5 Os desafios do Compliance na busca por sua efetividade
É notório que a incidência da lei penal em face da pessoa jurídica pode implicar um gasto tão grande - quiçá maior – quanto àquele destinado ao investimento e à estruturação do programa de Compliance. Ao mesmo tempo, não há como deixar de se considerar que o alto custo, ainda assim, representa um entrave à efetiva implantação desse sistema. Tal aspecto, aliado aos procedimentos excessivamente burocráticos e à insuficiência de incentivos legislativos, consistem em grandes óbices à concretização do Compliance no âmbito empresarial brasileiro.
No que se refere à insuficiência de incentivos legislativos, entende-se que apesar de toda a noção de prevenção da responsabilidade da pessoa jurídica trazida pelo Compliance, e aqui explanada, o que se vê, na prática, é que somente ocorrerá um maior estímulo das empresas, e a consequente veiculação efetiva do programa, se estiverem claros os benefícios que a elas serão concedidos. Nesse sentido, seguem-se as brilhantes palavras de Maeda:
“Deve-se especificar objetivamente o benefício conferido às empresas que tiverem um programa de compliance efetivo. Na medida em que a implementação de um programa de compliance acarreta custos, a indicação objetiva dos benefícios para as empresas que possuírem programas efetivos proporcionaria maior segurança jurídica e potencializaria os incentivos para que um maior número de empresas venha a implementá-los.”[31]
Dentro desse contexto, tomando como parâmetro as legislações estrangeiras, não há como deixar de considerar que a opção legislativa brasileira, no que tange ao combate aos crimes econômicos, não prevê incentivos claros à adoção do referido programa preventivo. Considera-se que esta deficiente conjuntura configura um entrave à instauração de uma cultura de utilização do “Criminal Compliance” dentro do território pátrio.
No que tange ao cenário internacional, destaca-se, brevemente, alguns aspectos relevantes de legislações estrangeiras referentes ao Compliance, sem intenção de esgotar a análise destas. Primeiramente, cabe expor o exemplo americano caracterizado pelo Foreign Corrupt Practices Act – FCPA, instrumento voltado para o combate à corrupção internacional.
Neste ínterim, a constatação da existência do sistema de Compliance configura um fator a ser considerado no momento de aplicação das sanções, sendo previsto de modo expresso nas diretrizes conhecidas como Principles of Federal Prosecution of Business Organizations, em sua versão revisada e publicada no ano de 2006. Nessa senda, considera-se o reconhecimento da utilização de programas de Compliance pela empresa como um importante fator de mitigação e, em determinados casos, até mesmo de completa exclusão da responsabilidade penal da pessoa jurídica.
Trata-se de concessão de “crédito” às empresas que possuíam o programa anteriormente à ocorrência das violações, mediante a análise da efetividade do mesmo, isto é, se “está estruturado de forma adequada para alcançar a máxima eficiência na prevenção e detecção de condutas indevidas [...], bem como se a administração da empresa está, de fato, implementando tal programa”.[32] Assim, estabeleceu-se, no documento denominado U.S. Sentencing Guidelines, fatores para a mitigação da responsabilidade da pessoa jurídica, como a existência de programas de Compliance efetivos, e a cooperação com as autoridades. Observa-se que o referido diploma não só prevê elementos mínimos para que programas de Compliance sejam considerados efetivos, como também estabelece montantes de redução da sanção penal imputada à empresa.
Muito embora o exemplo americano já represente um importante avanço em termos de estímulo à implantação efetiva do Compliance, vale destacar a recente e pertinente legislação instaurada no Reino Unido, em 2011: o UK Bribery Act, também voltado para o combate à corrupção. De acordo com Maeda, tal diploma reconhece de modo expresso a existência de “procedimentos adequados”, os quais devem ser utilizados antes da prática do ato ilícito, dotados da finalidade de prevenir a violação, como uma defesa absoluta, sendo capaz de isentar a responsabilidade da empresa.[33] Assim,
“caso a empresa demonstre que possuía ‘procedimentos adequados’ para prevenir a prática das condutas ilícitas tratadas no UK Bribery Act [...] por seus empregados ou por qualquer outro terceiro a ela associado, a empresa pode se isentar integralmente de responsabilidade pela ‘falha em prevenir a corrupção’.”[34]
Evidencia-se, nesse sentido, que os exemplos práticos apresentados no âmbito internacional constatam que a objetiva especificação de benefícios conferidos às empresas com Compliance efetivo serviu para “incentivar de modo substancial que mais empresas adotassem posturas proativas na implementação de programas de Compliance em suas organizações”.[35]
Ocorre que, no Brasil, como já mencionado, há um cenário de insuficiência de objetividade dos incentivos legislativos à implantação do Compliance. Em um aspecto mais específico, o que se vê é a estruturação de legislações em que não se verifica o estabelecimento de diretrizes indicando quais elementos devem existir nos referidos programas, a fim de que estes sejam capazes de proporcionar benefícios para as empresas. Além disso, não se constata a existência de disposição clara sobre a extensão do benefício que poderá ser obtido. Demonstrar-se-á tais afirmações expondo pontos específicos da Lei n.º 9.613, de 1998, hoje com a redação da Lei n.º 12.683, de 2012 (“Lei de Lavagem de Dinheiro”), bem como da Lei n.º 12.846, de 2013 (“Lei de Anticorrupção”).
A Lei nº 9.613/98, com nova redação dada pela Lei n.º 12.683/12, “dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, e dá outras providências”.[36] Tal legislação impõe aos obrigados aludidos em seu artigo 9º (em geral instituições responsáveis pela administração de recursos ou que lidam com um grande volume de quantias de valores) uma série de deveres de atenção e cooperação.[37] Dentre eles, está a obrigatoriedade da adoção de “políticas, procedimentos e controles internos, compatíveis com seu porte e volume de operações”, previsto em seu artigo 10,[38] o qual remete à ideia de Compliance.
