3 PRÍNCIPIOS CONSTITUCIONAIS REGENTES DA ATUAÇÃO DO PODER PÚBLICO NO QUE SE REFERE AOS MÉTODOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS
No artigo 3°, inciso I da Constituição federal, encontra-se uma norma jurídica que estabelece princípios. O professor Dr. José Afonso da Silva intitula estes princípios como sendo relativos à organização da sociedade (2007, p. 94). Dentre eles, salientem-se os princípios de convivência justa e o princípio da solidariedade. Deste modo, é possível afirmar que os princípios expressam valores relevantes à sociedade.
Referidos valores devem conduzir o Estado e a sociedade civil a buscar resolver seus problemas de forma consensual. Pois, no Estado Democrático de Direito, a cidadania pode ser entendida também como convivência harmoniosa da comunidade.
No que se refere à solução de conflitos, é possível afirmar que a utilização de métodos alternativos aumenta o acesso substancial à justiça, bem como amplia o respeito à dignidade da pessoa humana. Isso possibilita que se edifique uma cultura de paz.
3.1 Princípio da dignidade da pessoa humana
Desde Pico de La Mirandola até nossos dias, muito se escreveu sobre a dignidade da pessoa humana. Valor fundante do Estado Democrático de Direito, tem como base a liberdade e o respeito. Para uma maior compreensão deste princípio, recuperamos a fala dos professores Doutores Eduardo Carlos Bianca Bittar e Guilherme Assis de Almeida, que assim discorrem:
O ser humano é aquele que possui a liberdade, que tem a possibilidade de, ao menos teoricamente, determinar seu “dever ser”. É essa possibilidade que deve ser levada em conta, respeitada, considerada. A essência da dignidade do ser humano é o respeito mútuo a essa possibilidade de escolha. A especificidade do ser humano é sua liberdade. A dignidade a ele inerente consistirá no respeito a essa possibilidade de escolha. (2011, p. 562).
Na Constituição federal de 1988, a dignidade da pessoa humana é estabelecida no artigo 1°, inciso III, como fundamento do Estado Democrático de Direito. Toda atividade do poder público deve ter na dignidade da pessoa humana o seu limite intransponível.
3.2 Princípio da pacificação social
Na esteira de Raymond Aron, o filósofo italiano Norberto Bobbio define a chamada paz de satisfação como sendo aquela que é “o resultado da aceitação consciente, como só pode ser a paz instituída entre partes que não têm mais reivindicações recíprocas a apresentar.” (2003, p. 156, grifo nosso).
Bobbio ensina que os adeptos do pacifismo não preconizam que a paz seja condição suficiente para o exercício pleno da vida. No entanto, para os pacifistas, a guerra jamais pode ser entendida como alternativa. Fazendo alusão a Kant, o professor Norberto Bobbio afirma que “o valor supremo que uma bem ordenada convivência de indivíduos deveria realizar não é a paz, mas a liberdade. A paz é somente condição preliminar para a realização de uma livre convivência.” (2003, p. 157).
Quando as partes não têm mais reivindicações recíprocas a apresentar, se observa um cenário de pacificação social. Este estado de coisas se atinge quando as partes envolvidas no conflito se ouvem. Vale dizer, participam efetivamente da busca de solução para os seus problemas. Isso aumenta a confiança, viabiliza ganhos mútuos e direciona o olhar dos envolvidos de maneira prospectiva.
No preâmbulo da Constituição federal, encontra-se a disciplina jurídica sobre a solução pacífica de conflitos na ordem interna. In verbis:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bemestar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil. (grifo nosso).
No que se refere à atuação do Estado nas infrações penais de competência do Juizado Especial Criminal (JECRIM), atualmente se observa a prestação jurisdicional vinculada à vontade da vítima num elevado porcentual (PEDROSA, 2008, p. 1). Isso, em alguma medida, se relaciona à ideia de pacificação por conciliação. Este vocábulo aparece no texto constitucional com um significado que reorienta o ordenamento jurídico brasileiro no sentido de que, “para essas infrações menores, houvesse possibilidade de pacificação, sem a força de uma sentença de mérito” (PEDROSA, 2008, p. 1). E, para materializar essa prestação de serviço público, o delegado de polícia exerce papel fundamental na medida em que “toda a estrutura doutrinária criada para os Juizados Especiais Criminais prevê esta atuação na fase pré-processual pela Polícia Judiciária.” (BLAZECK, 2013, p. 168).
3.3 Princípio do acesso à justiça
Considerando o aspecto formal, é possível afirmar que o acesso à justiça se caracteriza pela possibilidade de as pessoas submeterem à apreciação do poder público os seus problemas. Este fenômeno é denominado justicialização. É dizer que muitas são as portas de entrada às instituições do sistema de justiça criminal. Todavia, isso não implica, necessariamente, atendimento efetivo das demandas das pessoas, pois o reduzido quadro de servidores, burocracia e atendimentos ineficazes, caracterizados pela falta de tratamento adequado ao conflito, comprometem o resultado dos serviços (SALES; DAMASCENO, 2013, p. 133).
