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A fungibilidade das medidas de urgência à luz da nova reforma processual

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30/06/2004 às 00:00
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INTRODUÇÃO

Um dos maiores problemas, senão dizer o maior, daquele que invoca a tutela jurisdicional do Estado, a fim de garantir o bem da vida que se julgue merecedor, refere-se à demora dos ritos processuais que conduzem o processo até solução definitiva da lide posta em discussão, o que, por vezes, torna o provimento prestado inócuo diante das necessidades urgentes do demandante.

Não é recente a procura, especialmente pelos aplicadores do direito, de meios processuais que sejam capazes de proporcionar uma maior efetividade e celeridade ao processo como um todo, especialmente no contexto atual, no qual a legislação vigente se mostra impossibilitada de prever todas as situações as quais poderão ser passíveis de conflitos.

O processo civil clássico, como fora estruturado, ou seja, na tripartição cognição, cautelar e execução, não possibilitou que o sistema acompanhasse a evolução das relações sociais, de forma que a morosidade tornou-se uma de suas principais características e, notoriamente, a mais criticada não apenas por processualistas, mas, também, pela sociedade em geral, que não compreende o porquê do exorbitante lapso temporal que se tem de esperar para se obter uma decisão definitiva do Poder Judiciário.

A par desta latente necessidade do Judiciário obter maior efetividade, o que pode ser descrito como eficiência de suas decisões, os julgadores passaram a aplicar o artigo 798 do Código de Processo Civil como forma de adiantar provisoriamente determinadas decisões diante de fundado receio de que um dos litigantes, antes do julgamento do feito, sofresse lesão irreparável ou de difícil reparação em seu direito. Tais provimentos judiciais eram denominados medidas cautelares satisfativas, eis que se caracterizavam por serem provisórias sendo que, no entanto, possuíam satisfatividade, o que não caracterizava a tutela cautelar, de maneira que antecipavam os efeitos da pretensão principal deduzida na inicial.

Diante disso, a reforma processual de 1994, com a sanção da Lei nº 8.952/94, foi extremamente relevante, pois finalmente introduziu no sistema processual civil brasileiro a antecipação de tutela, através de novo texto ao artigo 273, sendo que o instituto distinguiu-se em vários pontos da tutela acautelatória, especialmente no que pertine a satisfatividade inerente àquela e não nesta, possibilitando, ainda, que muitos equívocos deixassem de ser cometidos, pois se restringiu sua concessão à reversibilidade do provimento prestado, o que, não se fazia sempre possível nas medidas cautelares satisfativas e, por vezes, ocasionava danos irreversíveis aos litigantes.

Por outro lado, o avanço nas relações e, conseqüentemente, no surgimento de novos conflitos demonstrou que o ordenamento, da maneira que se encontrava estruturado, não possibilitou que o processo alcançasse plenamente a efetividade tão esperada, não obstante os avanços a partir de 1994 tenham sido consideravelmente grandes, até mesmo porque se passou a admitir o sincretismo das ações, eis que a antecipação de tutela possibilita que provimentos executórios sejam pleiteados e concedidos no próprio processo cognitivo.

O passo maior foi dado com a nova reforma processual de 2002, com o advento da Lei 10.444, na qual, dentre outras importantíssimas alterações, acrescentou o parágrafo 7º ao artigo 273 do Código de Processo Civil, sendo este o objeto de discussão do presente estudo. Apesar de a prática forense já se mostrar conhecida desta nova regra, pertinente à fungibilidade das medidas de urgência, quais sejam a tutela cautelar e a antecipada, sua previsão legal é considerada fundamental para a tendência atual do processo civil de primar-se pela efetividade, pois permite que diversos entraves ainda existentes na concessão das referidas tutelas emergenciais restassem por desconsiderados, além de coadunar-se perfeitamente com princípios constitucionais essenciais ao ordenamento jurídico, como o do devido processo legal.

Percebe-se que a intenção do legislador pátrio está dissociada daquele pensamento clássico quanto à tripartição do direito, estando, por outro lado, em consonância com o entendimento dos processualistas mais atinados às necessidades atuais, dando relevância, primordialmente, à nova acepção de justiça, a qual visa a pacificar conflitos através de decisões aptas a atender as expectativas das partes, mesmo que para tanto, seja renegada parte da segurança jurídica.

