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A atuação da Polícia Civil de São Paulo na prevenção especializada por intermédio dos Núcleos Especiais Criminais

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Agenda 17/02/2017 às 13:35

A atuação do delegado de polícia na resolução de conflitos por intermédio de técnicas de conciliação pode ser entendida como adequada estratégia de policiamento, na medida em que efetivamente voltada para a prevenção de riscos, de perigos e de danos em seara criminal.

O direito impele à obrigação;  a polícia, à decência. O direito é ponderado e decisivo; a polícia é abrangente e coercitiva. 

O direito liga-se ao singular;  a polícia à coletividade.

(Goethe)

RESUMO: O presente trabalho teve por objetivo analisar a atuação da Polícia Civil de São Paulo por intermédio dos Núcleos Especiais Criminais (NECRIMs), pois, na contemporaneidade, observa-se o Poder Judiciário com excessivo volume de trabalho e os NECRIMs auxiliam no processo de não judicialização dos conflitos decorrentes das infrações penais de menor potencial ofensivo. O delegado de polícia com atuação junto ao NECRIM pode lançar mão de diversos meios alternativos de solução de conflitos. Vale dizer, num contexto de tutela penal arrimada num sistema de direitos e garantias fundamentais, os órgãos públicos devem estimular a participação efetiva dos envolvidos nos referidos conflitos, orientando e apontando caminhos para a preservação das relações humanas. É possível afirmar que a pena criminal pode se mostrar desproporcional em relação às infrações penais de menor potencial ofensivo. Sendo assim, a busca pela autocomposição nestes casos pode significar acesso substancial à justiça em âmbito criminal, possibilitando efetivo atendimento dos interesses das vítimas, bem como tornando mais eficaz a atuação do poder público na prevenção criminal. Foram realizadas pesquisas sobre a disciplina jurídica e os fundamentos epistemológicos referentes à atividade de polícia judiciária, sobretudo quanto ao processo permanente de pacificação social através de meios autocompositivos. Pesquisou-se, igualmente, a forma pela qual os Núcleos Especiais Criminais viabilizam a materialização da celeridade da resposta do poder público aos conflitos levados à apreciação das autoridades policiais, bem como a forma pela qual é edificada a cultura de paz no âmbito destes órgãos, na medida em que são implementados procedimentos com observância da filosofia de Polícia Comunitária.

Palavras-chave: Conciliação. Delegado de polícia. Infrações penais. Meios alternativos. Polícia Judiciária.

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 MEDIAÇÃO DE CONFLITOS COMO PREVENÇÃO CRIMINAL PRIMÁRIA. 2.1 Atividade de polícia no contexto da Justiça restaurativa. 3  PRÍNCIPIOS CONSTITUCIONAIS REGENTES DA ATUAÇÃO DO PODER PÚBLICO NO QUE SE REFERE AOS MÉTODOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS. 3.1  Princípio da dignidade da pessoa humana. 3.2  Princípio da pacificação social. 3.3  Princípio do acesso à justiça . 4  FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICO-CIENTÍFICA DA ATUAÇÃO DA    POLÍCIA CIVIL NA UTILIZAÇÃO DOS MÉTODOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS. 4.1  Atribuições da autoridade policial previstas na Lei nº 9.099/1995. 4.2  Análise interdisciplinar da Lei nº 12.830/2013 e dos fundamentos epistemológicos da atividade de polícia . 5  OS MÉTODOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS COMO INSTRUMENTOS DA ATIVIDADE DE POLÍCIA . 5.1  Negociação. 5.2  Conciliação . 5.3  Mediação. 5.4  Arbitragem. 6  O NÚCLEO ESPECIAL CRIMINAL COMO INSTRUMENTO DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS PELA POLÍCIA CIVIL DE SÃO PAULO. 7  CONSIDERAÇÕES FINAIS.   REFERÊNCIAS.        


1  INTRODUÇÃO

Este trabalho caracteriza-se pela realização de uma pesquisa qualitativa acerca dos fundamentos epistemológicos e normativos legitimadores dos Núcleos Especiais Criminais – NECRIM, da Polícia Civil do Estado de São Paulo, enquanto órgão de Polícia Judiciária.

De se notar que referidos núcleos tem atribuições de polícia voltadas às infrações penais de menor potencial ofensivo, conforme os termos do artigo 61 da Lei n° 9.099 de 26 de setembro de 1995. Nestes órgãos de polícia, os serviços são desenvolvidos com o objetivo de redução da litigiosidade, possibilitando a preservação das relações interpessoais, contribuindo para a materialização de uma cultura de paz.

