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Meu corpo, minhas regras?

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Agenda 01/04/2017 às 10:30

A ARTE DA INDISCIPLINA

A disciplina é uma anatomia política dos detalhes (FOUCAULT, 1997, p. 137).

Um padrão é eleito. O corpo subserviente é desenhado e apresentado de modelo para que todas as demais mulheres o sigam. O cabelo, o peso, o comportamento e a vida ideal pregadas no termômetro da normalidade disposto a coagir qualquer ato de insurgência.

Neste contexto vemos diariamente a repetição da ideia de que a mulher deve focar na beleza, em um funcionamento ideológico que vincula o “mundo feminino” à perfeição física e amordaça a possibilidade de ligação deste universo com outros temas.

Porém, em que pese a existência de punições, sociais, físicas ou psicológicas, exsurgem as mulheres “desviantes” com o objetivo de contestar padrões e clamar por outros papeis para além dos impostos pela sociedade patriarcal.

No livro “O segundo sexo” (1949) de Simone de Beauvoir (1986), esta apresenta a questão: o que é uma mulher?7 Nessa reflexão sobre o referido tema, a grande “indisciplina” já surgiu a partir da perspectiva de um conceito a partir do sujeito-em-si, não mais simplesmente de um reflexo invertido ou a partir de uma construção do olhar masculino, de modo que

O feminismo, enquanto um movimento político transformador, insere-se em um campo de poder/saber na medida em que interroga e desconstrói a naturalização dos corpos em papéis e práticas sociais, e ao mesmo tempo produz e critica seus próprios discursos em desdobramentos que contemplam as variáveis etnias, classe, raça, e o próprio sexo biológico na constituição do sujeito “mulher”. O sujeito dos feminismos é assim múltiplo e se desloca de um grupo definido e do indivíduo singular, pois produz-se em um movimento complexo e dinâmico, na análise das engrenagens de constituição do corpo/sujeito/sexo, na experiência das práticas sociais generizadas - enquanto mulher- e na crítica ao quadro epistemológico no qual se insere seu próprio discurso.8

Na concepção Foucaultiana, portanto, os feminismos são parte da denominada insurreição dos “saberes dominados, da ‘imensa e proliferante criticabilidade das coisas, das instituições, das práticas, dos discursos”9. Para Foucault, “o caráter essencialmente local da crítica indica na realidade algo que seria uma espécie de produção teórica autônoma, não centralizada, isto é, que não tem necessidade, para estabelecer sua validade, da concordância de um sistema comum.”10

A lógica feminista, portanto, questiona estes papeis naturalizados para revelar as verdadeiras engrenagens de poder que regem esses papeis idealizados, esmiunçando a anatomia política dos detalhes e se perguntando: Afinal, para quem interessa esse contexto? Por que as coisas são como são?

Assim, passa-se a descobrir que os discursos sobre o corpo, sexualidade e a divisão hierarquizada dos seres humanos em mulheres e homens são, de fato, efeito e instrumento de poder instituinte.11

Desse modo a mulher que questiona e que se insurge contra os padrões instituídos passa a ser perseguida, julgada e penalizada, tal qual descrito por Foucault. Porém, é fato que o trabalho do francês não se debruça detidamente sobre as questões do feminino, apenas aponta para as estratégias sociais que acabam por nos fazer observar que o corpo da mulher é um lugar de exercício do poder.

Revoltar-se contra este poder que dociliza é, sem dúvida, um ato considerado de indisciplina pelo poder dominante. Não à toa os movimentos feministas foram e continuam sendo perseguidos.

Porém, apesar dos encalços, é fato que já ocorreram conquistas a partir deste movimento de desnaturalização sobre o que é ser homem e mulher na sociedade, de modo que somente a crescente reflexão sobre os mecanismos de poder contribuem para a busca pela erradicação das desigualdades de gênero.


DOMINÇÃO E VIOLÊNCIA

Como dito inicialmente, a dominação sobre os corpos femininos se expressa de diversas maneiras. Seja estampando corpos padronizados em veículos de informação impondo um ideal inalcançável, seja desqualificando a mulher “desviante” publicamente.

É fato, entretanto, que a violência contra mulher é certamente a pior expressão de todo este esquema de dominação patriarcal sobre os corpos.

Não por acaso as mulheres são grandes vítimas de crimes de ódio, pelo simples fato de serem mulheres. No Brasil, por exemplo, fora promulgada a Lei 13.104 de 9 de março de 2015 com o fim específico de criminalizar este ato em razão de sua recorrência.

Nesse contexto de dominação masculina é fato que a mulher que se contrapõe, mesmo que timidamente, também será vítima-mor desse cenário de violência, simbólica ou escancarada.

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E é neste panorama que as mulheres são confrontadas ao longo da vida com diversos contextos de vitimização que, de forma notória, são puros reflexos desse poder que se sobrepõe aos seus corpos.

