a aristocracia pensada por Nietzsche pode ser utilizada como foco ao campo da pedagogia e da filosofia da educação, quais as possíveis características encontrada entre estes educadores aristocráticos? Será que apenas a vontade de potência, juntamente com a autocrítica e a autossuperação, é necessária para a existência ou surgimento desta figura aristocrática? Sobre o perfil do aristocrata Nietzsche indaga seus leitores: “O que são aristocrático? Que sentido a palavra “aristocrático” pode ter ainda hoje? (…) Não são as ações que indicam isso – as ações são sempre ambíguas, sempre insondáveis –, não são também suas 'obras'”(NIEZSCHE, 2007, p. 314).

            Através desta citação, é possível perceber que a aristocracia independe do comportamento humano, assim, não se pode julgar uma pessoa por suas ações, sua fala ou suas produções. Nietzsche deixa bem claro que é leviano a mera observação destes aspectos para identificar se o indivíduo é um aristocrata. A aristocracia é um fenômeno subjetivo que reside na própria alma do sujeito. Ou seja, muitas vezes o aristocracismo não se evidencia, uma vez que não transcende a psiquê humana.

            Deste modo, pensar sobre o perfil do aristocrata, tendo em vista sua emancipação e sua transformação individual, levaria o leitor à devanear sobre uma interessante citação realizada por Nietzsche em sua obra Para além de bem e de mal. Segundo recordação de Mendonça (2009), esta citação elege quatro qualidade ao homem de excelência, quais sejam: a coragem, a perspicácia, a simpatia e a solidão.

            Segundo a filosofia nietzschiana a coragem aponta para uma qualidade inerente à superação. É por este motivo que o covarde jamais tem a intenção de se superar, ele é pior do que o perdedor, que ao menos tentou vencer. Quem não tem esta coragem está dominado e consumido pelo medo, o que transforma o homem em um ser inerte e acomodado. Nietzsche não fala sobre a coragem no sentido heroico de bravura, esta coragem stricto sensu diz respeito as próprias demandas da aristocracia. Como qualquer outro homem o aristocrata terá medo, entretanto, sua diferença com o homem comum é que este não permite que seus temores limitem sua busca pela excelência.

            A perspicácia, assim como a coragem, tão pouco se desliga da autossuperação. Uma vez que não existem evolução, mudança e emancipação, sem que haja o árduo trabalho do desenvolvimento intelectivo. A introjeção do conhecimento e a reconstrução do saber já sedimentando – o aprender e desaprender – demandam tempo e paciência. Desta forma, é imprescindível que o homem superior chega sagaz em sua busca pela superioridade.

            Nietzsche entende a solidão como uma contraposição à condição de gregaridade, obviamente configurando uma necessidade para a formação do aristocrata. Uma vez que a sociedade de rebanho preza pela grupalidade da humanidade em uma massa homogênea, a solidão é o primeiro requisito para romper com o status quo. Para o filósofo a solidão é um dos caminhos para se alcançar a aristocracia, visto que o homem solitário possui tempo para refletir. Neste sentido acrescenta-se:

A solidão é tida como uma grande virtude do aristocrata, e marca a vida aristocrática na medida em que o homem nobre busca na solidão e no silêncio a compreensão das forças internas que tem: busca a sua excelência por meio da autocrítica e da autossuperação constantes (MENDONÇA, 2009, p. 104).

           Essa solidão deve ser entendida não como o afastamento do convívio social ou o rompimento com o seio familiar. Assim como a criança aprende a andar sem ajuda da mãe, o homem se torna senhor de si por mérito próprio, ou seja, sozinho. Segundo a metáfora da criança, a mãe está próxima observando de longe seu filho, o processo de aristocracia pode ser visto de forma semelhante. Mesmo este sendo uma atividade solitária, o homem aristocrata ainda pode se valer do auxílio de outros aristocratas, de forma a um ajudar o outro. Neste sentido, Nietzsche “vem salientar a ideia de que os que se destacam da 'mediocridade coletiva' têm de se enriquecer reciprocamente, servindo de professor uns aos outros” (AZEREDO, 2008, p. 18).

