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A fungibilidade das medidas de urgência à luz da nova reforma processual

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Agenda 30/06/2004 às 00:00

2- A NOVA TENDÊNCIA DO SISTEMA DE MEDIDAS DE URGÊNCIA:

2.1- O enfraquecimento da segurança jurídica em prol da efetividade processual:

A ocorrência constante de sérias injustiças no curso de inúmeras demandas, face à lentidão do procedimento ordinário, o que por vezes tornava os pleitos judiciais inúteis, fora a principal motivação na busca por meios que efetivassem concretamente o processo cognitivo. Pode-se afirmar que houve uma evolução na técnica de sumarização, ao passo que, inicialmente, utilizava-se a tutela cautelar como forma de obter uma prestação jurisdicional efetiva, e, apesar dos equívocos em decisões que se tornavam irreversíveis, foi, por diversas vezes, responsável por decisões mais justas e aproveitáveis. Além disso, não se estaria extremando ao afirmar que a sistematização da tutela sumária satisfativa se dera em decorrência da experiência obtida com a tutela cautelar.

Entretanto, hoje seria um retrocesso não admitir as diferenças existentes entre as medidas antecipatórias e cautelares, de modo que, em termos de efetividade e, inclusive, celeridade e economia processual, a tutela antecipatória mostra-se indispensável quando o que se busca é a satisfação do direito material, ou seja, do bem da vida pretendido com a ação de conhecimento, enquanto que, a cautelar, mostrar-se-á útil apenas nos casos em que se necessita proteger ou resguardar determinado direito, destinando-se exclusivamente a salvaguardar o resultado eficaz do processo principal.

Dito isto, urge inferir a respeito da discussão surgida na doutrina no que tange à perda do caráter instrumental com a transformação da tutela cautelar em antecipatória, pois nesta existe uma identificação do provimento prestado provisoriamente com aquele que será concedido ao final, ou seja, a antecipação de tutela não servirá de "instrumento do instrumento em que pode ser buscado o resultado útil" [28], uma vez que ela será o próprio resultado almejado com o ajuizamento da demanda. Na verdade, a instrumentalidade é característica própria do provimento cautelar, pois se destina à segurança do processo principal, enquanto este serve à tutela do direito material.

Por outro lado, cumpre salientar a importância de uma prestação jurisdicional adequada às necessidades das partes, seja ela satisfativa ou cautelar, pois ao requerente desimportará a natureza da tutela pretendida, sendo relevante apenas que lhe seja dada uma resposta à situação conflitiva em que está envolvido, eis que esta é a função do Estado, surgida no momento em que proibiu a autotutela. A partir desta reflexão é que se passou a questionar a capacidade do procedimento ordinário em atender concretamente às várias situações, as quais exigem uma forma particular de tutela, não sendo, desta forma, mais permitido que o Estado se negue a prestar a tutela antecipatória em prol da segurança jurídica, bem como do formalismo inerente ao processo cognitivo [29]. Favorável a este posicionamento, Ovídio Baptista da Silva infere que:

Se supríssemos de um determinado ordenamento jurídico a tutela da aparência, impondo ao julgador o dever de julgar somente depois de ouvir ambas as partes, permitindo-lhes a produção de todas as provas que cada uma delas fosse capaz de trazer ao processo, certamente correríamos o risco de obter, no final da demanda, uma sentença primorosa em seu aspecto formal e assentada num juízo de veracidade do mais elevado grau, que, no entanto, poderia ser inútil do ponto de vista da efetividade do direito reclamado pelo autor vitorioso. [30]

Com isto, a nova tendência é no sentido de que o princípio constitucional do devido processo legal deva estar intimamente relacionado ao direito à adequada tutela jurisdicional, de maneira tal, que o legislador deva prever meios que permitam estruturar o sistema processual de modo a proporcionar a efetividade dos direitos. Em outras palavras, a tutela a ser prestada ao autor não mais arcará com os fatores negativos inerentes ao processo ordinário, especialmente no que tange à espera por uma cognição exauriente, ao passo que, os procedimentos é que deverão se adequar às necessidades do demandante, em pura atenção ao princípio constitucional da efetividade. Denota-se disto a importância da tutela antecipatória, eis que, ao afastar os riscos da demora e o perigo de irreversibilidade, afigura-se como importante elemento do devido processo legal.