Obviamente que a partir das modificações implantadas outras tantas questões começam a ser levantadas, uma vez que ao alterar-se parte de determinado sistema, todo o restante acaba por sentir os reflexos de tal modificação. Isto é possível de ser vislumbrado diante dos inúmeros questionamentos surgidos quando à perda de utilidade do processo cautelar, como fora originalmente previsto, que se presta tão somente a assegurar determinado direito, sendo ajuizado em autos apartados da demanda principal. Embora haja muita divergência, grande parte da doutrina tem ousado inferir que o processo cautelar perdeu sua razão de ser com o advento da nova lei, eis que agora, com a previsão expressa da fungibilidade, todas as medidas de natureza cautelar podem ser requeridas no bojo no processo de conhecimento como medida incidental, sendo considerado irrelevante o erro de nomenclatura.

De outra banda, é de se admitir que o acréscimo do parágrafo 7º não se dera em sua magnitude, tendo em vista que elencou apenas a possibilidade de uma fungibilidade regressiva, sem mencionar a hipótese inversa, onde se pleitearia tutela cautelar, quando, na realidade a natureza da medida era de satisfatividade. Esta questão também está suscitando discordância entre processualistas pátrios, pois sempre há aqueles que acreditam que a lei deva ser interpretada literalmente, sem admitir-se um alargamento do que restara expresso. Tal posicionamento parece contrariar a nova acepção processual, na qual a efetividade, celeridade, instrumentalidade e economia processual se mostram como a melhor forma de se obter uma ordem jurídica justa.

Ademais, na questão da fungibilidade entre tutelas de urgência, a figura do juiz se faz essencial, na medida em que, a par de tantas dúvidas ainda existentes quanto ao instituto, até mesmo em decorrência da falta de normas completas e determinantes, os poderes que lhe foram conferidos acabaram por serem amplamente alargados, sendo pertinente no presente estudo um maior aprofundamento quanto à discricionariedade inerente aos seus atos, seja pela admissão ou não da referida fungibilidade.

Destarte, o tema se mostra de extrema pertinência à reflexão dos operadores do direito, tendo em vista que o Poder Judiciário há tempos tem-se mostrado ineficiente quanto às expectativas da sociedade, salientando-se que muitas pessoas, apesar de estarem envoltas em sérias dificuldades de obter determinada pretensão extrajudicialmente, acabam por ver seu possível direito perecer, vez que se desencorajam de requerer a tutela jurisdicional do Estado, justamente por saber que esperarão tempo demais. Oportuno destacar-se a importância de meios processuais que sejam capazes de abarcar diversas situações conflitivas, diante da impossibilidade legislativa de especificar-se todas as hipóteses possíveis, além de ressaltar a necessidade de uma consciência voltada à prestação jurisdicional efetiva e célere, que exclua as formalidades exacerbadas ainda existentes no ordenamento jurídico pátrio, que servem tão somente para reiterar as tantas injustiças cometidas até então.

No presente estudo partir-se-á de uma análise clássica das chamadas tutelas de urgência, na medida em que será feita uma abordagem a respeito da evolução da tutela sumária satisfativa no direito processual civil brasileiro, bem como um paralelo desta com a medida cautelar, demonstrando-se as características inerentes a cada instituto, com a conseqüente diferenciação das mesmas.

Em seguida, será enfatizada a nova tendência do sistema de medidas de urgência, direcionando o tema à questão do conflito existente entre os direitos fundamentais da efetividade e da segurança jurídica, bem como serão destacadas as proposições referentes à sobrevivência do processo cautelar nesta nova acepção surgida no ordenamento processual.

Finalmente, procurar-se-á demonstrar como foi sistematizado o novo § 7º do artigo 273 do Código de Processo Civil, especificamente quanto ao duplo sentido da fungibilidade tutelar e a discricionariedade judicial na admissão do respectivo preceito.

Para tanto, os métodos procedimentais adotados foram o histórico, o monográfico e o comparativo, onde se buscou analisar posições doutrinárias e jurisprudenciais, ressaltando-se as divergências existentes quanto ao tema, assim como foi utilizado o método dedutivo de abordagem, eis que se partindo de considerações gerais, enunciados, princípios e análise doutrinária e jurisprudencial, buscou-se soluções aos problemas suscitados no decorrer do texto.