           Além desta caracterização, em outro momento, Nietzsche estabelece mais três novos atributos ao homem superior. Estes invariavelmente encontram consonância com a questão da autossuperação e da autocrítica, que por sua vez fazem relação à  coragem,  perspicácia, simpatia e solidão, que tratamos alhures. Assevera o autor:

Em primeiro lugar, ele tem em toda sua atividade uma lógica ampla (…). Em segundo lugar, ele é mais frio, mas duro, mais terminado e sem medo da “opinião pública” (…). Em terceiro lugar, ele recusa o coração “compassivo”, mas o quer como servidor, instrumento (NIETZSCHE, 2007, p. 331).

            Esta lógica ampla que fala o filósofo alemão está intimamente ligada à visão crítica. Ora, mas o pensamento de forma lógica e universal não é o próprio conceito de conhecimento filosófico[16]? O olhar do todo de forma lógica e crítica, desta forma, afasta-se do conhecimento vulgar e aproxima-se da visão filosófica. Esta característica asseverada por Nietzsche é justamente a atividade do filosofo. Seria então o aristocrata um filósofo por extensão? 

            Em relação à citação, entende-se que a frieza e a dureza sejam atributos da perspicácia. O homem fraco, aquele que sente compaixão de si mesmo, desiste rapidamente de seus objetivos tão logo aproxima-se dos obstáculos. Ser duro e frio consigo é o que pretende mostrar Nietzsche. A frieza e a dureza já pressupõem a existência da autossuperação e consciência das limitações física e psicológicas.

            Nesta educação aristocrática, tendo o educador como figura ativa no processo de excelência, a frieza e a dureza revela-se consigo para com o outro. Destarte, o educador deve ter consciência de sua nobre função enquanto provocador na transformação e emancipação do educando. Neste sentido, ser frio não significa ser atroz, o educador aristocrático deve agir sempre pela razão e sabedoria, tendo consciência de que está fazendo o melhor para auxiliar seu aprendiz nesta relação. Este penoso processo de aprendizagem revela a dificuldade em que existe em se tornar ou se desenvolver a excelência. Como mencionada anteriormente, a aristocracia representa uma atividade para poucos devido ao próprio esforço despendido pelo indivíduo para se tornar um, na relação pedagógica ocorre o mesmo. Deste modo, Nietzsche evidencia o rigor que deve existir na relação de aprendizagem, o educador deve ser disciplinado e impor a mesma disciplina ao educando.

            Se por um lado a dureza e a frieza são valorizadas na educação aristocrática, por outro lado a compaixão é reprovada. Assim sendo, pode-se entender que o filósofo alemão referia-se à compaixão como aquele sentimento de piedade para com o outro. Visto que esta relação educativa visa o amadurecimento do indivíduo, a compaixão é avesso da dureza e da frieza, uma vez que se opõe à educação rigorosa e à dedicação ao estudo. Este pensamento refere-se ao desempenho e aproveitamento no processo educativo, ou seja, o educador não pode sentir pena de seu educando, pois neste caso ele seria menos exigência e o desempenho possivelmente seria menor.

            A frieza e a dureza, juntamente com a falta desse sentimento de compaixão nefasto, também não deve ser confundida com uma relação autoritária, onde o educador apresenta-se como figura superior. O educando não deve respeitar seu educador por medo, mas por sua capacidade intelectual. A relação pedagógica não pode ser tirânica, nem pautada pelo medo, o educador deve fazer com que seus educandos o respeitem pela sua autoridade e potencial de conhecimento[17].

            Entretanto, em relação ao medo da opinião pública arguído por Nietzsche, nada mais é que o medo comum em espécie. A coragem vem justamente escudar este sentimento nefasto que só gera inércia. A questão da opinião dos outro está ligado com própria vivência gregária do homem. Não se pode fugir do julgamento alheio, nem mudar a opinião dos outros em relação ao indivíduo. Não obstante, a vida solitária já pressupõe um afastamento da balbúrdia do rebanho. 