Cumpre observar, igualmente, que, para a realização de seus misteres, os servidores que atuam junto aos núcleos, sobretudo as autoridades policiais, podem lançar mão de medidas alternativas para resolução de conflitos criminais, como, v.g., a mediação. Desta forma, é possível afirmar que estas unidades de polícia desenvolvem seus trabalhos com observância das bases da justiça restaurativa.

Isto, frise-se, não constitui interferência nas atividades do Poder Judiciário e do Ministério Público, uma vez que todos os procedimentos realizados são submetidos à apreciação dos magistrados para fins de homologação, o que, vale observar, é feito com prévia manifestação do membro do Parquet.

Nos tempos atuais, o sistema de justiça criminal como tradicionalmente conhecido não oferece soluções satisfatórias para todos os delitos. Especificamente no que se refere às infrações de menor potencial lesivo, a utilização de métodos adequados de solução de conflitos possibilita que um elevado número de casos não se torne objeto de um processo criminal. Verificar-se-á de que forma esta atuação da Polícia Civil, por intermédio dos Núcleos Especiais Criminais, pode ser entendida como sendo de prevenção especializada. 

 Deste modo, analisa-se em que medida os NECRIMs podem ser entendidos como órgãos de polícia incumbidos da viabilização de um atendimento mais célere às partes envolvidas em conflitos criminais, propiciando satisfação efetiva aos interesses das vítimas, bem como garantindo os direitos fundamentais dos autores destes ilícitos, em razão do trabalho desempenhado pelo delegado de polícia.  


2  MEDIAÇÃO DE CONFLITOS COMO PREVENÇÃO CRIMINAL PRIMÁRIA

A ideia de prevenção criminal perpassa os âmbitos de atuação das instâncias de controle formal da criminalidade. A mediação entendida como instrumento de prevenção criminal primária “posiciona-se como técnica ou método de negociação que opera não somente no âmbito do sistema de justiça, mas também fora dele” (BECHARA, 2013, p. 47). É dizer que a prevenção criminal primária é materializada por intermédio de prestações sociais e intervenção comunitária com conscientização social (SHECAIRA, 2013, p. 53). O objetivo é interferir nas circunstâncias sociais criminógenas (PENTEADO FILHO, 2013a, p. 103), ou seja, o que gera o crime. Políticas públicas voltadas à educação, habitação, trabalho, urbanismo e segurança, atingindo a todos os cidadãos. Sobre isto, ensina Penteado Filho que

aqui desponta a inelutável necessidade de o Estado, de forma célere, implantar os direitos sociais progressiva e universalmente, atribuindo a fatores exógenos a etiologia delitiva; a prevenção primária liga-se à garantia de [...] qualidade de vida do povo, instrumentos preventivos de médio e longo prazo. (2013a, p. 103, grifo nosso).

A grande dificuldade é que não há vontade política, que é sempre direcionada a curto prazo.

Deste modo, é possível afirmar que, com relação aos conflitos criminais, a mediação pode ser entendida como mecanismo de implantação de referidos direitos, na medida em que, além de possivelmente encerrar o conflito, pode evitar sua instalação. Neste passo, o magistério do professor Bechara é no sentido de que

A mediação enquanto técnica soma-se a todas as demais técnicas típicas de determinadas funções, como juízes, promotores, delegados, policiais militares, professores, e que pode ou não acarretar consequências de natureza jurídica. O efeito jurídico não constitui o fim primário da mediação, mas sim um efeito secundário. O fim primário da mediação é a pacificação social na relação conflituosa, pouco importando a sua natureza, e seja quando encerra o conflito seja quando evita a ocorrência do próprio conflito. (2013, p. 47, grifo nosso).

No aspecto de evitar o surgimento do conflito, é de se observar um traço característico fundante de uma doutrina que se pretenda científica acerca das atividades de polícia. Vale dizer, na contemporaneidade, muito mais do que reagir às ocorrências, consubstancia papel fundamental da polícia a prevenção de perigos, que são anteriores aos riscos, que são anteriores aos danos. 