No tocante às atividades de polícia judiciária, v.g., o volume excessivo de ocorrências que são formalizadas nos distritos policiais, exigindo providências, dificulta que se oferte à população uma adequada prestação de serviços. Necessária, então, a criação de espaços de diálogo para a implementação de mudanças no atendimento das pessoas envolvidas em conflitos. Juan Gómez, citado por Lilia Maia de Morais Sales e Maria Livia Moreira Damasceno, afirma:
Sou partidário de que se instalem nas delegacias do Corpo Nacional de Polícia, nos quartéis da Guarda Civil e nas repartições das polícias locais, casas de mediação, compostas por servidores policiais formados especificamente em matéria de mediação. Trata-se de evitar que toda atuação policial com conteúdo criminal seja automaticamente remetida ao juizado correspondente. Isto não tem sentido algum e contribui para a obstrução do poder judiciário, pois temos que nos debruçar sobre assuntos criminais muito complexos, que exigem todos os nossos esforços, e paralelamente, e mesmo simultaneamente, temos que nos dedicar a julgar brigas de vizinhos e outros assuntos similares. É como utilizar engenheiros para trocar tomadas ou trocar lâmpadas.[1] (Tradução de Bruno de Oliveira Favero).
Os Núcleos Especiais Criminais, por intermédio de servidores capacitados, desenvolvem conciliação e mediação apresentando soluções efetivas para as pessoas, pois, nestas unidades de polícia, elas são ouvidas em seus reais interesses por profissionais versados em técnicas como a escuta ativa. Neste aspecto, é possível afirmar, então, sobre o acesso substancial à justiça, consubstanciado no efetivo atendimento das pessoas envolvidas em conflitos, ofertando-lhes a possibilidade real de resolução para seus problemas. Ou seja, possibilidade de acesso à ordem jurídica justa. "Es como utilizar ingenieros para cambiar enchufes o cambiar bombillas.” (GÓMEZ, 2009, p. 115 apud SALES; DAMASCENO, 2013, p. 134, grifo nosso.)
4 FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICO-CIENTÍFICA DA ATUAÇÃO DA POLÍCIA CIVIL NA UTILIZAÇÃO DOS MÉTODOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS
No ordenamento jurídico brasileiro, ainda não se encontra uma legislação que abarque, em sua totalidade, os fundamentos da justiça restaurativa e a mediação realizada pela polícia, especificamente tratada neste trabalho. Isso limita a atuação do sistema de justiça criminal, sobretudo da polícia. Ocorre, no entanto, que, ao se analisar referidos fundamentos, chega-se à conclusão de que sua aplicação aos casos concretos pode viabilizar a justiça de modo mais efetivo, respeitando, verdadeira e incondicionalmente, os direitos fundamentais de todos os envolvidos em conflitos criminais. Vale dizer, se o sistema penal tradicional se apresenta como insuficiente para tratar dos crimes graves, ao mesmo tempo em que se mostra desproporcional para com infrações penais de menor potencial ofensivo (ROLIM, 2006, p. 233), o que devem fazer os operadores do direito, mormente os delegados de polícia, para que, nestes casos, consigam realmente prestar auxílio às partes para que encontrem a solução mais adequada?
Neste aspecto, analisaram-se as bases epistêmicas do direito, verificando-se como a legislação positivada, de algum modo, pode impedir a transformação social ou mesmo não acompanhá-la. Sobre isto, afirma Eduardo Novoa Monreal que
[...] enquanto a vida moderna apresenta, em nossos países, um curso extremamente rápido, determinado pelo progresso científico e tecnológico, pelo crescimento econômico e industrial, pelo influxo de novas concepções sociais e políticas, bem como por modificações culturais, o Direito tende a preservar formas que, em sua maior parte, se originam nos séculos XVIII e XIX, quando não no Direito da Antiga Roma, manifestando-se, assim, inteiramente, incapaz de adequar-se eficientemente às aspirações normativas da sociedade atual (1988, p. 10-11, grifo nosso).
Isso naturalmente impede que importantes conquistas teóricas no campo da resposta às infrações penais como, v.g., a Justiça restaurativa, sejam, em sua inteireza, manejadas pela polícia judiciária.
O que se observa neste quadro são as injustiças em potencial. E, como demonstrado neste trabalho, a composição civil, em seu sentido mais amplo possível, é que pode ofertar melhores resultados aos envolvidos em conflitos criminais, na medida em que são substancialmente mais justos no Estado Democrático de Direito.
De lege ferenda, conjecture-se sobre balizas que confiram equilíbrio e justeza ao fazer policial, especificamente no que se refere à utilização de meios adequados de solução de conflitos. É dizer que todos os envolvidos numa ofensa que atinja direitos terão oportunidade de percepção sensória com relação aos aspectos da justiça ou injustiça que estarão corporificados, v.g., num termo de composição preliminar. De se observar, então, os componentes estéticos relativos aos resultados dos trabalhos no que se refere, especificamente, à vítima e ofensor nas infrações de menor potencial ofensivo, bem como o caráter heurístico deste trabalho no que tange aos servidores policiais (CARNEIRO, 2002, p. 18). Neste passo, a fala da professora Maria Francisca Carneiro, analisando traços poéticos existentes não apenas nas artes, mas também nas ciências e nas composições do direito.
In verbis:
[...] quantas vezes, não apenas no contexto da arte, mas também no texto da ciência e mais especificamente nas composições do direito percebemos, além da mera racionalidade, a presença de certos tipos de simetria e proporcionalidade refletindo, muitas vezes, uma possível beleza na formulação da justiça [...] Quer seja pela harmonia, ritmo e equilíbrio dos textos e das decisões; quer seja pelas proporções entre conteúdo, método e resultados formais; ou quer seja pelo virtuosismo idiossincrático das inovações pretorianas, não se pode negar a presença do belo em muitos atos da justiça [...] Se as diferentes escolas na história da arte refletem as respectivas concepções sociais da beleza, é bem de se ver que essa mesma estética pode estar, com efeito, no direito, sob os véus da lei, das formas, dos ritos e das decisões. (CARNEIRO, 2002, p. 19).