1- TUTELAS DE URGÊNCIA: ANÁLISE CLÁSSICA:

1.1. A evolução da tutela sumária satisfativa:

Grande parte dos processualistas vislumbrou a possibilidade de o juiz utilizar-se de um poder geral de cautela já no período de vigência do Código de Processo Civil de 1939, tendo por fundamento seu artigo 675 [1], muito embora os Tribunais raramente assim entendessem.

A controvérsia a respeito do tema fora ampliada com o Código de Processo de 1973, eis que o artigo 798 atribuiu ao juiz o poder de determinar as medidas provisórias que julgar adequadas quando houver fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação. A par disso, a doutrina dividiu-se, sendo que, enquanto de um lado, alguns se mantinham fiéis à tutela cautelar, não admitindo a antecipação de decisão com fito no artigo 798, por outro lado, havia quem invocasse a necessidade de efetivar-se o procedimento ordinário, de maneira que os Tribunais passaram a utilizar a expressão "ação cautelar satisfativa". [2] O quadro de incertezas criado pela expansão ou não do âmbito de aplicação do referido artigo, sendo por vezes admitida a antecipação provisória da satisfação do direito material, acarretou inúmeros equívocos, senão dizer abusos, com a concessão de liminares irreversíveis, que inviabilizavam o retorno à situação anterior, comprometendo, com isto, os direitos de ampla defesa e do contraditório.

Considerando a problemática da aceitação, tanto pela doutrina quanto jurisprudencialmente, da tutela sumária satisfativa ser concedida com base na ação cautelar inominada, a reforma processual, com a introdução de novo texto ao artigo 273, pela Lei nº 8.952/94, ao Código de Processo Civil, mostrou-se como a melhor solução às referidas divergências.

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A possibilidade de adotar-se a antecipação de tutela fora, primordialmente, suscitada por Ovídio Baptista da Silva, no 1º Congresso Nacional de Direito Processual Civil, ocorrido em julho de 1983, na cidade de Porto Alegre, no qual sugeriu o acréscimo de um parágrafo ao artigo 285 do CPC, sob a seguinte redação: "Parágrafo Único – Sempre que o juiz, pelo exame preliminar dos fundamentos da demanda e pelas provas constantes na inicial, convencer-se da plausibilidade do direito invocado, poderá conceder medida liminar antecipando os efeitos da sentença de mérito, se a natureza de tais eficácias não for incompatível com tal providência". Posteriormente, restaram elaborados aproximadamente dez anteprojetos de lei por uma Comissão integrada por Ministros do STJ e outros processualistas [3], culminando, em 13 de dezembro de 1994, na sanção da Lei nº 8.952 [4].

A nova redação do art. 273 consagrou-se como um acréscimo legislativo de grande relevância ao processo civil, especialmente no que concerne à prática forense, de maneira que alargou os poderes conferidos ao juiz, bem como propiciou maior equidade na distribuição do ônus do tempo. O instituto contribuiu, ainda, para o rompimento do processo cognitivo clássico e, conseqüentemente, com a inserção do sincretismo das ações, admitindo-se, com isto, a cisão entre cognição e execução. [5] A par disto, antecipar a tutela passou a representar a antecipação de providências executórias que podem decorrer da futura sentença de procedência, considerando que, na prática, a decisão com que o juiz concede a tutela antecipada terá, no máximo, o mesmo conteúdo do dispositivo da sentença que concede a definitiva.

Pode-se dizer que a consolidação da tutela antecipada como preceito de extrema aplicação se deu, primordialmente, pela necessidade latente que o Poder Judiciário vislumbrava de minimizar os prejuízos ocasionados às partes em decorrência da duração excessiva dos pleitos judiciais.

Por outro lado, a concretização no plano normativo da instrumentalidade processual sobreveio apenas com o advento da Lei n.º 10.444, de 07 de maio de 2002, tendo em vista a finalidade maior de seus preceitos, qual seja o aprimoramento do princípio da efetividade processual [6]. Inferiu Arruda Alvim que:

Esta lei é permeada pela intenção de realizar, no plano prático, a efetividade do processo. Colima proporcionar que, entre a decisão e a real produção dos seus efeitos, benéficos ao autor, a quem se outorgou proteção, decorra o menor tempo possível. Tende a que, entre a decisão e a sua eficácia, não haja indesejável intervalo. [7]

Tratando-se especificamente da inclusão do §7º ao artigo 273 do CPC, a referida Lei consagrou a fungibilidade das medidas de urgência, sistematizando técnica que já vinha sendo aplicada e que proporcionava extensa discussão no plano doutrinário.