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O professor português Manuel Monteiro Guedes Valente, edificando uma teoria sobre as atividades de polícia, afirma que

Uma polícia contemporânea ou pós-moderna procura evitar que condutas de pessoas singulares e/ou colectivas possam afectar interesses gerais ou colectivos e interesses singulares e individuais. A atividade jurídicoadministrativa e jurídico-criminal de uma polícia pós-moderna se deve basear em primeira linha na prevenção do perigo – que antecede a prevenção do risco e do dano. À polícia hodierna cabe-lhe evitar que o perigo possa surgir e gerar o risco e o posterior dano social. (2014, p. 53, grifo nosso).  

Este ensinamento se coaduna com a ideia de mediação como prevenção criminal primária na medida em que distingue nitidamente os dois resultados possíveis da atuação da polícia, quais sejam, os advindos da chamada atividade jurídico-criminal, corporificados, v.g., no indiciamento em inquérito policial, bem como os decorrentes da atividade jurídico-administrativa materializados, por exemplo, nos Termos de Composição Preliminar confeccionados pelos NECRIMs.

Sobre isso, Valente apregoa que 

A este esquema de acção da Polícia se enquadra na linha da designada de prevenção criminal stricto sensu. Para a doutrina dominante, a prevenção criminal stricto sensu – vulgo, investigação criminal – está integrada na prevenção criminal lato sensu: que compreende todos os actos materiais e jurídicos de Polícia destinados a prevenir o perigo e, quando este se verificar, a prevenir o dano e evitar que o mesmo provoque elevada lesividade social. (2010a , p. 17, grifo nosso).

No caso de se observar, no mundo fenomênico, a ocorrência do dano, é função da polícia promover também

estudos técnicos, operativos, sociológicos e jurídicos para que de futuro aquele perigo não se volte a verificar. Nesta perspectiva concorre a ideia basilar de que a polícia está ao serviço do povo e não ao serviço do Estado e dos poderosos e de que se apresenta como primeiro pilar na defesa e garantia efectiva dos direitos e liberdades dos cidadãos. (VALENTE, 2014, p. 54).

Ou seja, um trabalho de excelência realizado pela polícia, além de focalizar a implementação de medidas preventivas como a mediação, deve se debruçar sobre atos materiais outros que possam efetivamente atingir as causas dos conflitos, neutralizando o surgimento de perigos.

Neste contexto, cabe ao policial conhecer as ferramentas de que dispõe e lançar mão adequadamente destes recursos, pois 

Fundamental para a ideia de policiamento para solução de problemas, por exemplo, é a atividade de pensamento e análise necessários para entender o problema que está por trás dos incidentes para os quais a polícia é convocada. (MOORE, 2003, p. 137, grifo nosso).

Legitima a ideia de polícia científica a fala de Pascal Ide quando diz que

Se o método matemático é eficaz para criar modelos da física de partículas, ele o é bem menos quando se trata de discorrer sobre a liberdade ou sobre Deus. É um preconceito positivista continuar a afirmar que a ciência é sinônimo de método matemático e que a certeza da razão rima com quantificação e axiomatização. (2000, p. 2, grifo nosso).  

Deste modo, a mediação enquanto técnica que viabiliza a prevenção de conflitos criminais pode ser entendida como instrumento de proteção de direitos no Estado Democrático. E o respeito e proteção incondicional aos direitos humanos são entendidos por Manuel Monteiro Guedes Valente como categorias epistemológicas que arrimam atividades de polícia que se pretendam realizadas em bases científicas. (2010a, p. 18). O que, vale notar, não se confunde com a atuação da superintendência da polícia técnico-científica. Nestes termos,

Ao falarmos de cientificidade não nos estamos a prender à designada Polícia científica, ao CSI (Crime Sob Investigação), mas a outro quadrante e outro vector da cientificidade que não se esgota ou esgrime no quadro da designada Polícia científica, que desempenha o seu elevadíssimo papel e contributo na prossecução do Direito penal e, consequentemente, na reafirmação da norma jurídica criminal agredida pela conduta humana e na tutela dos bens jurídicos que são direitos humanos. Esta cientificidade da actuação policial implica uma Polícia que actue na construção de um equilíbrio entre a tutela de bens jurídicos e a defesa do delinquente face à força punitiva do Estado, cujo rosto visível se concretiza em cada elemento policial. (VALENTE, 2010a, p. 14, grifo nosso).

Assim, pode-se dizer que a mediação é ato material de polícia que previne conflitos criminais e ao mesmo tempo evita a estigmatização que recai sobre os autores de infrações penais.