            Ainda em sobre à educação aristocrática, em que medida o educador de excelência aproxima-se com a figura do altruísta? Em outras palavras, será que este sentimento de preocupação e desejo de transformar o indivíduo em aristocrata através de uma sólida formação de excelência pode ser confundido com o altruísmo? Será que todo esse empenho no processo educativo representaria, em última análise, uma caridade? Ou será que o aristocrata estaria empenhado na função de educador uma vez que ele próprio se aproveitaria deste processo, através da troca de conhecimento, ou mesmo pela própria vaidade em ser professor?

            Esta questão faz-se necessária uma vez que remete a própria motivação do aristocrata em querer ser um educador. Neste caso, grosso modo, pode-se pensar em duas vertentes que motivaria este desejo em educador, quais seja: primeiramente fala-se da própria vontade de disseminação do conhecimento, promovendo a transformação dos indivíduos através da educação, o educador teria prazer em educar uma vez que este representa um ato de bondade e altruísmo; em oposição a este pensamento, a motivação à educação estaria pautada não em um ato de benevolência e caridade, neste caso, o aristocrata utilizaria-se da educação para benefício próprio, uma vez que ele também iria beneficiar-se da relação educativa.

            O primeiro argumento remete à própria análise realizada por Nietzsche em relação aos valores, desenvolvidas principalmente nas obras Além do bem e do mal e Genealogia da moral. Segundo sua filosofia, a sociedade ocidental hodierna está contaminada pelo valor de bondade cristã, este sentimento leva as pessoas à crença de que é necessário fazer o bem, uma vez que os homens são por essência bons. Entretanto, esta piedade e caridade esconde um hipócrita sentimento de devoção à Cristo:

Existem homens que se tornam hipocondríacos por empatia e preocupação com outra pessoa; a espécie de compaixão que daí nasce não é outra que uma doença. De modo que há também uma hipocondria cristã, que ataca as pessoas solitárias e movidas pela religião, que continuamente têm diante dos olhos a paixão e a morte de Cristo (NIETZCHE, 2005, p. 50)

            O valor do que é bom e do que é mal[18] representa a moral, este sentimento foi construído pela própria humana sendo reflexo de cada cultura e grupo social. Entretanto, diante da citação, pode-se entender que este sentimento de bondade, impregnado em cada indivíduo, está acima de muitos valores e vem sobrevivendo a quase dois milênios nas sociedades cristãs. A bondade e a caridade é a base da doutrina cristã, por este motivo, não é de se estranhar que estes valores estejam tão disseminados. Este legado é tão presente ao homem hodierno que passa despercebido ao olhar leviano, no cotidiano as pessoas são impelidas à fazendo ações que visam o bem comum. E é neste dilema entre fazer o bem e o mal – e o que é bem e mal? – que o homem delimita e planeja seu comportamento.

            É por este motivo que Nietzsche (2005) defende que todo altruísmo representa um egoísmo, uma vez que toda ação humana feita em nome do próximo, na realidade é feita em benefício próprio[19]. O homem que dá esmola ao mendigo, consciente ou inconscientemente na verdade o faz para ter o status de bom na sociedade. A busca pela caridade e amor ao próximo na verdade esconde uma busca pela vaidade a auto-afirmação pessoal. Levando isso em consideração, até que ponto o homem moderno – em especial o aristocrata – dedica-se à educação influenciado por estes valores cristãos? Ou seja, aquele discurso de que se é professor pelo bem comum, visando o desenvolvimento social, não representa em última análise a utopia de querer aproximar-se do amor de Cristo?

            Por outro lado, a educação aristocrática seria exercida não como função de caridade e ajuda à humanidade, o aristocrata teria plena consciência e convicção de seu compromisso com a emancipação e transformação do próximo representaria sua própria vontade de se transformar e emancipar-se. Sendo a educação um processo de contínua troca de conhecimento, o educador também estaria se beneficiando do ato. Desta forma, a discussão de que os aristocratas poderiam se valer de si mesmos como educadores, representa a própria individualidade da ideia de aristocracismo.