No que pertine ao provimento jurisdicional que vem a conceder a tutela antecipada, trata-se de decisão interlocutória, a qual poderá ser atacada pelo recurso de agravo de instrumento. Embora nem sempre as medidas elencadas no artigo 273 sejam necessariamente liminares, podendo, inclusive, serem concedidas a qualquer fase do curso processual, estarão antecipando provisoriamente os efeitos de uma sentença procedente, devendo, para tanto, apresentarem um juízo declaratório de verossimilhança por meio de uma prova inequívoca.

Para Athos Gusmão Carneiro "a rigor, em si mesma, prova alguma será inequívoca, no sentido de absolutamente incontestável". Refere que, "mesmo a escritura pública, lavrada por notário conceituado e revestida de todos os requisitos formais, é passível de ser impugnada em ação anulatória". [8] A condição de existência de prova inequívoca aludida no caput do art. 273 para a concessão da tutela satisfativa não representa a total certeza [9] a respeito da afirmação feita pelo autor, consistindo sim, em um juízo de probabilidade elevado, que proporcionará ao Magistrado uma convicção interior capaz de fundamentar coerentemente a decisão tomada de forma antecipada. Cumpre salientar que, inobstante o fato de a lei ter outorgado ao Julgador poderes mais amplos, não lhe é permitido agir discricionariamente na concessão da tutela antecipada, ou seja, estando presentes os requisitos constantes no artigo 273, torna-se dever do Magistrado o deferimento da antecipação, que o fará fundamentando-o.

O convencimento da verossimilhança da alegação diz respeito à maneira como fora exposta a causa de pedir na exordial, uma vez que somente a demonstração de que o alegado seja provavelmente verdadeiro acarretará no provimento jurisdicional antecipatório. Athos Gusmão Carneiro suscita a respeito do risco inerente ao conceito de verossimilhança, considerando que "o que é verossímil para determinado Juiz, poderá não sê-lo para outro, além de que, a verossimilhança poderá se esvair quando da instrução e, ao final, ser a demanda julgada favorável ao réu". Entretanto, entende que "tal margem de risco faz-se pertinente em prol da efetividade". [10]

O provimento antecipatório é de cunho eminentemente provisório e, portanto, excepcional, o que pode ser constatado na própria disposição legal [11] ao mencionar que a tutela provisória poderá ser revogada ou modificada a qualquer tempo. Proferida a sentença de mérito, irá esta, se procedente a demanda, implicar "subsunção" dos efeitos antecipados; se improcedente a demanda, tais efeitos serão cassados e o "statu quo ante" restabelecido, com a decorrente responsabilidade objetiva do autor (porque postulara a providência antecipatória) pelos prejuízos que a efetivação de tal providência tenha causado ao demandado ao final vitorioso. Há quem entenda que, quando o juiz concede a medida antecipatória, está produzindo julgamento sobre o mérito da causa [12], contrariando parte da doutrina, para a qual somente haverá julgamento quando o mérito componha a lide, produzindo coisa julgada.

O "fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação" [13] previsto como requisito ao deferimento da tutela antecipada consiste no periculum in mora exigido para a concessão de medida cautelar, o qual não dirá respeito necessariamente ao perecimento da pretensão principal em caso de não ser antecipada a tutela [14], como, por exemplo, no caso de revisional de contrato, onde a parte autora poderá postular, invocando fundado receio de dano, a concessão de tutela antecipada para que seu nome seja expungido, até ulterior decisão, dos cadastros de inadimplentes. Quanto à prova da existência do fundado receio, não exigiu a norma legal exclusividade de prova documental, apesar de admitir-se ser esta a mais plausível, de maneira que se aplicam, analogicamente, as regras referentes à liminar no processo cautelar, considerando a identidade com o periculum in mora exigível em tal provimento. Cumpre salientar que a irreparabilidade pode atingir além dos direitos patrimoniais, os não-patrimoniais e aqueles direitos patrimoniais com função não patrimonial, como no caso do dinheiro ser necessário para aliviar um estado de necessidade causado por um ato ilícito.

