4. Sucessão e substituição do Presidente da República
Conforme o art. 79, caput, da Constituição da República, são atribuições do Vice-Presidente substituir e suceder o Presidente da República. A substituição sempre ocorre de forma interina, temporal e precária, em caso de impedimento temporário do Presidente, ocasião na qual ao Vice-Presidente são transferidas algumas ou a totalidade das atribuições constitucionais (funções) do Presidente da República, para exercício direto e imediato, até que cesse o impedimento do Presidente, mantendo-se sempre o Vice-Presidente em seu cargo.
Já na sucessão, ante a vacância do cargo de Presidente da República, ou seja, ante a inexistência de titular do cargo de Presidente, o Vice-Presidente deixa seu cargo e toma posse no cargo de Presidente da República, definitivamente, pelo tempo restante do mandado para o qual o Presidente sucedido foi eleito. Nesse sentido é a doutrina clássica sobre o tema:
“Distingamos o impedimento da vaga. O impedimento é uma ausência rápida. transitória, ocasional, sem que o titular haja perdido o cargo, deixando-o vago. O impedimento pode existir numa doença (desde que não determine a perda da capacidade, originando vaga), no desaparecimento (extravio, numa viagem? rapto). prisão (numa revolta em curso), viagem ao estrangeiro (hipótese mais provável, depois da doença), etc. Em nenhum destes casos, o Presidente deixa de ser Presidente. O cargo continua com ocupante fixo. (...) Por conseguinte, há distinção evidente entre impedimento e vaga gerando consequências diversas, tanto que, no primeiro caso, há substituição: simplesmente, e, no segundo, sucessão. Nos nossos mais eruditos autores especializados em Direito Constitucional, encontramos a mesma separação dos dois conceitos.”[7]
Dessarte, não há a menor dúvida de que substituição presidencial difere-se da sucessão do Presidente da República, sendo que apenas nesta hipótese há a efetiva transferência do cargo de Presidente ao seu Vice, que então deixa de ser Vice-Presidente. Segue o autor a esclarecer o tema de forma ímpar, vejamos:
“Por conseguinte, segundo o pensamento supra, no impedimento, existe titular, mas não em exercício, que compete a outro? na falta, não chegou a haver titular, não tendo o cargo sido ocupado? e na vaga, o cargo, que estava preenchido, ficou vazio. João Barbalho, o mais perfeito intérprete da Constituição de 1891, ensina do mesmo modo: "A incurialidade e os perigos daí resultantes impõem a necessidade de um substituto, para os casos de cessação temporária do exercício do Presidente e, para o de cessação definitiva, a de um sucessor no cargo" (op. cit., p. 18).”[8]
Ao ser empossado no cargo, o Vice-Presidente já presta o compromisso de obediência à lei e à Constituição, compromisso este cuja renovação se afigura plenamente dispensável em substituições temporárias ou mesmo na sucessão ao Presidente da República[9].
Um Vice-Presidente da República, quando em substituição interina e precária ao Presidente, continua investido do cargo para o qual foi eleito, e apesar de exercer as funções de Presidente interinamente, não possui o cargo de Presidente (cargo e função não se confundem), o que o afasta a incidência do tipo de responsabilidade política aqui tratado, para os atos por ele praticados, mantidas todas as outras formas de responsabilidade previstas na legislação vigente.
Uma vez que não existem dois cargos de Presidente da República no Brasil (os cargos públicos são criados em número específico, pela lei), em caso de eventual impedimento temporário do Presidente (como, por exemplo, ocorre quando este realiza viagens oficiais internacionais) é impróprio pensar que o Vice seria investido efetivamente em cargo já devidamente ocupado (o cargo de Presidente), o que faria com que seu real titular fosse imediatamente destituído, e o impossibilitaria de exercer suas atribuições constitucionais referentes, v. g., a representar o país no exterior. Vejamos:
“Dessa forma, a validade dos atos praticados pelo Presidente da República no exterior reveste- se de grande importância, pois o Presidente da República que viaja ao exterior, tendo “transmitido o cargo" ao Vice-Presidente, sem estar impedido, se apresenta ao Chefe de Estado que o recebe investido de qual autoridade? Uma vez o Presidente ter “transmitido o cargo", todos os atos por ele praticados no exterior carecem de legalidade, por não estar mais o mesmo investido no cargo, não possuindo, consequentemente, legítima capacidade para agir em nome do Estado. No caso em questão, os atos praticados pelo representante legal sem legitimação não serão atribuídos ao próprio Estado, como o seriam no caso de não proceder-se à transmissão.”[10]
Mais estranho ainda seria pensar que, nos casos como o aqui narrado, existiriam dois Presidentes da República, o que é juridicamente impossível, por previsão constitucional expressa da existência de somente um cargo dessa natureza (que concentra as funções de governo e de estado em uma só pessoa), e por ausência de previsão constitucional da excepcionalidade à citada regra. O que ocorre, em casos como esse, é a clara possibilidade de que o Vice-Presidente exerça as funções de Presidente da República de forma temporária, precária e interina, não sua investidura real no referido cargo, pelas razões descritas acima.