            Neste sentido, a educação aristocrata pode ser observada de duas maneiras, quais sejam, a educações aristocrata horizontal e vertical. A horizontal é aquela onde os dois sujeitos do processo de educação são aristocratas, enquanto que na vertical apenas um polo pode ser considerado aristocrata – ou apenas um polo se aproxima da aristocracia –. Nas duas hipóteses existe o aproveitamento de ambos no processo educativo. 

            In summa, o que se pode cogitar, ao caracterizar o aristocrata, é que seus atributos não se distanciam da ideia de vontade potência, a qual pode ser entendida como um gênero, cujas espécies são: a superação e autossuperação, referindo-se respectivamente a vencer os limites externos e internos; juntamente com a criticidade, acabam que envolvendo todos os demais elementos. É possivelmente a aglutinação de tudo isto que faz de um homem um aristocrata. Contudo, de que forma pode-se propagar ou facilitar a formação desta casta?

4. (im)possibilidade educação aristocrática

            Como já mencionado alhures, para Nietzsche (apud AZEREDO, 2008), a forma mais segura de propagar o pensamento aristocrático seria os próprios aristocratas servindo-se de professores uns dos outros. Neste caso, fala-se em educação aristocrática horizontal, onde ambos os sujeitos da educação representam a aristocracia. Isto provavelmente asseguraria a proliferação deste tipo de pensamento, contudo, como pensar em uma maior propagação deste tipo de educação? Ou seja, será possível pensar na educação aristocrática como uma diretriz pedagógica? Neste caso, a educação aristocrática poderia ser uma solução à qualidade de ensino ou à democratização do ensino?

            Em consonância com Mendonça (2009), a problemática da educação está no sistema de ensino vigente que foi construído para as massas, com base na ideia democrática de educação. Ou seja, o paradigma atual de educação é pautado na igualdade, existe a ideia de que todos são iguais, todos tem direitos iguais à educação e, por este motivo, todos devem passar pelos mesmos processos pedagógicos. Neste diapasão, observa-se que a tentativa do governo em expandir a educação e tornar o acesso do ensino para todos, acaba por criar uma homogeneização de pensamento. Em suma, esta ideia de nivelamento da educação representa a própria ideia de rebanho. A consequência disto é o nivelamento do pensamento humano, consequentemente, a propagação do rebanho.

            Ora, se por um lado democratizar a educação significa tornar a população homogênea e medíocre. Por outro lado, concentrar a educação em uma pequena parcela da população, assim como sucedeu na humanidade por muitos séculos, criaria uma elite altamente capacidade intelectualmente e uma grande massa absolutamente ignorante. Por hora, nota-se que a democratização da educação não parece ser uma solução. Assim sendo, se a solução para educação não reside na democratização da educação, como pensar na emancipação das pessoas através desta  educação de excelência?

            Deve-se entender claramente que a educação aristocrática não se refere à proposição de um modelo educacional pedagógico, dado que se assim o fosse não se alcançaria o seu alvo: a grande individualidade (MENDONÇA, 2009). Se a aristocracia é oposta ao nivelamento e a mediocridade, ela é oposta também à democracia do ensino. A aristocracia é justamente o oposto do nivelamente da isonomia, ou seja, oposto a democratização do ensino. De sorte que a democratização do ensino não deve ser entendido como uma forma de aristocratização[20].

            Nietzsche menciona que a verdade é dura e não se deve ter ilusões sobre a possibilidade de uma sociedade humana aristocrática (2000). Neste sentido, a ideia de educação aristocrática não pode ser entendida como um meio de transformação da sociedade, ou uma forma de transformar a massa de rebanho em aristocrata. Pode-se dizer que a democratização do ensino é oposto à educação aristocrática na medida em que a primeira representa a igualdade, enquanto que a segunda representa a diferença enquanto essência.