Outra possibilidade de o juiz antecipar os efeitos da tutela pretendida pelo autor encontra respaldo no comportamento indesejável do réu ao demonstrar "abuso do seu direito de defesa" ou "manifesto propósito protelatório", conforme previsão do inciso II, do artigo 273. Importante esclarecer que, neste caso, a concessão da medida satisfativa terá por fundamento a maior consistência da verossimilhança do direito alegado pelo autor, ao passo que a atitude incoerente do réu servirá tão-somente para questionar a seriedade de sua contestação. Com isto, pretende-se ressaltar que a antecipação de tutela não restará deferida com o intuito de castigar o réu, mas sim demonstrar que seu comportamento fora um plus no convencimento do Magistrado quanto à provável veracidade do direito pleiteado. Críticas existem quanto à desnecessidade da expressão "abusos de direito de defesa", considerando que, a rigor, esta já estaria incluída na compreensão da expressão "propósito protelatório". De outra banda, não há que se perder de vista para a demora temporal inerente ao caráter formalista do processo, o qual não se confunde com a hipótese elencada nesta norma, ou seja, a antecipação, neste caso, se dará pela conduta equivalente a litigância de má-fé [15] por parte do réu.

Na verdade, esta hipótese de concessão da tutela antecipada visa solucionar um dos principais problemas do processo civil, senão o maior, qual seja a demora temporal na disputa do bem da vida perseguido pelo autor, especialmente quando este tem razão, eis que quanto mais longa a espera, mais benefícios obtêm o réu em permanecer com o objeto pretendido. Não restam dúvidas que por muito tempo beneficiou-se o réu, mesmo que indiretamente, com a demora nos decursos processuais, ao passo que, a antecipação de tutela nada mais é do que uma técnica de distribuição do ônus do tempo no processo. Marinoni ressalta que "para a tutela antecipatória no direito brasileiro são necessárias a evidência do direito do autor e a fragilidade da defesa do réu, não bastando apenas a caracterização da primeira" [16].

Os efeitos antecipáveis no deferimento da tutela satisfativa são os efeitos que estão na sentença, de modo que a antecipação dos mesmos somente contribuirá para a efetividade processual quando tiverem o condão de provocar mudanças ou impedi-las no plano da realidade fática, pois assim a tutela comportará, de alguma forma, execução. Todavia, insta ressaltar que a execução terá de ser sempre provisória, sujeita a ser modificada ou tornada sem efeito a qualquer tempo, atentando-se ao disposto no parágrafo 2º do artigo 273, ou seja, deve ser garantida a reversibilidade ao estado anterior da concessão do provimento antecipatório [17]. Obviamente que, em muitos casos, o "perigo de irreversibilidade" coexiste com as situações previstas como aptas à concessão da medida de urgência, sendo que, coerente será a decisão jurisdicional que ponderar os bens jurídicos em confronto e fizer prevalecer a posição com maior chance de vir a ser, ao final do processo, vencedora, como, por exemplo, se no caso de uma ação declaratória objetivando interpretação de cláusula de plano de saúde, o juiz indeferir pedido de realização de cirurgia inadiável, com fundamento no citado § 2º do art. 273 do CPC, o paciente poderá vir a correr risco de morte [18]. Convêm, em tais situações, que o Julgador promova meios adequados que garantam a reversibilidade dos fatos decorrentes do cumprimento da decisão, sendo possível, em determinados casos, a exigência de caução [19], atentando-se que não se deve cogitar simplesmente da reversibilidade do provimento prestado antecipadamente, pois nem sempre a reversão do provimento eliminará do mundo dos fatos e das relações entre as pessoas os efeitos já produzidos.

Saliente-se, por fim, que nem todas as situações de urgência serão capazes de autorizar a execução provisória da pretensão requerida na inicial, como ocorre na concessão da tutela antecipatória satisfativa, ao passo que, por vezes, a urgência centra-se na necessidade de assegurar-se a incolumidade da coisa litigiosa, sendo, nestes casos, cabível a tutela cautelar, convenientemente denominada "segurança-da-execução" [20].