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O modelo clássico do direito, o qual se caracterizava pelo apego extremado às fórmulas imutáveis e previamente estabelecidas, não mais subsiste no âmbito em que se encontra o sistema de medidas de urgência, o qual interage as funções dos processos de conhecimento, execução e cautelar, em prol da efetiva satisfação do direito pretendido, adotando-se o que se denominou de sincretismo das ações [31]. Atualmente os atos jurisdicionais visam a prevenção da ocorrência de dano à direito ameaçado, enquanto que, no sistema clássico, o processo objetivava corrigir ilícito já causado, por meio de ressarcimento, o que, na maioria dos casos, mostrava-se insatisfatório, pois não correspondia ao verdadeiro status quo ante.

Há que se considerar que, o cabimento da tutela preventiva contra a ameaça de lesão fora, primordialmente, inserida no ordenamento atual pelo constituinte de 1988, dentre os direitos e garantias fundamentais [32]. A par de tal preceito, pode-se afirmar que o modelo positivista normativista, baseado na influência de Kelsen, tornou-se ultrapassado, enquanto que o processo pós-moderno tende a ser mais flexível, enfatizando princípios ao invés de normas, de forma que equívocos procedimentais não mais serão considerados entraves a providências legítimas e eficazes, cuja finalidade precípua é a pacificação social. Neste contexto, a reforma processual, especialmente no ponto culminante deste trabalho, veio a calhar, pois a fungibilidade entre medidas de urgência reflete amplamente a intenção do legislador de coadunar-se a esta nova ordem constitucional de desapego às formas em prol da efetividade.

A expressão "ordem jurídica justa" [33] tem sido largamente utilizada atualmente, representando exatamente esta nova acepção processual que tende a valorizar as decisões capazes de pacificar conflitos com justiça, as quais invocam o princípio constitucional do devido processo legal, sem ater-se na certeza e segurança do provimento prestado, como ocorria antigamente, onde só se obtinha efeitos satisfativos com o trânsito em julgado das decisões, ou melhor, com a produção de coisa julgada. Observa-se, com isto, que, no pensamento pós-moderno, a definição de o que é Justiça está inserida na concepção do bem comum, voltada ao coletivo e ao social, uma vez que o julgador, no momento de suas decisões, levará em conta, primordialmente, os efeitos de seu ato, se serão eficazes, deixando para segundo plano a preocupação de seguir à risca o que determina a lei.

Não restam dúvidas de que, neste contexto, os poderes conferidos ao juiz acabam por ser largamente ampliados, entretanto, não há que se olvidar de que o mesmo não poderá agir em discordância com valores inerentes à sociedade, os quais acabam por ser representados pelas normas vigentes. Portanto, cabe também ao legislador atualizar-se quanto às necessidades sociais, a fim de impedir que decisões, muitas vezes justas e eficazes, deixem de ser tomadas por serem consideradas arbitrárias e em desconformidade com a norma legal. A par disso, inferiu Eduardo Mello de Mesquita que "nessa contingência em que se viu o legislador, outro não poderia ser o caminho a seguir, senão uma maior atribuição de responsabilidade ao julgador para que pudessem, juntos, realizar a ordem jurídica justa" [34].

Pode-se dizer com precisão que a sistematização da antecipação de tutela, na reforma processual de 1994, representara essa busca por uma ordem jurídica justa, eis que visou a eliminação do excedente lapso temporal que se esperava para alcançar uma solução, sendo que, por outro lado, com a nova reforma de 2002, com o advento da Lei 10.444, o avanço fora maior, na medida em que o legislador pátrio percebeu a necessidade de eliminar alguns entraves ainda existentes no âmbito de atuação das tutelas de urgência, objetivando apurar ainda mais o decurso processual e, conseqüentemente, atingir uma maior pacificação social.

Feitas estas considerações, cumpre asseverar que toda a discussão a respeito do que seria um provimento justo, ou, mais precisamente quanto ao tema do presente estudo, da pertinência da antecipação de tutela, culmina na questão do binômio segurança-efetividade, na medida em que se questiona qual destes direitos fundamentais deveria prevalecer. A ordem atual insurge-se pela ponderação, que consiste no conteúdo do princípio da proporcionalidade, sendo este, na verdade, o melhor instrumento de avaliação do Julgador ao sentir-se divido por qual direito fundamental a ser adotado. Pondera-se que, a idéia de efetividade, sob a perspectiva chiovendiana, em que o instrumento técnico se destina a fazer atuar a vontade da lei para resolver os conflitos de interesses ou garantir o bem da vida, não se coaduna com as nossas modernas necessidades, mostra-se insuficiente.