Sobre práticas policiais relacionadas à prevenção, é pertinente a análise de Marcos Rolim quando diz que

Um novo modelo, proativo, de policiamento deve estar tão próximo e vinculado às comunidades quanto possível [...] A ideia central nesse caso é substancialmente diferente daquela direcionada para o número de prisões efetuadas ou a taxa de resolução de crimes. Ela parte do princípio de que um percentual muito significativo dos crimes [...] podem ser evitados.  E compartilha também o pressuposto de que uma intervenção racional das forças policiais, em parceria com entidades da sociedade civil, pode alterar várias das condições que são preditivas do crime e da violência. Por conta disso, o ponto central desse novo modelo deve ser a prevenção. (2006,  p. 65).

Este enfoque das atividades de polícia dá novo significado a este trabalho na medida em que o trabalho da polícia passaria a ser avaliado pelo mal que ela foi capaz de

evitar, ou seja, pelas ocorrências criminosas e violentas que ela soube impedir, e não pelos resultados alcançados diante do mal já praticado. Afirmá-lo assim pode parecer estranho em um contexto no qual nos acostumamos a pensar em “prevenção” no âmbito de políticas sociais e nunca no âmbito das tarefas específicas de policiamento. Parece evidente que políticas econômicas de caráter distributivo, diminuição das taxas de desemprego e melhorias em outros indicadores sociais são decisivas para um enfrentamento a longo prazo da criminalidade. O que não está suficientemente demonstrado, entretanto, é que a prevenção pode também ser realizada com sucesso e de maneira imediata através de estratégias corretas de policiamento. (ROLIM, 2006, p. 65, grifo nosso).

Neste contexto, é possível afirmar que a atuação dos Núcleos Especiais Criminais, através da utilização de métodos adequados de solução de conflitos, constitui estratégia correta de policiamento pelo fato de evitar a ocorrência, sobretudo, de crimes mais graves, uma vez que 

A mediação projeta-se para além do processo judicial, coloca-se num momento lógica e cronologicamente anterior, como intervenção primária do Estado no esforço de solucionar uma situação conflituosa, pouco importando a sua natureza. A sua importância é mantida de forma inalterada, mesmo quando se mostra idônea a solucionar somente parte dos problemas. (BECHARA, 2013, p. 51, grifo nosso).

De se observar, igualmente, que a Lei Complementar nº 207/1979 autoriza a prática de atos não exclusivos de Polícia Judiciária por parte das autoridades policiais, na medida em que dispõe, em seu artigo 3º, inciso I, que a prevenção especializada é também atribuição básica da Polícia Civil (TRAVASSOS, 2012,  p. 45). Desta forma, é possível concluir, então, que à Polícia Civil incumbe a prevenção criminal na medida em que esta pode ser entendida como consectário lógico dos estudos e pesquisas na área policial, sobretudo no que fica demonstrado em termos de proteção efetiva dos direitos fundamentais da pessoa humana. Vale dizer, no interior da doutrina dos direitos fundamentais, encontra-se o princípio de vedação ao retrocesso. Deste modo, a norma jurídica que comete à Polícia Civil atribuição de prevenção especializada deve ser reafirmada como valor, na medida em que é mais protetiva de direitos. Este trabalho preventivo é materializado, em alguma medida, através do emprego de métodos adequados de solução de conflitos pelas autoridades policiais no âmbito de atuação dos Núcleos Especiais Criminais.

Destarte, é possível afirmar que os Núcleos Especiais Criminais, na medida em que, por intermédio da mediação, corporificam a prevenção criminal em sentido amplo, consubstanciam condição de possibilidade para a materialização de uma atividade de polícia arrimada em bases que se pretendam científicas.

2.1  Atividade de polícia no contexto da Justiça restaurativa

A Justiça restaurativa nasce num contexto de descontentamento com os resultados obtidos pela atuação do Sistema de Justiça Criminal tradicional (ROLIM, 2006; BALDAN, 2013; ACHUTTI; PALLAMOLLA, 2014). Pode-se afirmar que a ineficácia do sistema justifica que se pense sobre a edificação de alternativas. Neste contexto, surge a ideia de Justiça restaurativa. Esta, conquanto comporte uma multiplicidade de conceituações (BALDAN, 2013), é estabelecida por Tony Marshall nos seguintes termos: “um processo pelo qual todas as partes envolvidas em determinada ofensa reúnem-se para resolver coletivamente como tratar das consequências da ofensa e de suas implicações futuras.” (MARSHALL, 1999 apud BALDAN, 2013, p. 37, grifo nosso).