Tal dever deve ser seguido sob pena de responsabilização administrativa, conforme dispõe o artigo 12[39] da referida lei. Contudo, analisando-se de modo integral esta legislação, verifica-se que nada dispõe sobre a possibilidade de se levar em consideração o cumprimento desses procedimentos e controles internos na aplicação das sanções. Desta forma, não há previsão de eventual concessão de benefícios pela implantação efetiva dos programas de Compliance.
Apesar de não terem sido explanados aqui cada dever imposto pela Lei nº 9.613/98, com nova redação dada pela Lei n.º 12.683/12, em seu artigo 10, vale destacar, brevemente, o descompasso entre a realidade econômica e empresarial brasileira, bem como a grande abrangência e rigor dos deveres impostos por essa legislação. Entende-se que representam uma desfavorável burocratização dos procedimentos a serem realizados pelas empresas. Nesses termos, registra-se que
“inúmeras empresas não teriam condições de se aparelhar suficientemente para obediências das disposições legais, fato que, além de inviabilizar sua sobrevivência empresarial, ainda imputaria responsabilidade à pessoa jurídica e aos seus diretores e gestores.”[40]
Em paralelo, a Lei n.º 12.846, de 2013 (“Lei de Anticorrupção”), “dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências”.[41] Nesse contexto, prevê como fator a ser levado em consideração na aplicação das sanções, dentre outros, “a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica”.[42] No entanto, apesar de haver essa previsão de que será levado em consideração na aplicação das sanções a existência de sistema de controle interno – o que para nós compreende o programa de Compliance – nota-se novamente que não há especificação de modo objetivo do benefício a ser conferido às empresas.
Diante disso, postula-se que, primeiramente, deve haver o estabelecimento de diretrizes indicando quais elementos devem existir nos programas de Compliance, a fim de que estes possibilitem benefícios para as empresas. A existência de tal parâmetro visa conferir maior segurança jurídica para as instituições empresariais, visto que se permitirá ter conhecimento do que delas se espera. Ao mesmo tempo, favorecerá a redução do risco de que programas não efetivos sejam indevidamente beneficiados, não permitindo que empresas que não estejam de fato comprometidas com a prevenção gozem de eventual mitigação ou isenção de responsabilidade.
Paralelamente, é também importante que existam disposições claras a respeito da extensão do benefício que poderá ser obtido com a implantação do Compliance. A indicação objetiva aqui visada, na esteira das legislações estrangeiras, é a determinação do benefício, ou seja, se ele chegará a isentar integralmente a responsabilidade da empresa, ou se consistirá em um fator de mitigação. Neste último caso, especificamente, julga-se necessário o pré-estabelecimento de um limite de redução da penalidade aplicada.
Por todo o exposto, entende-se que as deficiências aqui tratadas enquadram-se como um grande desafio para a solidificação da cultura de Compliance no âmbito empresarial brasileiro. Desafio este que, ao nosso ver, deve ser superado. Entende-se, assim, que, por meio da indicação de quais elementos devem existir nos programas de Compliance, aliado à existência de disposição clara sobre a extensão do benefício que poderá ser obtido, proporcionar-se-ia um grande estímulo para as empresas implantarem os referidos procedimentos, favorecendo-se, ao mesmo tempo, a efetividade dessas políticas preventivas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebe-se que embora crescente a importância dos chamados programas de Compliance no cenário empresarial global, há ainda desafios para que estes sistemas preventivos firmem-se no “front” de combate aos crimes econômicos, principalmente quando se trata do âmbito brasileiro.
Em primeiro lugar, quanto ao frequente questionamento a respeito de critérios para identificação de um programa efetivo de Compliance, merecem destaque os cinco aspectos considerados por nós como essenciais para sua estruturação de modo mais eficaz. No entanto, leviano seria deixar de considerar que a adoção integral dos elementos aqui destacados importa alto custo às empresas, por isso cumpre afirmar que a estrutura proposta não consiste em molde obrigatório a ser seguido, mas sim um parâmetro do qual podem derivar os questionados critérios. Aliás, conforme já ponderado, considera-se crucial a observância de critérios de razoabilidade e proporcionalidade por parte da empresa na implementação do programa aqui tratado.
Em segundo, restou evidente que, no Brasil, o grande obstáculo à busca pela eficiência das políticas preventivas, especificamente o Compliance, permeia questões legislativas. A ausência de especificação dos benefícios concedidos às empresas que adotam o programa de Compliance, somados à falta de objetividade do alcance desses benefícios, demonstra o atraso da legislação brasileira frente a normas estrangeiras de combate à corrupção, como o FCPA e o Uk Bribery Act.
Desta forma, cientes do potencial preventivo que um programa de Compliance efetivo pode alcançar – e já alcança dentro de grandes empresas instaladas no Brasil– reconhece-se a relevância da introdução de uma cultura de Compliance no âmbito empresarial brasileiro, em seus mais variados níveis. A introdução dessa cultura será possibilitada por intermédio de maiores incentivos legalmente previstos, bem como através do tratamento objetivo, nas leis pátrias de anticorrupção, da possibilidade de mitigação ou até isenção da responsabilidade da pessoa jurídica que adote este programa de modo efetivo. Os exemplos internacionais evidenciam que o combate aos crimes econômicos não deve mais ser promovido apenas por parte estatal, mas também pelas próprias empresas, por meios de mecanismos destinados à implementação de práticas de cunho preventivo e adoção de procedimentos de controle interno – os programas de Compliance.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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