À toda evidência, o conflito entre segurança e efetividade jurídica tem gerado maior polêmica e preocupação nos dias atuais em decorrência do avanço tecnológico que envolve a sociedade, de maneira tal que é praticamente impossível que o legislador preveja todas as situações ensejadoras de conflitos. Sendo assim, parece ponderável a criação de mecanismos mais ágeis e eficazes, os quais abarquem uma gama de soluções aos possíveis litígios, a fim de que o processo não se torne obsoleto e acompanhe esta evolução social com magnitude. Diante disso, a fórmula para viabilizar a convivência entre segurança jurídica e efetividade da jurisdição é a outorga de medidas de caráter provisório, que sejam aptas a superar as situações de risco de perecimento de tais direitos.

Entretanto, há que se ter cautela quanto aos limites para a utilização dos referidos mecanismos, pois os riscos de banalizar-se a utilização equivocada da tutela antecipada são grandes, considerando a necessidade de efetivar-se o processo, o que pode vir a desvirtuar o instituto. A par disso, cumpre ao juiz, quando possível, aguardar a formação do contraditório para decidir-se após o oferecimento de resposta, buscando sempre a medida ideal da ponderação. Obviamente que, tratando-se de emergência, na qual não se torna possível a espera pela resposta do réu, sob pena de inutilização do provimento, não se estará afrontando ao princípio do contraditório ao conceder a tutela, até mesmo porque, estar-se-á diante de uma decisão tomada com fundamento nos requisitos exigidos pela lei.

2.2- A sobrevivência do processo cautelar:

A sistematização da tutela antecipada, especialmente agora, com as alterações advindas por meio da Lei 10.444/02, serviu para potencializar os questionamentos a respeito da utilidade das medidas cautelares, ao passo que, para aqueles mais extremados, o processo cautelar esvaziou-se, perdeu sua razão de existir. O principal argumento para tal posicionamento diz respeito à efetividade do provimento prestado, de forma que a antecipação de tutela se prestaria melhor para tanto, não havendo porquê ajuizar uma demanda autônoma, cuja finalidade pode ser perfeitamente alcançada nos próprios autos da demanda principal.

Por outro lado, há entendimento no sentido de que há um excesso na concessão de liminares satisfativas, o que estaria ocasionando uma desmoralização da tutela cautelar, eis que, em prol da superveniência de resultados, tem-se, por diversas vezes, concedido medidas sumárias satisfativas sem, ao menos, observar-se os requisitos mínimos exigidos. Isto decorreria da necessidade de efetivar-se o processo, buscando-se sempre o acesso à ordem jurídica justa e a pacificação social, como já fora exposto anteriormente.

Para os defensores da tutela cautelar, a sobrevivência da mesma se faz indispensável em virtude de que, na antecipação de tutela há congruência entre o seu objeto e o pedido principal, devendo, desta forma, ser demonstrada a verossimilhança inequivocamente, enquanto que, no provimento cautelar não se exige tanto. Ou seja, não haveria razões para se descaracterizar o instituto, uma vez que, para as hipóteses em que se busca apenas a segurança de um direito, o qual não coincida com a pretensão final, a medida cautelar autônoma e instrumental servirá perfeitamente ao resultado esperado, tornando eficaz o pleito principal.

Inobstante as discussões acerca do tema, não há que se negar que o processo cautelar começou a perder espaço com a reforma de 1994, que introduziu a antecipação de tutela no ordenamento jurídico brasileiro, principalmente quanto às chamadas ações cautelares inominadas, previstas no artigo 798 do Código de Processo, as quais serviam de instrumento para obter qualquer tutela de urgência não prevista expressamente entre as cautelares típicas. A imensa redução na utilização de tais medidas se deu porque, na sua maioria, possuíam natureza antecipatória, ou seja, passaram a sujeitar-se não mais ao regime de ação autônoma, mas sim ao previsto no artigo 273, podendo, desta forma, ser obtidas no próprio processo de conhecimento.

Além disso, urge inferir que a previsão da fungibilidade das tutelas de urgência no § 7º do artigo 273 tornou mais consistente a tese favorável a perda de utilidade do processo cautelar. Ora, se é perfeitamente possível requerer provimento cuja natureza é cautelar sob a nomenclatura de tutela antecipada nos próprios autos da demanda principal, que haverá de ser deferido pelo julgador ao constatar a existência dos requisitos, tendo em vista o grau de exigência dos mesmos, então porquê ingressar com processo cautelar autônomo, o qual será, inclusive, dispendioso para a parte demandante? Denota-se, com isto, que a diferenciação que poderá vir a perdurar no âmbito das medidas ditas de urgência é aquela que diz respeito à natureza da tutela prestada, sendo que, todavia, não se encontra mais coerência em diversificar-se os procedimentos [35].