Desta forma, a inventividade e criatividade dos operadores do direito podem materializar a efetiva proteção de direitos num contexto legislativo que se mostra deficitário. Karl Larenz, aduzindo a uma discussão metodológica atual no campo da ciência do direito, refere-se, e.g., à jurisprudência dos interesses. Esta possui conteúdo reconhecidamente axiológico. O conhecimento dos casos concretos é que deve pautar as decisões onde são apreciados os interesses dos envolvidos (LARENZ, 1997, p. 163). A respeito do que seja este atuar valorativo dos encarregados da aplicação da lei, na esteira de Reinhold Zippelius e Nicolai Hartmann, Karl Larenz assim se pronuncia:
A bússola das valorações do juiz (ou dos agentes da Administração) vê-a Zippelius “no ethos jurídico dominante na comunidade”, nas concepções dominantes de justiça. O ethos jurídico dominante não consiste numa soma de processos ao nível da consciência, mas no conteúdo de consciência de uma multiplicidade de indivíduos; é “espírito objetivo”, no sentido da teoria dos estratos de Nicolai Hartmann. Fontes de conhecimento desse “ethos jurídico dominante” são, antes do mais, os artigos da Constituição relativos a direitos fundamentais, outras normas jurídicas, e ainda “proposições jurídicas fundamentais da atividade jurisprudencial e da
Administração, os usos do tráfego e as instituições da vida social”; um “uso tradicional”, mas apenas “quando constitui expressão da concepção valorativa dominante.” (1997, p. 173, grifo nosso).
Numa sociedade onde os valores sofrem mutações muito rapidamente,
“o ethos jurídico dominante não dá resposta unívoca a muitas questões” (LARENZ, 1997, p. 174).
Isso torna extremamente desafiadora a atividade da qual promanam, v.g., as proposições jurídicas fundamentais da Administração, especificamente da polícia.
Conquanto este seja o quadro atualmente, existe um arcabouço normativo que confere esteio à atuação da Polícia Civil no manejo de meios adequados de solução de conflitos. É o que se pretende verificar.
4.1 Atribuições da autoridade policial previstas na Lei nº 9.099/1995
A Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, com alterações estabelecidas pela Lei nº 11.313, de 28 de junho de 2006, constitui a materialização da previsão constitucional do artigo 98, inciso I, que dispõe sobre a criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Conforme a doutrina, a lei vem com o objetivo de incentivar soluções alternativas ao processo onde se busca o acordo entre as partes (LIMA JUNIOR; AGOSTINI, 2013, p. 28).
Os procedimentos previstos na lei são menos burocráticos, conferindo mais rapidez à prestação jurisdicional. Os princípios informadores são a oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade. Com efeito, dispõem os artigos 2º e 62:
Art. 2° O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação.
[...]
Art. 62. O processo perante o Juizado Especial orientar-se-á pelos critérios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade.
Sobre a possibilidade de o delegado de polícia atuar como conciliador e/ou mediador, existem duas posições.
1ª Posição. Não podem exercer essas funções por falta de previsão legislativa, por falta de capacitação técnica em mediação de conflitos, pelo excessivo volume de trabalho atualmente sobrecarregando os servidores policiais, inclusive, as autoridades policiais, bem como em razão da incompatibilidade das atribuições do cargo de delegado de polícia com os misteres conciliatórios. (QUEIJO, 2013, p. 193203).
De se observar, por oportuno, que a professora Maria Elizabeth Queijo, conquanto demonstre cepticismo em relação à atuação do delegado de polícia no que se refere à mediação de conflitos criminais, destaca a importância dos projetos de lei (Projetos de Lei nº 5.117/2009 e 1.028/2011) que visam modificar a atual disciplina jurídica relativa às infrações penais de menor potencial ofensivo, estabelecendo atribuições conciliatórias aos delegados de polícia. Para esta autora, “a composição preliminar dos envolvidos, próxima ao fato, se bem realizada, pode realmente exercer a prevenção de delitos mais graves.” (QUEIJO, 2013, p. 196, grifo nosso).
No entanto, esta autora conclui que a solução de conflitos criminais por intermédio de métodos alternativos depende da existência de lei que regulamente o procedimento (QUEIJO, 2013, p. 203).
No mesmo sentido, entretanto, com argumentação jurídica diversa, a oposição do Ministério Público, que, por intermédio de sua Subprocuradoria-Geral de Justiça Jurídica, se manifestou contrário à realização de composição preliminar de conflitos pelo delegado de polícia, em razão de referido procedimento ser ilegal. Pois, consoante disposição do artigo 74 da Lei nº 9.099/95, exige-se, para que o ato seja apto a produzir os efeitos jurídicos previstos na lei, a participação do membro do Ministério Público (BARROS FILHO, 2013, p. 207).
Estabelece o artigo 74, bem como o seu parágrafo único, que:
Art. 74. A composição dos danos civis será reduzida a escrito e, homologada pelo juiz mediante sentença irrecorrível, terá eficácia de título a ser executado no juízo civil competente.
Parágrafo único. Tratando-se de ação penal de iniciativa privada ou de ação penal pública condicionada à representação, o acordo homologado acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação.