Nestes termos, é possível afirmar que a Justiça restaurativa dispensa atenção a todas as pessoas que, de alguma forma, foram atingidas pela prática da infração penal, a saber, autores, vítimas e pessoas da comunidade, com o objetivo de que todos possam fruir a restauração. E o faz de modo prospectivo, viabilizando a continuidade das relações, indo além da função meramente punitiva. Permitimo-nos, neste ponto, recuperar o ensinamento do professor Doutor Édson Luís Baldan, para quem a 

“Justiça restaurativa” implica, necessariamente, em tratar de restauração. Restauração da vítima, do ofensor, do dano originado do delito, dos interesses comunitários reflexamente atingidos pela prática da infração penal. Restauração como preocupação com a construção de uma sociedade melhor no futuro e não, apenas, como punição de fatos pretéritos. (2013, p. 38).

Sobre o tema, a fala de Marcos Rolim enfatiza o aspecto relacional desta concepção, nos seguintes termos:

A justiça, então, enquanto estiver preocupada com as pessoas, deve voltar sua atenção para as relações entre elas. Esse ponto de partida permite desdobramentos inéditos e nos afastará da concepção individualista da agência humana e do próprio modelo de justiça evidenciado nas concepções punitivas. (2006, p. 248, grifo nosso).

Na esteira de Gill McIvor, Édson Luís Baldan assevera que, no âmbito do Sistema de Justiça Criminal, perspectivas reparativas e restaurativas denotam um gênero, do qual é espécie, dentre outras, a mediação vítima-autor. Neste modelo, é estimulada a participação efetiva do autor da infração penal para a busca da resolução do conflito por meio da atuação de mediadores capacitados, que viabilizam a comunicação entre as partes, buscando os motivos para o cometimento da infração para que o autor reflita sobre sua conduta e seus efeitos na esfera de direitos da vítima, possibilitando que se alcance uma solução consensual quanto ao que deva ser feito para reparar o dano (BALDAN, 2013, p. 38).

No entanto, isso exige que se reflita sobre a possibilidade de superação de uma cultura da judicialização dos conflitos, arraigada no imaginário social contemporâneo, dificultando a realizabilidade de um modelo onde à polícia seja conferida autonomia de atuação, num contexto onde, igualmente, se observa a exagerada intervenção do poder judiciário em questões que não exatamente se apresentam como adequadas soluções de cunho jurisdicional, ou, noutros termos, pode encontrar solução mais satisfatória numa prestação de serviço de natureza policial. Citando Alain Renault, Baldan aduz que

Questiona-se, hoje, a necessidade persistente de um “superpoder” sacralizado detentor do monopólio da resposta penal quando, argumenta Renault, poderiam ser conferidos poderes “a instâncias modestas para organizar o frente a frente que permita reconhecer o sofrimento ilegítimo suportado pela vítima, constatar a culpabilidade e delinear o espaço da pena.” (2004, p. 168-169 apud BALDAN, 2013, p. 40).

Isso não deve conduzir a uma prática de justiça que se desenvolva totalmente fora do sistema de justiça criminal. Vale dizer,

[...] há a necessidade de que a justiça restaurativa seja acompanhada pelo Estado, ainda que minimamente, para que se evite a violação de direitos fundamentais. Contudo, isso não significa dizer que a justiça restaurativa deva ficar subordinada ao sistema de justiça criminal e se tornar apenas mais uma forma alternativa de resolução de conflitos (a exemplo dos juizados especiais criminais) etiquetada como menos importante, e sem realmente proporcionar uma forma de resolução de conflitos que modifique as bases retributivas da justiça criminal. (ACHUTTI; PALLAMOLLA, 2014, p. 444). 

Em termos práticos, este acompanhamento pode ser realizado por unidades de polícia hierarquicamente superiores àquelas incumbidas de práticas restaurativas. 

Parafraseando o criminólogo Tim Newburn, Baldan afirma que a mediação traz vantagens, como redução da reincidência, maior possibilidade de satisfação às vítimas, participação de pessoas da comunidade que de alguma forma tenham interesse na solução do conflito e menor custo pelo fato de os procedimentos serem realizados “à margem das estruturas oficiais do sistema de justiça criminal” (2013, p. 40).