Corroborando este posicionamento, Fredie Didier Júnior entende que restarão ao processo cautelar autônomo duas únicas utilidades, quais sejam:

a) como ação cautelar incidental (art. 800 do CPC), tendo em vista a necessária estabilização da demanda acautelada (arts. 264 e 294 do CPC), que já fora ajuizada, e também como forma de não tumultuar o processo com o novo requerimento; b) nas hipóteses em que a ação cautelar é daquelas que dispensam o ajuizamento da ação principal, exatamente porque não se trata de medida cautelar (exibição – arts. 844 e 845 do CPC; caução – arts. 286 a 838 do CPC), ou porque não se trata de medida cautelar constritiva (produção antecipada de provas, arts. 846 a 851 do CPC) [36].

O mesmo autor sugere, ainda, a criação de um dispositivo normativo que expressamente autorize a formulação ulterior de pedido cautelar, nos mesmos autos da demanda de conhecimento, ao menos até o término da fase ordenatória, sem necessidade de instauração de relação jurídica processual nova [37], a fim de que sejam dirimidas as dúvidas ainda existentes quanto à possibilidade de requerer-se providência cautelar em momento posterior ao ajuizamento da ação.

Na verdade, grande parte da doutrina atual insurge-se pela adoção de uma espécie processual mais ampla e adequada que o processo cautelar, a qual integrará as chamadas tutelas de urgência, reunindo, inclusive, os mesmos requisitos, cujo caráter será provisional e não resultará em coisa julgada material. Daí a sugestão no sentido da vetusta tripartição do processo transmudar-se em conhecimento, execução e urgência [38]. Neste cerne, importante transcrever os dizeres de Cândido Rangel Dinamarco:

O bom exemplo do art. 700 do Código de Processo Civil italiano e do muitíssimo que a respeito já se escreveu ainda não foi capaz de infundir no pensamento brasileiro a idéia de que, sendo mais forte o que há de comum entre as medidas urgentes em geral (lutar contra o tempo), devem ficar reduzidas as preocupações em separar muito precisamente as duas espécies, dando-lhes tratamentos diferentes como se fossem dois estranhos e não, como realmente são, dois irmãos quase gêmeos (ou dois gêmeos quase univitelinos) [39].

Como se observa, o entendimento atual não se concentra mais na busca incessante pela diferenciação das tutelas de urgência, a qual delimitava em planos bem distintos as características inerentes a cada instituto, de forma que se tem procurado demonstrar a importância de uma tutela jurisdicional de urgência, e não simplesmente tutela cautelar ou tutela antecipada. Ademais, vale dizer que há tempos tem-se admitido que fossem cumulados pedidos cautelar e de conhecimento no bojo procedimental das causas de cognição, em observância ao art. 292 do Código de Processo Civil, bem como flexibilizando o entendimento segundo o qual não seriam cumuláveis, no mesmo processo, pedidos de certificação e de cautela.

No entanto, apesar de todas as alterações que o sistema processual civil brasileiro vem sofrendo, sendo, inclusive, facilmente perceptível que, tanto o legislador pátrio quanto os operadores e aplicadores do direito, têm insurgido-se por um processo mais célere e dissociado daquele exagerado apego à lei expressa e vigente, pode-se inferir que o passo não fora tão grande a ponto de tornar-se uniforme o entendimento favorável à desnecessidade do processo cautelar. Isto não dependerá apenas do brilhantismo de muitos doutrinadores, que têm defendido com furor que o instituto da antecipação da tutela, ou, ao menos, a via procedimental desta, se mostra mais eficiente que qualquer medida acautelatória ajuizada em processo autônomo, uma vez que se faria necessária outra reforma, esta de natureza estrutural, que retirasse do Código de Processo todo o Livro III, ou seja, que tornasse possível a concessão de qualquer provimento cautelar no próprio processo cognitivo, tornando regra a até então exceção da cognição das ações.

Obviamente que, para que se possa alcançar a plenitude desta nova tendência atual, com a consolidação de um processo efetivo e, até que esta esperada reforma estrutural seja realizada, prima-se por decisões que dêem relevância à natureza da medida de urgência pretendida, a fim de tornar claro aos operadores que estando presentes os requisitos exigíveis para a concessão da respectiva tutela, não se faz necessário um processo autônomo que vise acautelar determinado direito, pois isto pode ser perfeitamente possível de se realizar na própria ação de conhecimento.

Sobre a autora
Andressa Bozzi Tonetto

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria/RS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TONETTO, Andressa Bozzi. A fungibilidade das medidas de urgência à luz da nova reforma processual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 358, 30 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5404. Acesso em: 5 nov. 2024.

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