Isso embasa a conclusão de que não há, no ordenamento jurídico, previsão legal estabelecendo a obrigatoriedade da presença do promotor de justiça nas conciliações aludidas no artigo 60 da Lei dos Juizados Especiais Criminais, o que também refuta a ideia de as composições mediadas pelo delegado de polícia ferirem o princípio da legalidade (BARROS FILHO, 2013, p. 214).
2ª Posição. O professor Mário Leite de Barros Filho procede a uma minuciosa análise sobre a oposição do Ministério Público ao procedimento conciliatório realizado pela Polícia Civil, especificamente, pelos NECRIMs. Afirma ser equivocado tal entendimento pelo fato de o procedimento realizado nos NECRIMs sempre contar, obrigatoriamente, com a presença de um representante da OAB, o que garante a inviolabilidade de direitos fundamentais, bem como ser levado a efeito apenas nas infrações penais cuja ação penal seja publica condicionada à representação ou privada (BARROS FILHO, 2013, p. 211-212). Vale dizer, engloba um número considerável do que sejam as chamadas infrações penais de menor potencial ofensivo, desta maneira conceituadas no artigo 61 da Lei nº 9.099/95. In verbis:
Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.
Desta forma, não se realiza a conciliação nos NECRIMs quando o crime for de ação penal pública incondicionada (BARROS FILHO, op. cit., p. 212).
Destaca ainda este autor que os procedimentos conciliatórios sempre serão homologados pelo juiz, com prévia apreciação do membro do Ministério Público (BARROS FILHO, op. cit., p. 211).
Sobre o tema, o professor Barros Filho também ensina que
É importante registrar que o fundamento de validade da atribuição do delegado de polícia como conciliador de pequenos desentendimentos está no caput do art. 60, da Lei nº 9.099/1995. Sem dúvida, o mencionado dispositivo, ao permitir a conciliação de pequenos conflitos por pessoas que não integram o quadro do Poder Judiciário, criou a oportunidade de o delegado de polícia exercer atividade dessa natureza. (2013, p. 213, grifo do autor).
Igualmente, preconizando a possibilidade jurídica de o delegado de polícia atuar como mediador de conflitos, a disposição legal do caput do artigo 60 da Lei nº 9.099/1995 (BLAZECK, 2013, p. 169). Referido dispositivo estabelece que:
Art. 60. O Juizado Especial Criminal, provido por juízes togados ou togados e leigos, tem competência para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações de menor potencial ofensivo, respeitadas as regras de conexão e continência.
Analisando este entendimento, o magistério de Luiz Maurício Souza Blazeck, para quem
é possível inferir que o referido diploma legal, ao permitir a conciliação de pequenos conflitos por pessoas que não integram o quadro do poder judiciário, criou a oportunidade para que o delegado de polícia que atua na fase pré-processual assuma também o papel de conciliador nos crimes de menor potencial ofensivo que dependam de Representação Criminal ou do oferecimento de Requerimento específico, precursor da queixa-crime, para os crimes de Ação Penal Privada, formalizando o acordo em Termo de Composição Preliminar para instrumentalizar o Termo Circunstanciado. (2013, p. 169-170).
Este autor alude, igualmente, à disciplina jurídica autorizadora estabelecida em Resolução da Secretaria de Segurança Pública. Neste passo, afirma que
Isto encontra amparo na Resolução SSP nº 233, de 09 de setembro de 2009, a qual, em cumprimento aos princípios constitucionais da eficiência e da legalidade e, considerando que os órgãos policiais devem desempenhar suas funções com estrita obediência às atribuições rigidamente fixadas pelo art. 144 da Constituição Federal de 1988, regulamentou a elaboração do Termo Circunstanciado, previsto no art. 69, da Lei nº 9.099/95, exclusivamente pelo delegado de polícia. (BLAZECK, 2013, p. 170).
Cumpre salientar, também, que os procedimentos realizados nos NECRIMs vão ao encontro da política pública de tratamento adequado de conflitos, instituída por meio da Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010 (CAPEZ; ARGACHOFF, 2013, p. 65). O Poder Judiciário atualmente lida com excessivo volume de trabalho, o que torna ainda mais moroso o trabalho de prestação jurisdicional, num contexto onde a sociedade clama por justiça feita de modo mais célere (Ibid., p. 64).
Nos seguintes termos, o professor Barros Filho discorre sobre o apoio do Poder Judiciário ao projeto:
É relevante, ainda, consignar que a composição civil preliminar, formalizada no Núcleo Especial Criminal, conta com o apoio do Poder Judiciário, que tem declarado a extinção da punibilidade de autores de delitos de menor potencial ofensivo, com fundamento nos mencionados termos de conciliação. (2013, p. 212, grifo do autor).
É de se salientar, ainda, que a implementação dos Núcleos Especiais Criminais utiliza as estruturas já existentes na Polícia Civil de São Paulo, que diuturnamente está à disposição da coletividade para lhe ouvir em seus problemas. Isso credencia o delegado de polícia ao desempenho de funções conciliatórias, na medida em que seu trabalho constitui uma natural capacitação técnica para esses misteres (CAPEZ; ARGACHOFF, op. cit., p. 64).
Confirmando o entendimento de que o direito não pode limitar as transformações sociais, Capez e Argachoff afirmam que “O direito tem que deixar de ser visto como um sistema hermeticamente fechado, passando a buscar soluções alternativas de pacificação social” (2013, p. 65).