            Em suma, a educação aristocrática não representa uma diretriz pedagógica, ou seja, ela não é um método a ser seguido, diferentemente da democratização da educação. A educação aristocrática pode ser entendida como um plexo de atividades a serem realizadas e desenvolvidas de forma a propulsionar ou solidificar a formação aristocrática, cujo objetivo máximo é a autossuperação.  

CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Em epítome, pode-se concluir que o desenvolvimento da aristocracia depende exclusivamente de cada indivíduo, na medida de suas possibilidades extrínsecas e intrínsecas. Assim sendo, é possível entender que a configuração genética de cada indivíduo, juntamente com sua história de vida e seu contexto social, influencia sua forma de entender a si mesmo e o mundo. É plausível que a possibilidade de receber uma educação de excelência poderia facilitar ou aprimorar o desenvolvimento aristocrático, entrementes, isto não deve ser considerado uma regra.

            Nesse diapasão, a análise minuciosa da filosofia de Nietzsche revela que a formação de um aristocrata independe de uma educação de excelência. Em outras palavras, para se tornar um homem de excelência, não há necessidade deste ter recebido uma educação de excelência. Mesmo porque, se isto fosse verdade, o mundo jamais havia de ter seu primeiro aristocrata, uma vez que não haveria nenhum pré-existente que lhe pudesse prestar esta educação especial.

            Aponta-se a ideia de que o surgimento da excelência inicia-se com a percepção do próprio estado de inferioridade intelectual. Este sentimento geraria uma vontade de querer uma mudança, neste sentido, mudar significa ser melhor e autossuperar-se. Esta evolução de desenvolvimento intelectual é um processo árduo e demorado. Destarte, como dito algures, contar com um educador aristocrata pode ser de alguma utilidade. Não obstante, de nada adiantaria sem o esforço e a perseverança individual.

            In summa, a atividade de excelência necessariamente pressupõe uma autopsia. Uma vez que é indispensável que o indivíduo conheça a si mesmo, tendo o máximo de conhecimento de suas limitações subjetivas e possibilidade exteriores. Somente após conhecer sua idiossincrasia e ter ciência de seu papel na sociedade, enquanto ser pensante, é que se pode cogitar a possibilidade de um dia – quiçá! – vir a ser.

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Sobre o autor
Felipe Adaid

Advogado e consultor jurídico em Direito Penal e Direito Penal Empresarial no Said & Said Advogados Associados. Foi Diretor de Gerenciamento Habitacional da Secretaria de Desenvolvimento Social e Habitação e Primeiro Secretário do Conselho de Habitação do Município da Valinhos, SP. Mestre em Educação e Políticas Públicas pela PUC Campinas. Ingressou em primeiro lugar no mestrado e foi contemplado com a bolsa CAPES durante os dois anos de curso. Cursou disciplinas de pós-graduação na Unicamp. É especializando em Direito Penal, Processo Penal e Criminologia, pela PUC Campinas. Na graduação, tem 5 semestres de créditos no cursos de Psicologia, também pela PUC Campinas. Durante a graduação de Direito também foi bolsista de iniciação científica, CNPq, e foi monitor em diversas disciplinas, tanto no curso de Direito como no curso de Psicologia. Foi membro do grupo de pesquisa Direito à Educação do Programa de Pós-Graduação da PUC Campinas. É corretor de revistas científicas pedagógicas e jurídicas. É autor de 11 livros, sendo 3 ainda em fase de pré-lançamento, e organizador de outros 10 livros, além da autoria de 44 capítulos de livros publicados no Brasil, no Chile e em Portugal. É autor de mais de 100 publicações científicas, entre artigos científicos, resenhas e anais, nacionais e internacionais. Ademais, também escreve periodicamente ensaios e artigos para jornais e blogs. No âmbito acadêmico, suas principais bases teóricas são: Foucault, Lacan, Freud, Dewey e Nietzsche. Por fim, tem interesse sobre os seguintes temas: Direito, Direito Penal, Criminologia, Psicologia, Psicologia Forense, Psicanálise, Sexualidade, Educação e Filosofia.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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