Nesse sentido, caso ocorra a indevida transmissão não definitiva do cargo de Presidente da República ao seu Vice, em caso de impedimento temporário daquele (transmissão efetiva do cargo, não somente do exercício de uma ou mais funções, como deveria ocorrer), deve- se considerar tal ato como mera transferência do exercício temporário de suas funções, por claras razões de ordem fática e jurídica. Tal se dá, quer seja porque impossível a investidura do Vice-Presidente em cargo de Presidente da República já preenchido (pensar o contrário implicaria em destituição do seu titular ou multiplicação do respectivo cargo) – razão de ordem fática, quer seja porque inexiste previsão normativa de dar-se posse no cargo de Presidente da República ao seu Vice-Presidente, enquanto este cargo encontra-se provido, sendo tal provimento pelo Vice-Presidente lícito apenas os casos de sucessão por vacância do cargo (art. 79, caput, segunda parte, CRFB/88) – razão de ordem jurídica.
Proceder de outro modo violaria o princípio da legalidade, insculpido no caput do art. 37, da CRFB/88, que informa que todos os atos da Administração Pública devem estar estritamente motivados pela aplicação expressa da lei, não podendo esta inovar no exercício de sua atividade, realizando atos não autorizados pela lei.
5. Conclusão
Uma vez que somente é possível sujeitar-se alguém à aplicação de uma pena por expressa previsão legal (princípio da legalidade), a punição pela prática de conduta tipificada como crime de responsabilidade somente pode ser aplicada às pessoas investidas nos cargos a que a legislação aplicável faz referência (ou a seus substitutos, mediante disposição legal expressa), o que, pela análise aqui trazida, exclui a possibilidade de que a pessoa investida no cargo de Vice-Presidente da República ocupe o polo passivo de procedimento de impeachment, ou sofra qualquer sanção deste resultante.
Ainda que em exercício interino, transitório e precário, das funções de Presidente da República, substituindo-o temporariamente, o Vice-Presidente conserva-se em seu cargo. Ele somente será investido no cargo de Presidente da República no caso de afastamento definitivo deste (sucessão), o que gerará a vacância do cargo de Presidente e a possibilidade de seu preenchimento por provimento.
Pode parecer estranho que o ordenamento jurídico brasileiro não preveja a possibilidade de responsabilização política pela prática de crime de responsabilidade ao Vice-Presidente da República, mas isso se deu por uma razão muito clara: uma vez que o Vice- Presidente não possui atribuições constitucionais decisórias, atribuições estas que somente pode exercer quando em substituição temporária do exercício das funções do titular da presidência, a reversibilidade da quase totalidade dos atos que pratica nessa condição explica a opção legislativa em comento.
Assim, uma vez cessado o impedimento temporário do Presidente da República, este retomará suas funções regulares, oportunidade na qual poderá avaliar a conveniência, oportunidade e a legalidade de quase todos os atos praticados pelo Vice em seu lugar, e a tempo e modo, realizar a revogação ou anulação dos atos de administração por ele praticados. O Vice-Presidente não é e não será o titular o Poder Executivo até que haja vacância do cargo de Presidente e sua devida sucessão, razão pela qual os atos de administração que pratica em substituição temporária ao Presidente, em regra, estão sujeitos à efetiva reversão por parte deste, quando volte a exercer plenamente as funções de seu cargo.
A reversibilidade da quase totalidade dos tipos de atos praticados pelo Vice-Presidente da República nos casos de substituição temporária do Presidente, aliados à necessidade de se resguardar e proteger eventual sucessor definitivo do cargo mais alto do Poder Executivo do país (pessoa também eleita democraticamente pelo voto popular) indicam ter o legislador considerado ser inoportuno instituir esse tipo de responsabilidade à autoridade em questão. Assim, a configuração atual do ordenamento jurídico nacional faz com que seja impossível a prática de crime de responsabilidade pelo Vice-Presidente da República, e consequentemente, não seja possível aplicar-lhe as penas de perda do cargo e inelegibilidade dele consequentes, razão pela qual não pode tal autoridade sequer figurar no polo passivo de eventual demanda de impeachment, por manifesta falta de utilidade e adequação de tal demanda, e pela clara impossibilidade jurídica de um provimento final que acolha o pedido (condição ao regular exercício do direito de ação, no âmbito penal).