Dessarte, na medida em que constituem estratégia adequada de policiamento, voltados à prevenção especializada por meio da mediação de conflitos, os NECRIMs desempenham funções que denotam os anseios de uma atividade de polícia lastreada no interesse público, assegurando a todos o exercício de direitos, em consonância com sólida fundamentação teorética referente à atuação policial na contemporaneidade.
4.2 Análise interdisciplinar da Lei nº 12.830/2013 e dos fundamentos epistemológicos da atividade de polícia
A Lei nº 12.830, de 20 de junho de 2013, dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia. Para as finalidades deste trabalho monográfico, adotou-se a doutrina que reconhece a distinção entre funções de polícia judiciária e apuração de infrações penais (SOUZA NETO, 2007; COSTA, 1999; FERREIRA, 2013; VALENTE, 2014; PEREIRA, 2015). Vale dizer, nesta, observa-se a chamada polícia investigativa. Naquelas, as atividades de polícia, que não a investigação criminal, realizadas com exclusividade no âmbito dos Estados pelas polícias civis[2]. Esta opção foi feita sobretudo pelo fato de apenas as infrações penais de menor potencial ofensivo de autoria conhecida serem encaminhadas para os núcleos especiais criminais.
Cumpre ressaltar preliminarmente alguns aspectos acerca da distinção entre o que sejam polícia judiciária e apuração de infrações penais. Vale dizer, conforme interpretação literal, tratam-se de entidades distintas.
Com efeito, estabelece o artigo 2º que “As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado” (grifo nosso).
De se notar que o legislador ordinário acompanha o constituinte na distinção do que sejam, respectivamente, polícia judiciária e apuração de infrações penais.
Recupera-se, neste ponto, os dizeres do dispositivo constitucional:
Art. 144. [...].
[...]
§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira,
incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. (grifo nosso).
Numa interpretação literal, se observa que funções de polícia judiciária e apuração de infrações penais são entidades ontologicamente distintas. Neste sentido, embora em contexto diverso, também a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO. DIREITO PROCESSUAL PENAL. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO DEMONSTRADA E NÃO COMPROVADA. INQUÉRITO POLICIAL. AÇÃO PENAL. NULIDADE. INOCORRÊNCIA. PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO. INQUÉRITO POLICIAL. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGALIDADE.
[...] função de polícia judiciária – qual seja, a de auxiliar do Poder Judiciário –, não se identifica com a função investigatória, isto é, a de apurar infrações penais, bem distinguidas no verbo constitucional, como exsurge, entre outras disposições, do preceituado no parágrafo 4º do artigo 144 da Constituição Federal, verbis: “§ 4º às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.” REsp 332.172-ES, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, julgado em 24/05/2007. (grifo nosso).
Isso se estende, também, para a própria polícia civil. É dizer que o órgão polícia civil não pode ser confundido com polícia judiciária. Esta consiste num conjunto de funções desempenhadas, consoante previsão constitucional, no âmbito dos estados, pelos órgãos policiais civis. Isso não muda o fato de apenas as polícias civis dirigidas por delegados de carreira poderem exercer as funções de polícia judiciária, bem como de polícia investigativa (FERREIRA, 2013).
Esta distinção, que se depreende da leitura das normas, permite contextualizar as atividades de polícia desempenhadas pelos Núcleos Especiais Criminais.
Conquanto a lei estabeleça que as funções de polícia judiciária sejam de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado, cumpre destacar que este conteúdo não abarca em sua totalidade o que seja o mandato policial em decorrência do exercício de funções de polícia judiciária. Sobre o assunto, nos socorrem os trabalhos do professor Manuel Monteiro Guedes Valente. Este autor português escreve “para todas as polícias portuguesas, europeias e de países terceiros, em especial para os Países de Língua Oficial Portuguesa, para toda a comunidade científica e universitária, e, ainda, para a sociedade em geral” (VALENTE, 2014, p. 29, grifo nosso), com o objetivo de estabelecer parâmetros de cariz teorético às atividades de polícia entendidas como objeto de estudo de uma conjecturável ciência policial.
Sobre isto, afirma que
A Teoria Geral do Direito Policial deve ter por objeto de estudo toda a atividade jusinternacional, jusconstitucional, e jusordinária de polícia [de segurança, administrativa e criminal] de modo à criação de uma doutrina fundante de uma ciência juspolicial que se encontre e manifeste em toda e qualquer Polícia. (VALENTE, 2014, p. 26, grifo nosso).
Especificamente sobre a polícia judiciária, este autor afirma que
[...] a Lei Orgânica da Polícia Judiciária caracteriza-a como “corpo superior de polícia criminal auxiliar da administração da justiça” [...], procurando afastar a PJ da vertente policial de ordem e tranquilidade pública e administrativa e denominando-a de auxiliar da administração da justiça, que lhe cumpre prosseguir desde logo na prevenção da criminalidade e não apenas na repressão. (Ibid., p. 56, grifo nosso).
Vale frisar, enquanto auxiliar da administração da justiça, ao órgão de polícia incumbido de funções de polícia judiciária cabe, igualmente, a prevenção criminal.
De se notar que, em Portugal, diferentemente de São Paulo, a legislação denomina polícia judiciária o órgão responsável por essas funções.
No Brasil, são chamadas polícias civis os órgãos incumbidos de funções de polícia judiciária e apuração de infrações penais.
A exceção é o estado do Mato Grosso do Sul, que denomina Polícia Judiciária Civil o órgão de polícia criminal com as aludidas atribuições, o que, no dizer de Daniel Barcelos Ferreira, constitui impropriedade técnica (FERREIRA, 2013).