Pondera, também, sobre a posição dos críticos da Justiça restaurativa que afirmam se tornarem tênues as linhas que separam os ordenamentos jurídicos civil e penal, na medida em que são focalizados preponderantemente os interesses individuais da vítima em detrimento dos interesses da sociedade que, como um todo, é atingida pela prática da infração penal (ZEDNER, 1994, p. 419-55 apud BALDAN, 2013, p. 41), bem como o aspecto da predominância, no Ocidente, de uma visão onde a punição em decorrência de prática delitiva deve se prestar necessariamente a estigmatizar seu autor, cumprindo função de prevenção geral negativa, na medida em que o submete a uma situação de “vergonha” (BRAITHWAITE, 1989, apud BALDAN, 2013, p. 41-42).

Em contraponto a estas posições, Édson Luís Baldan afirma que, no moderno Estado Democrático de Direito, não é admissível a dor pela dor. A pena com caráter meramente retributivo não cumpre adequadamente funções preventivas na contemporaneidade. Nos seguintes termos, ensina que 

[...] cremos que apenas uma concepção patológica que encontra na aflição do outro (i.e., na cega retribuição) uma irracional saciedade e única finalidade plausível da sanção penal pode desconsiderar que esta é instrumento e não fim do Direito Penal num Estado Democrático de Direito, eis que a pena posta-se finalisticamente à consecução de um estado de convivência suficientemente pacífica para continuidade da (co)existência. (BALDAN, 2013, p. 42).

Vale dizer, para a construção de uma sociedade mais justa, faz-se necessária a consolidação e aperfeiçoamento de instrumentos adequados de solução de conflitos em matéria penal como oposição à cultura de punição. Sobre isto, uma vez mais o magistério do Professor Baldan:

[...] há de ser afrontado um não desprezível óbice à consolidação e ampliação do sistema de medidas penais e processuais alternativas – potencialmente condutoras à desjudicialização e descarcerização – inclusos os programas de justiça restaurativa: a cultura do punitivismo. (2013, p. 42).

Este quadro exige novos delineamentos no que se refere a objetivos, valores e intenções da polícia para que esta concretize uma atuação que se coadune com os novos desafios que se lhe apresentam (BALDAN, loc. cit.).

Roborando o que sejam caracteres que conferem cientificidade às atividades de polícia, Baldan afirma que

Não mais a segurança do Estado ou a ordem pública como fins imediatos e/ou únicos da atuação policial(esca). Agora a missão de busca da tutela de direitos fundamentais pela via menos aflitiva possível, numa confluência desejável entre os interesses do indivíduo e as exigências de segurança da comunidade. [...] Fala-se de uma intervenção possível que afaste as agências policiais definitivamente de uma matriz autoritária e fomente a fundação de um modelo verdadeiramente democrático e participativo, adotando, conforme a propositura de Sulocki (2007), um conceito de conflito como fenômeno natural ocorrente no seio de uma sociedade pluralista, com reorientação das Polícias para uma resolução consensual e civil dos conflitos, com rejeição e em preterição à lógica de guerra. (2013, p. 43).

Desta forma, observam-se ressignificados o conflito e a atuação do sistema de justiça criminal, sobretudo da polícia. No sistema punitivo tradicional, vítima e ofensor ficam piores (ROLIM, 2006, p. 247). Num modelo de justiça restaurativa, à polícia incumbe a adoção de estratégias de policiamento, especificamente a mediação, para que todos os envolvidos no conflito criminal possam ver satisfeitos seus legítimos interesses. A adoção deste modelo não exclui a possibilidade de o ofensor ser efetivamente punido (ACHUTTI; PALLAMOLLA, 2014, p. 444).

Destarte, o que não pode prevalecer no âmbito do sistema de justiça criminal e, especificamente, da polícia, é a lógica da dor pela dor. Deve ser edificada uma cultura policial de utilização de procedimentos restaurativos que permita a ampliação e expansão destes serviços.

Sobre o autor
Bruno de Oliveira Favero

Especialista em Polícia Judiciária e Sistema de Justiça Criminal pela Academia de Polícia 'Dr. Coriolano Nogueira Cobra" São Paulo. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Osasco - UNIFIEO. Bacharel e Licenciado em Música pela Faculdade de Ciências de Osasco FAC FITO. Investigador de Polícia em São Paulo, desenvolve estudos sobre mediação de conflitos criminais como função de polícia judiciária e a práxis policial investigativa na contemporaneidade.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FAVERO, Bruno Oliveira. A atuação da Polícia Civil de São Paulo na prevenção especializada por intermédio dos Núcleos Especiais Criminais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4979, 17 fev. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55519. Acesso em: 22 dez. 2024.

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