1.2. Um paralelo entre medida antecipatória e cautelar:

Enquanto a tutela antecipada propõe-se a satisfazer um direito sumariamente, muito embora tal prestação jurisdicional ainda não seja definitiva, a medida cautelar visa tão-somente garantir a viabilidade de realização de um direito, excluindo-se a possibilidade de realizá-lo. Denota-se que, com a sistematização da antecipação de tutela no direito processual, o provimento cautelar readquiriu a sua finalidade clássica, qual seja a de instrumento para obtenção de medidas adequadas a tutelar o direito sem satisfazê-lo.

A providência cautelar caracteriza-se por não coincidir com a conseqüência jurídica resultante do direito material, de forma que não se tornará apta a converter-se em situação consolidada quando da decisão final, diferentemente do que ocorre com a concessão da tutela antecipada, a qual, com a sentença de procedência do pedido firmado na inicial, apenas restará confirmada [21]. Desta forma, a medida cautelar terá sempre um limite temporal, persistindo apenas enquanto existir o estado de perigo o qual visa impedir, uma vez que não consistirá no objeto da tutela definitiva e jamais poderá adquirir a indiscutibilidade que dá permanência à coisa julgada material.

Tenha-se presente que as tutelas acautelatórias, assim como as antecipatórias, são espécies ou ramificações das denominadas tutelas de urgência, que representam instrumentos de proteção estatal, conferidas em demandas matizadas por situações em concreto, que exigem providência de natureza emergencial para satisfazer ou assegurar os litigantes, no plano material ou processual, diante de perigo de dano irreparável ou de difícil reparação.

Mister ressaltar que o ponto de principal divergência entre processualistas no que se refere à diferenciação das medidas de urgência concentra-se na suposta satisfatividade inerente à tutela antecipatória prevista no artigo 273, a qual não estaria presente nas medidas cautelares. Cumpre inferir que muitos ainda relutam em aceitar a referida distinção, como expôs Ovídio Baptista, ao mencionar "que tanto CALAMANDREI quanto seus seguidores brasileiros não contrapõem cautelaridade à satisfatividade, e sim à definitividade, ao julgamento definitivo, de modo que sendo ambos, para a doutrina, decisões provisórias, não haverá critério que os possa distinguir" [22].

Inobstante a provisoriedade [23] seja característica de ambas as medidas, eis que serão aplicadas em tempo anterior ao julgamento definitivo, não há que se confundir o deferimento de uma tutela que vise a simples segurança de um direito daquela que de certa forma estará concedendo o pedido formulado na inicial. E isto pode ser mais bem vislumbrado quando se toma por exemplo o seqüestro, medida tipicamente cautelar, cujo caráter é apenas assegurativo, eis que a nenhuma das partes satisfará, ao passo que o objeto litigioso será entregue em depósito judicial a um terceiro nomeado pelo juiz, sendo que apenas a sentença definitiva dirá a quem será reconhecida a posse definitiva. Desta feita, conclui-se que a satisfatividade não se faz presente nas medidas cautelares [24], exceto quanto ao direito ou pretensão autônoma, a qual não coincide com o pedido da ação principal, sendo destinada tão-somente a afastar situação de perigo. Insta salientar, todavia, que nem mesmo a tutela de cognição sumária satisfativa tem o condão de esgotar o objeto da ação, eis que o adiantamento dos efeitos da sentença proporcionados por esta são meramente provisórios, ou seja, sempre haverá um risco de o primeiro procedimento (sumário) não restar confirmado, sendo anulados ou modificados seus efeitos.

De outra banda, oportuno mencionar a questão da satisfatividade nas ações cautelares inominadas de sustação de protesto, uma vez que parte da doutrina defende a tese de que a sustação de protesto consiste em uma medida antecipatória da decisão final de mérito, dotada de caráter satisfativo [25]. Neste cerne, aqueles que são contrários à referida tese, entendem que só haveria satisfatividade se a ação principal fosse uma ação de sustação de protesto, ao passo que, em outras demandas, como a de rescisão contratual, por exemplo, o protesto levado à efeito é fato externo à lide, de modo que o deferimento da sustação não abrevia o lapso temporal, quanto menos executa provisoriamente a decisão final de rescisão do contrato. Vale dizer, no entanto, que a respectiva dissonância doutrinária perde sua relevância diante da nova reforma processual, especificamente quanto ao acréscimo do § 7º ao artigo 273, eis que em face da fungibilidade prevista nesta norma, desimportará se a sustação de protesto fora requerida a título de antecipação de tutela, quando na verdade seu caráter é de medida cautelar, pois será deferida igualmente no bojo do processo de conhecimento. Ou seja, apesar de sua cautelaridade inerente, poderá seguir a via procedimental da medida satisfativa [26].