Esta impropriedade apontada na doutrina se deve ao fato de a terminologia polícia judiciária comportar significados distintos. No Código de Processo Penal, artigo 4º, a expressão polícia judiciária é utilizada indicando o órgão, ou seja, faz referência ao aspecto subjetivo, ao sujeito polícia judiciária, no caso do Estado de São Paulo, a Polícia Civil (PEREIRA, 2015, p. 33). Já na Constituição federal (art. 144, § 1º, inciso IV e § 4º) a expressão é utilizada em seu aspecto objetivo, vale dizer, faz alusão à polícia judiciária enquanto atividade (PEREIRA, loc. cit.).
Especificamente no que se refere à distinção entre polícia judiciária e apuração de infrações penais, é de se observar o entendimento do professor Eliomar da Silva Pereira. No interior de uma classificação mais ampla, realizada por Denilson Feitosa, assim se pronuncia aquele mestre:
Denilson Feitosa (2008, p. 162 ss.) apresenta, de forma sucinta, uma outra classificação, que separa a polícia em administrativa (que tem por objeto limitações impostas a bens jurídicos); de segurança (destinada a manutenção da ordem jurídica com medidas preventivas); e judiciária (como polícia de apoio ao judiciário no cumprimento de suas ordens), distinguindo dessa a polícia de investigação, ou investigativa (ou polícia criminal, como preferimos, destinada à apuração de infrações penais e sua autoria). Esta, sem dúvida, parece ter sido uma distinção feita na Constituição Federal, ao tratar das atribuições da Polícia Federal, separando a função de polícia de investigação (art. 144, § 1º, inc. I) da função de polícia judiciária (inc. IV, do mesmo artigo e parágrafo), bem como ao incumbir às polícias civis “as funções de polícia judiciária [sendo uma delas, acreditamos, a desempenhada pelos delegados de polícia dos NECRIMs] e a apuração de infrações penais” (§ 4º) de forma especificadamente separada. (PEREIRA, 2015, p. 34, em destaque no original).
Para uma contextualização das atividades de polícia desempenhadas pela Polícia Civil de São Paulo por intermédio dos NECRIMs, faz-se pertinente analisar uma outra distinção, a saber, a existente entre polícia administrativa e polícia judiciária. Considerando-se a complexidade da realidade em que se efetiva o trabalho policial na sociedade contemporânea, o conteúdo semântico das bases conceituais destas atividades deve ser revisto. Nestes termos, o cientista policial Eliomar da Silva Pereira, analisando o tema, conclui que
conforme uma compreensão mais atual dessas polícias [polícia administrativa e polícia judiciária], observa-se que, de uma forma indireta, nem a polícia administrativa deixa de reprimir os ilícitos que visa prevenir, nem a polícia judiciária deixa de prevenir ilícitos que deve reprimir. [Neste caso a atuação dos NECRIMs materializa esta prevenção]. A distinção, hoje, parece estar mais na natureza do ilícito, de tal forma que, sendo este criminal (não meramente administrativo), cumpre à polícia judiciária agir, [e aqui vale observar que o autor utiliza a expressão polícia judiciária em seu sentido objetivo, qual seja, atividade de polícia], seja preventiva ou repressivamente. E nos casos em que, sendo o ilícito igualmente administrativo e criminal, ambas as polícias atuarão tanto preventiva quanto repressivamente. Assim, parece-nos que a melhor distinção entre polícia judiciária e polícia administrativa está nas implicações que a atividade tem para o sistema jurídico-penal, sendo assim uma tipologia em sentido objetivo, não representando expressões que designam órgãos (sentido subjetivo). (PEREIRA, 2015, p. 33).
Como exemplos de órgãos é possível citar a Polícia Civil de São Paulo e a Polícia Federal do Brasil. Corporificam órgãos de polícia criminal. Vale dizer, trata-se dos sujeitos que, no mundo fenomênico, realizam as atividades de polícia.
O traço característico comum, conforme se observa numa análise científica da atividade de polícia, são as atribuições de prevenção criminal cometidas às polícias civis. No Estado Democrático de Direito, é pertinente notar que a polícia pode desempenhar estas funções valendo-se de métodos adequados de solução de conflitos, i.e., valer-se de procedimentos outros que constituem minúcias da discricionariedade da atividade de polícia para consecução de seus misteres. Sobre o tema, é esclarecedora a fala da professora Jacqueline Muniz:
É interessante observar que a conceituação de polícia traz consigo um resultado curioso no que diz respeito ao relacionamento entre a governança democrática e o alcance da ação policial, que contraria o senso comum. Ao contrário do que se imagina, o círculo virtuoso da polícia torna-se possível e factível à medida que avançam os processos de constituição, expansão e consolidação dos direitos civis, políticos e sociais. A garantia dos direitos constituídos e o reconhecimento de novos direitos, difusos ou emergentes, justificam, ampliam, adensam e atualizam regras de ação e procedimentos policiais adiante, simultaneamente ou na esteira de sua expressão legal. Ensejam espaços e formas de controle e participação social na administração do Estado, induzindo a transparência que propicia o aperfeiçoamento das práticas policiais. Essas dinâmicas de transformação social vivificam os contornos do mandato policial, levando a que surjam novas funções e atribuições para as polícias que, neste contexto, têm cada vez mais o que fazer e insumo para fazê-lo cada vez melhor. (MUNIZ; PROENÇA JÚNIOR, 2014, p. 498, em destaque no original, grifo nosso).