A severidade da violência experienciada pelas mulheres pode ser aferida de várias formas. Em primeiro lugar, a precocidade no início do processo de vitimização. Para cerca de 30 % das vítimas, o primeiro episódio de violência sexual, física ou psicológica registou-se antes de completarem 18 anos, percentagem que ultrapassa a metade das vítimas, se se considerar uma primeira vitimização antes dos 25 anos de idade (Gráfico 2). Em segundo lugar, as vítimas de violência sexual são objeto de atos de natureza física, sexual e/ou psicológica: à data do estudo, 23,2 % das inquiridas tinha sido vítima de cinco ou mais atos de violência. Somente 30,4 % das mulheres mencionou um único ato de violência. Em terceiro lugar, a vitimização declarada pelas vítimas de violência sexual indicia uma severidade que coloca em risco a vida da mulher: 17 % das vítimas refere casos de violência que de forma explícita ou implícita colocam a sua vida em risco como as “ameaças com arma de fogo ou branca”, “ameaças e chantagens do tipo «mato-te»”, “apertarem-lhe o pescoço”, “empurrões pela escada abaixo/contra objetos”, “sovas”, “bater com a cabeça contra a parede/chão” e “atirarem-lhe objetos”; entre estas vítimas, mais de metade referiu mais do que um ato deste tipo, o que representa um cenário de vitimização severo. Importa pois conhecer o início do processo de vitimização e discernir o modo como diferentes tipos e contextos de vitimização se intercalam e sucedem no curso de vida das mulheres.12

Sendo assim, claras as punições enfrentadas pelos corpos femininos ao longo da vida que, numa perspectiva foucaultiana, denotam formas de controle e dominação do poder dominante e patriarcal.


CONCLUSÃO

Tão clara como a água é a subalternidade da representação feminina na sociedade, sendo um evidente exemplo de todos os mecanismos de dominação descritos na obra “Vigiar e Punir” (1997).

Nesse sentido, apesar da ausência da específica problematização de gênero e da contestação direta às relações desiguais, hierárquicas e masculinas, é inquestionável a contribuição de Foucault no que se refere as reflexões sobre poder e os discursos normalizantes dos dispositivos de dominação.

De todo modo, fácil traçar este paralelo em relação a situação das mulheres em sociedade e a obra de Foucault, vez que são de fato encarceradas a prisões domésticas e de seus próprios corpos, disciplinadas do dia que nascem até o último suspiro de suas vidas.

Sob o olhar vigilante e hierarquizante, mulheres são vítimas das ditas sanções normalizadoras que, comumente, se convertem em violência.

Assim, para além das imprecisões, a obra de Foucault é sem dúvida um excelente instrumento de análise e conhecimento para uma efetiva transformação da realidade.


REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2. ed. São Paulo, vol 2.: Difusão Européia de livors, 1967.

BOURDIEU, P. A dominação masculina. Tradução Maria Helena Kühner. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

DE LAURENTIS, T. (1987). Technologies of gender. New York: Bloomington.

FOUCAULT, M. (1999). Estética, ética e hermenêutica (Obras Essenciales Vol. 3) (A. Gabilondo, Trad.). Buenos Aires, Argentina: Paidós.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 5. ed. Petropólis: Vozes, 1997.

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FOUCAULT, M. Histoire de la sexualité I, la volonté de savoir, Paris, Gallimard, 1976, pg.133

LECHTE, John. Pensamento pós-estruturalista. In: ______. Cinquenta pensadores contemporâneos essenciais: do estruturalismo à pós-modernidade. Tradução: Fábio Fernandes. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002. p. 129-134.

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Notas

1 MONTGOMMERY, L. de. La Milice française. Edição de 1636, p. 6s.

2 PELLEGRINI, Marcelo. Sub-representação feminina no Congresso afeta direitos sociais da mulher. Carta Capital, São Paulo. Disponível em <https://www.cartacapital.com.br/politica/sub-representacao-feminina-no-congresso-afeta-direitos-sociais-da-mulher-4112.html > Acessado em 25/09/2016.

3 ‘Foi fazer a unha, né Fabíola?' é o novo meme das redes sociais. O Globo. Rio de Janeiro, 2015. <https://blogs.oglobo.globo.com/nas-redes/post/foi-fazer-unha-ne-fabiola-e-o-novo-meme-das-redes-sociais.html > Acessado em 25/09/2016.

4 Os suicídios de garotas que tiveram suas fotos íntimas vazadas na internet. Carta Capital. Disponível em <https://jornalggn.com.br/noticia/os-suicidios-de-garotas-que-tiveram-suas-fotos-intimas-vazadas-na-internet> Acessado em 25/09/2016.

5 FOUCAULT. Microfísica do poder, Rio de Janeiro, Ed.Graal, 1979. pg.169

6 Michel FOUCAULT. Vigiar e punir, op.cit. pg.180

7 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo, 2 vol., São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1966.

8 RANGEL, Lívia. Quem tem medo de Foucault? Feminismo, Corpo e Sexualidade. Arquivado na UFES. Disponível em <https://www.ebah.com.br/content/ABAAAA6yQAJ/quem-tem-medo-foucault-feminismo-corpo-sexualidade > Acessado em 25/09/2016.

9 Michel FOUCAULT. Microfísica do poder, Rio de Janeiro, Ed.Graal, 1979. pg.169

10 Idem, ibid. pg 169

11 Michel FOUCAULT. Histoire de la sexualité I, la volonté de savoir, Paris, Gallimard, 1976, pg.133

12 Joana Aguiar Patrício, « Violência contra as mulheres: processos e contextos de vitimização », Forum Sociológico [Online], 25 | 2014, posto online no dia 10 Novembro 2014, consultado 30 de setembro de 2016. URL : https://sociologico.revues.org/902 ; DOI : 10.4000/sociologico.902

Sobre a autora
Anne Caroline Fidelis de Lima

Advogada, bacharela em Direito pela Universidade Federal de Alagoas, professora universitária, mestra em sociologia pela Universidade Federal de Alagoas, pós-graduada em direito civil, processo civil pela Escola Superior de Advocacia da OAB/AL e em gestão pública municipal pela Universidade Federal de Alagoas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Anne Caroline Fidelis. Meu corpo, minhas regras?: Uma análise da dominação dos corpos femininos em uma perspectiva foucaultiana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5022, 1 abr. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56142. Acesso em: 22 nov. 2024.

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