Ressalte-se que o Vice-Presidente da República, em qualquer dos casos, substituindo o Presidente ou exercendo suas próprias funções, está sujeito a todos os outros tipos de responsabilidade, como a administrativa (v. g., por violações ao Código de Conduta Ética dos Agentes Públicos em exercício na Presidência e Vice-Presidência da República, conforme Decreto n. 4.081/02, e por atos de improbidade administrativa, nos moldes da Lei n. 8.429/92), a responsabilidade penal (pela prática, por exemplo, dos crimes constantes do Título XI, Capítulo I, do Decreto-Lei n. 2.848/40, denominado "Dos crimes praticados por funcionário público contra a Administração em geral"), e a responsabilidade de natureza cível (pelos danos causados a terceiros, por agentes públicos atuando em nome da Administração, em regresso, conforme art. 37, §6º, da CRFB/88), excluindo-lhe tão somente a possibilidade de praticar e responder pela prática de crime de responsabilidade (como ocorre com vários outros agentes públicos), pelas razões expostas supra e, em especial, pela ausência intencional de previsão legal para tal.
Referências
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Administrativo. 11. ed. rev. atual. e ampl., Salvador: Jus PODIVM, 2012.
LIMA, Alcides de Mendonça. “O Vice-Presidente da República na Constituição Federal de 1946”, in Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, Vol. 16 (1949), pp. 360-373.
LOPES, Luciano Santos. Os elementos normativos do tipo penal e o princípio constitucional da legalidade. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2006.
SERRETTI. André Pedrolli. “A Teoria do Garantismo Penal e a Constituição da República: Um Estudo sobre a Legitimidade da Tutela Penal Estatal”, Revista Jurídica da Presidência da República, Brasília, Vol. 12, n. 97, Jun/Set 2010, pp. 228 a 257.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 34ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. v. 1.
SOARES, Pedro Alberto Vono. “A transmissão do cargo de Presidente da República”, in Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n.2403, 29 jan. 2010. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/14262>. Acesso em: 2 abr. 2016.
Notas
[1] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 34ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. v. 1, p. 547.
[2] SERRETTI. André Pedrolli. “A Teoria do Garantismo Penal e a Constituição da República: Um Estudo sobre a Legitimidade da Tutela Penal Estatal”, in Revista Jurídica da Presidência da República, Brasília, Vol. 12, n. 97, Jun/Set 2010, pp. 228 a 257, p. 252.
[3] “APLICAÇÃO DE ANALOGIA IN MALAM PARTEM PARA COMPLEMENTAR A NORMA. INADMISSIBILIDADE. OBEDIÊNCIA AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ESTRITA LEGALIDADE PENAL. PRECEDENTES. (...) Ademais, na esfera penal não se admite a aplicação da analogia para suprir lacunas, de modo a se criar penalidade não mencionada na lei (analogia in malam partem), sob pena de violação ao princípio constitucional da estrita legalidade. Precedentes. Ordem concedida.” (STF - HC 97261, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 12/04/2011, DJe-081 DIVULG
02-05-2011 PUBLIC 03-05-2011 EMENT VOL-02513-01 PP-00029 RTJ VOL-00219- PP-00423 RT v. 100, n. 909, 2011, p. 409-415)
[4] LOPES, Luciano Santos. Os elementos normativos do tipo penal e o princípio constitucional da legalidade. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2006, p. 84.
[5] Deve ser ressaltado que a menção constitucional à competência da Câmara dos Deputados para autorizar o processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da República (art. 51, I, CR/88) não faz referência expressa a processos por crime de responsabilidade, razão pela qual, em relação ao Vice-Presidente, deve ser aplicado tão somente aos casos de instauração de processos por crimes comuns, uma vez que inexiste a previsão legal de crimes de responsabilidade que titulares deste cargo possam praticar, mas subsiste esta relativamente às infrações penais comuns. Vejamos: "Art.51. Compete privativamente à Câmara dos Deputados: I - autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado?"
[6] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Administrativo. 11. ed. rev. atual. e ampl., Salvador: Jus PODIVM, 2012, pp. 275 ss.
[7] LIMA, Alcides de Mendonça. “O Vice-Presidente da República na Constituição Federal de 1946”, in Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, Vol. 16 (1949), pp. 360-373, p. 368.
[8] LIMA, Alcides de Mendonça. “O Vice-Presidente da República na Constituição Federal de 1946”, in Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, Vol. 16 (1949), pp. 360-373, p. 369.
[9] “Ao ser empossado no cargo o Vice-Presidente da República presta o compromisso constitucional, se bem que nem a Constituição de 1891, nem a de 1946 se refiram ao juramento quanto àquele, limitando-se, apenas, a fazer menção ao do Presidente (art. 44, da Consto de 91, e art. 83, parág. único, da Const, de 46). Entretanto, ambos têm a obrigação de prestar o juramento (Cfr. Barbalho, op. cit., p. 231? Maximiliano, op. cit., p. 212, voI. II). E este compromisso vale sempre, não precisando ser renovado, quer nas substituições temporárias, quer na sucessão.” LIMA, Alcides de Mendonça. “O Vice-Presidente da República na Constituição Federal de 1946”, in Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, Vol. 16 (1949), pp. 360-373, p. 371.
[10] SOARES, Pedro Alberto Vono. “A transmissão do cargo de Presidente da República”. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2403, 29 jan. 2010. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/14262>. Acesso em: 2 abr. 2016. Aspas nossas.