Isso permite afirmar que os Núcleos Especiais Criminais da Polícia Civil de São Paulo, atuando na mediação de conflitos, conferem concreção à doutrina que apregoa a atualização de procedimentos policiais a despeito de uma exigível base legal, pois a referida atuação policial reafirma e protege direitos.
Ademais, a legalidade absoluta constitui um entrave às ações policiais sérias, na medida em que afasta um possível embasamento a um conceito de polícia ancorado em bases epistêmicas. De se analisar, quanto a isto, o pensamento de Manuel Monteiro Guedes Valente. In verbis:
A ciência policial deve emergir de um pensar epistémico de modo a promover um conhecimento racional, mas não subordinado ao primado da legalidade absoluta. A ciência policial, como ciência interdisciplinar da comunicabilidade humana e ciência intersubjectiva centrada em um conhecimento, implica que se centre no estudo da actividade de Polícia. Este estudo deve desenvolver-se com o fim de melhorar aquela actividade e de promover o bem-estar e a qualidade de vida a toda a comunidade através de um método e uma linguagem multidisciplinares, mas dotados de (alguma) autonomia de modo a concretizar convergência e integração científica em ininterrupta continuidade crítica e divergente. (VALENTE, 2010b, p. 83-84, grifo nosso).
Nestes termos, não é possível que a atividade de polícia, sobretudo a mediação de conflitos criminais, prescinda dos aportes teóricos da filosofia, da sociologia, da psicologia, da criminologia e, de algum modo, de todos os conhecimentos que legitimem sua atuação num contexto de reconhecimento por parte dos cidadãos, que observam o trabalho policial aumentando, igualmente, a qualidade de vida das pessoas.
Sobre a interdisciplinaridade, o professor Welder de Oliveira Almeida diz que esta
pode ser vislumbrada como o patamar em que a colaboração entre os díspares ramos do saber ou entre os campos heterogêneos de uma mesma ciência conduz a interações verdadeiras em sua essência, ou seja, resulte de uma peculiar e precisa reciprocidade nas trocas, de tal forma que, ao final do processo de combinação/interação/ligação, cada disciplina experimente maior enriquecimento. (2010, p. 134).
Aduz, também, seguindo Hector Ricardo Leis, sobre uma possível conceituação a partir de um viés brasileiro, dizendo que “o conceito estaria associado a uma cultura científica brasileira emergente, que privilegia as dimensões humanas e afetivas, expressando uma lógica subjetiva à procura do próprio ser.” (ALMEIDA, 2010, p. 134).
Estas ponderações vão ao encontro dos objetivos de uma atuação policial para os tempos atuais, sobretudo, no concernente à mediação de conflitos.
Este entendimento possibilita a apropriação de elementos de uma base conceitual acerca da polícia judiciária consubstanciados na ideia de atividade material e atividade funcional de polícia. Valente, na esteira de Karl Zbinden, propala a existência destas distintas atividades. Vale dizer, a funcionalidade de polícia judiciária afere-se da dinâmica real – exercício da função – e não da dinâmica orgânica e formal, sendo que esta garante a legitimidade daquela (VALENTE, 2011b, p. 49). Deste modo, é possível assertar que o substrato material[3] imanente às práticas policiais no contexto específico da mediação de conflitos criminais é legitimado, na medida em que há a previsão constitucional de uma polícia de segurança lato sensu, da qual faz parte, na ordem jurídica interna do Brasil, a saber, a polícia judiciária[4].
Desta feita, cumpre notar que não há fundamento para o receio de atividades que passem ao largo da lei, pois é de se observar, também, que é parte do mandato policial a responsabilização. Ou seja, sempre que uma norma for violada em detrimento de qualquer pessoa, existe a possibilidade de responsabilização nas esferas cível, administrativa (disciplinar) e criminal (VALENTE, 2014, p. 29).
Na esteira de Karl Popper, o professor Valente discorre sobre o falibilismo como sendo, também, uma possível categoria epistêmica da ciência policial. Vale dizer, mesmo arrimada em uma visão holística sobre os instrumentos viabilizadores de uma prestação de serviço de excelência, em algum momento podem ser observadas falhas. Isso permite constante refinamento das atividades de polícia, materializando a eficácia, eficiência e efetividade da prestação de serviços policiais, na medida em que se submete estes serviços a constantes avaliações de seus resultados, sempre propondo questionamentos às estratégias adotadas (VALENTE, 2010b, p. 83).
As funções de polícia judiciária ligadas à prevenção especializada por intermédio da mediação de conflitos são transversais e interdisciplinares. Na sociedade atual, “a atividade de polícia como essência material que incorpora vários saberes – sociais, jurídicos, económicos, filosóficos, políticos – ganha dimensão de objeto científico” (VALENTE, 2011b, p. 47). Isso exige da atividade policial de mediação de conflitos criminais abertura ao diálogo existente entre os saberes, suporte de atuação na proteção e garantia de direitos, bem como consciência do falibilismo enquanto pressuposto epistemológico de uma atividade de polícia que se pretenda desenvolvida em bases científicas.
Só com este pensar epistémico ou conhecimento racional orientado pela legalidade e matrizes não absolutas da ciência – conscientes da falibilidade – se pode criar a ciência policial. (VALENTE, 2010b, p. 83-84).