Partindo-se do pressuposto de que a medida cautelar servirá de instrumento jurisdicional apto a proteger determinado direito que se encontre ameaçado de dano, o primeiro requisito exigível para a sua concessão compreende na demonstração pelo requerente de que seu interesse necessita de proteção, sob pena de perecer, tornando-se, posteriormente, inútil o deferimento do pedido principal, ou seja, que realmente haja urgência na procedência da tutela.

O artigo 798, do Código de Processo Civil, que trata das cautelares inominadas e tem por fundamento o poder geral de cautela conferido ao juiz, elenca, como elemento indispensável à sua concessão, o perigo de lesão grave ou de difícil reparação, conhecido doutrinariamente por periculum in mora. A análise do referido preceito torna-se coerente no presente estudo, tendo em vista a necessidade de diferenciá-lo da tutela antecipatória satisfativa, a qual, como já fora salientado anteriormente, exige o respectivo pressuposto, dentre outros, como necessário ao seu cabimento. Diante desta exigência é possível compreender, de certa forma, a expressão "medidas de urgência", uma vez que o perigo de dano irreparável ao qual se refere a lei está diretamente relacionado à exigência temporal do procedimento ordinário, de modo que, há determinadas situações urgentes, as quais necessitam de uma prestação jurisdicional imediata e que, caso não sejam efetivadas, provavelmente perderão sua utilidade e razão de ser. Saliente-se que, o periculum in mora, tanto nas medidas cautelares como nas sumárias satisfativas, representa um risco iminente de que, ocorrendo determinados fatos, a efetividade da prestação jurisdicional estará impedida, sendo que, entretanto, no caso das cautelares, basta que este requisito esteja associado ao fumus boni iuris para a sua concessão, enquanto que, nas antecipatórias faz-se necessário, ainda, que o juiz se convença da verossimilhança da alegação, tornando-a, desta forma, mais rigorosa.

Outro requisito essencial ao cabimento do provimento cautelar é o fumus boni iuris, ou seja, a probabilidade de que o direito acautelado exista, consistindo em uma simples aparência, pois caso contrário, se o direito se mostra como uma realidade indiscutível, a prestação jurisdicional não deveria ser apenas uma tutela de segurança, mas sim, uma forma definitiva e satisfativa. A expressão "plausibilidade" pode representar melhor o respectivo requisito, deixando que a "probabilidade" se torne mais expressiva quando se fala em verossimilhança, a qual é exigida na antecipação de tutela, eis que esta requer maior certeza quanto à possibilidade de serem verdadeiras as razões do pedido sumário [27]. Grande parte da doutrina entende que, na realidade, não há distinção entre os requisitos da verossimilhança e do fumus boni iuris, existindo sim uma diferença de grau entre os mesmos, o que permite considerar a tutela antecipada mais rigorosa que a cautelar.

Embora guarde relação de instrumentalidade com o pleito principal, a medida cautelar possui autonomia procedimental, eis que é processada em autos apartados, o que, inclusive, a diferencia da antecipação de tutela, uma vez que esta é requerida no próprio bojo do processo principal. Ressalte-se que tal autonomia não afastará a acessoriedade característica dos provimentos cautelares, pois enquanto aquela diz respeito à estrutura processual, esta envolve a própria essência e finalidade do processo cautelar, qual seja a de servir de instrumento que assegure o resultado útil da demanda principal, através da prevenção de provável perigo.

Destarte, apesar das distinções aqui suscitadas, as tutelas cautelar e antecipatória, ditas de urgência, são, sobremaneira, uma forma de tentativa de harmonização do trinômio segurança, rapidez e efetividade do processo, na busca de uma justa composição do litígio, ou seja, da ordem jurídica justa.

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Sobre a autora
Andressa Bozzi Tonetto

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria/RS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TONETTO, Andressa Bozzi. A fungibilidade das medidas de urgência à luz da nova reforma processual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 358, 30 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5404. Acesso em: 26 dez. 2024.

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