Deste modo, não é desarrazoado pensar numa base transdisciplinar para as atividades de polícia na contemporaneidade. Pois, a partir das aludidas interações entre os saberes num contexto de superação do paradigma cartesiano da ciência, é possível pensar numa “etapa superior, que não se contentaria em atingir interações ou reciprocidades entre pesquisas realizadas, mas que situaria essas ligações no interior de um sistema total, sem fronteiras entre as disciplinas” (ALMEIDA, 2010, p. 135), possibilitando uma atividade de polícia que seja realmente efetiva em face da complexidade de determinados problemas advindos dos conflitos humanos nos nossos tempos.
Estas funções naturalmente devem ser desempenhadas, utilizando terminologia do professor Manuel Monteiro Guedes Valente, em coadjuvação ao Poder Judiciário, especificamente com observância, por exemplo, dos princípios informadores da política pública de tratamento adequado de conflitos. No entanto, a Lei n° 12.830/2013 reconhece a doutrina que confere caráter jurídico à carreira de delegado de polícia. Vale dizer, confere instrumentos a esta autoridade que reforçam sua autonomia no desempenho de suas atribuições. Com efeito, dispõe o artigo 3º: “O cargo de delegado de polícia é privativo de bacharel em Direito, devendo-lhe ser dispensado o mesmo tratamento protocolar que recebem os magistrados, os membros da Defensoria Pública e do Ministério Público e os advogados”, pois desempenham, no campo específico de sua atuação, atividade jurídica (CAPEZ; ARGACHOFF, 2013, p. 61).
No âmbito de São Paulo, é de se observar, sobre o tema, a disciplina jurídica instituída pela Constituição Estadual, modificada pela Emenda Constitucional n° 35, de 14 de março de 2012. A nova redação é a seguinte:
Artigo 140. [...]
[...]
§ 2º – No desempenho da atividade de polícia judiciária, instrumental à propositura de ações penais, a Polícia Civil exerce atribuição essencial à função jurisdicional do Estado e à defesa da ordem jurídica.
§ 3º – Aos Delegados de Polícia é assegurada independência funcional pela livre convicção nos atos de polícia judiciária.
§ 4º – O ingresso na carreira de Delegado de Polícia dependerá de concurso público de provas e títulos, assegurada a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, dois anos de atividades jurídicas e observando-se, nas nomeações, a ordem de classificação.
§ 5º – A exigência de tempo de atividade jurídica será dispensada para os que contarem com, no mínimo, dois anos de efetivo exercício em cargo de natureza policial civil, anteriormente à publicação do edital de concurso.
Analisando estes dispositivos, Casarini afirma que:
Como se observa, a Constituição do Estado de São Paulo conferiu a independência funcional motivada às autoridades policiais, através da livre convicção nos atos de polícia judiciária, aprimorando a qualificação profissional exigida para o ingresso na carreira. (2012, p. 24).
A Lei Federal n° 12.830/2013 ratificou este olhar sobre o delegado de polícia, que já fora objeto de apreciação legislativa no estado de São Paulo, como se observa.
Quando se discute sobre uma possível insuficiência legislativa no que se refere à atuação dos Núcleos Especiais Criminais, é interessante notar o disposto no parágrafo primeiro do artigo segundo da Lei nº 12.830/2013. In verbis:
§ 1º Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais. (grifo nosso).
A regra jurídica, ao utilizar a expressão outro procedimento previsto em lei, faz menção às atividades de polícia voltadas às infrações de menor potencial ofensivo. O conteúdo desta norma pode ser combinado com a regra estabelecida no já citado artigo 3º, inciso I da Lei Complementar nº 207/1979. Deste modo, o delegado de polícia está legitimado para utilizar instrumentos adequados para as atividades de polícia judiciária, sejam elas preventivas ou repressivas. Vale dizer, no aspecto endógeno de sua atuação, a utilização, v.g., do chamado termo circunstanciado, evidenciando a polícia judiciária enquanto atividade material. E, numa perspectiva exógena, a autonomia para lançar mão de procedimentos policiais como a mediação, materializando a polícia judiciária enquanto atividade funcional, sempre com o objetivo maior de supedâneo à efetiva justiça.
Uma vez mais colacionamos o magistério do professor Valente, para quem
A emergência da sociedade tardo-moderna desenvolve novos paradigmas de conceptualização de prevenção e repressão dos fenômenos criminógenos germinadores da insegurança real e, muito especial, da segurança cognitiva. Este axioma exige de todos os cidadãos, e em especial dos responsáveis policiais, um aprofundamento endógeno e exógeno do conhecimento dos fenómenos imprimidos pela queda das fronteiras físicas estaduais e o aparecimento de um Estado cada vez mais exógeno de dimensões físicas em permanente mutação: indetermináveis ou imaginárias. (VALENTE, 2011b, p. 49).
Isto reforça, de certo modo, a legitimidade da atuação dos NECRIMs. Estes, é de sublinhar, “retratam, no Brasil, total alinhamento com a filosofia da Polícia Comunitária. Polícia perto do povo, perto das pessoas necessitadas de apaziguamento, de conciliação” (GOMES, 2013, p. 147). Ou seja, num contexto de rupturas e desterritorialização, as atividades dos NECRIMs, na medida em que se voltam para a comunidade local, diminuem os efeitos destes fenômenos desafiadores observados na contemporaneidade.
Deste modo, caracteres de cientificidade conferem o necessário arrimo às atividades de polícia desempenhadas pelos NECRIMs, sobretudo no tocante à utilização de métodos adequados de solução de conflitos, possibilitando uma chave interpretativa da legislação para uma atuação consentânea com a realidade da sociedade da informação.