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Aborto eugênico: alguns aspectos jurídicos.

Paralelo com os direitos fundamentais da vida, da liberdade e da autonomia da vontade privada e com os direitos da personalidade no novo Código Civil

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Agenda 24/08/2004 às 00:00

SUMÁRIO: 1. Aproximação do Tema; 2. Vexata Questio - 2.1. o caso em estudo: a liminar concedida à CNTS em sede de ADPF - 2.2. as divergências jurisprudenciais em casos simétricos; 3.Os Princípios Fundamentais do Direito - 3.1. direito à vida: sob o ponto de vista jurídico-científico - 3.2 direitos do nascituro - 3.3 limites ao direito de liberdade: supressão da autonomia da vontade privada; 4. O Aborto Terapêutico e o Aborto Eugênico: diferenças cruciais – 4.1. relativização do valor da vida humana - 4.2. insubordinação de direitos iguais: eficácia horizontal imediata 5. Impedimento de Acesso aos Direitos da Personalidade - 5.1 início da personalidade jurídica: o nascimento com vida - 5.2 a não exigência da forma humana e da viabilidade do nascido; 6. Uma última análise da Decisão Judicial - 6.1 ilegalidade da medida: via processual incorreta - 6.2.inconstitucionalidade da medida; 7. Conclusão; 8 Bibliografia.


1. APROXIMAÇÃO DO TEMA

Muito se tem discutido sobre o teor das ações e recursos que se avolumam em portfólios no Supremo Tribunal Federal, em sua grande maioria desconexos e aventureiros, quando não repetitivos, que estorvam o desenvolvimento normal da atividade judiciária, ao lume de matérias dissociadas da essência funcional daquela egrégia Corte, de há muito esculpida no artigo 102 da atual Carta Política, razão pela qual arvoram-se os argumentos pela aprovação da malsinada "súmula vinculante" (1).

Entretanto, de quando em quando, ganham relevo questões de repercussão social como o anti-semitismo, a exemplo da famosa lide travada em sede de Habeas Corpus (2) oriunda do estado do Rio Grande do Sul, que versou sobre apologia à prática de "racismo" contra judeus, no qual o vetor da polêmica foi decidir se judeu é raça. Ou, por outro lado, questões políticas, como na recente celeuma da inconstitucionalidade da contribuição previdenciária sobre os inativos (3). Quando o debate é desta natureza, as teses jurídicas sustentadas pelos eminentes magistrados ganham em qualidade e revertem-se em proveito da sociedade e da ciência jurídica em geral.

O mais recente caso a desafiar a intelecção do STF e que é o nosso objeto de estudo neste ensaio acadêmico, versa sobre "a constitucionalidade ou não do aborto para fins terapêuticos". O tema é de suma importância, porque revigora o debate nacional sobre o aborto, dantes adormecido, e perpassa a fronteira do direito atingindo matizes científicos, filosóficos, religiosos, ou mesmo sociológicos, ensejando divergências interpretativas no meio.

A discussão ganhou vulto com a decisão monocrática do Excelentíssimo Senhor Ministro Marco Aurélio de Melo, em sede de medida cautelar, nos autos da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF, nº 54 - 8 do Distrito Federal, que autorizou o aborto de feto anencefálico (4). A decisão, que analisaremos amiúde, de eficácia imediata e efeito vinculante, gerou uma esperada multiplicidade de opiniões, sendo de perplexidade para os setores mais conservadores da sociedade (5), de regozijos para classe médica e os movimentos "pró-aborto", e de indignação para alguns representantes do meio jurídico.

Não obstante as várias vertentes jurídicas que o tema possa suscitar, este trabalho primará por uma abordagem predominantemente constitucional e civilística do fato, traçando um paralelo com os princípios fundamentais do direito, previstos na Constituição Federal (mais precisamente no artigo 5º) e com direitos da personalidade e a autonomia da vontade privada (capítulo inserido no novo Código Civil, artigos 11 e seguintes).

Ressalte-se, outrossim, que não é nosso propósito esgotar o tema, de sorte que a abordagem que aqui se encerra é delimitada à análise da decisão judicial mencionada.


2. VEXATA QUAESTIO

Não é contemporânea, nem territorial, a polêmica sobre a legalização do aborto. Há tempos que movimentos sociais, prós e contras, debatem acirradamente os seus argumentos quanto à possibilidade jurídica ou não da interrupção da gestação. Basta analisar que, no Brasil, embora haja vedação expressa, quer pela Cara Magna de 1988, artigo 5º, caput, quer pelo Código Penal, artigos 124 ao 127, quer pela simetria que guarda a legislação pátria com as regras internacionais de prevalência da vida e controle de natalidade (6), o número de abortos provocados cresce assustadoramente e, o que é pior, em grande parte, autorizados pelo próprio judiciário. Segundo dados extra-oficiais levantados por pesquisadores do assunto (7), somente na década de 90 foram concedidos mais de 350 (trezentos e cinqüenta) alvarás autorizando a prática da chamada Interrupção Seletiva de Gravidez, representada pela sigla ISG, também chamada de aborto eugênico. A estimativa atual é a de que mais de 2.000 (dois mil) processos estejam tramitando nos tribunais nacionais visando o mesmo objetivo. No Congresso Nacional há vários projetos legislativos com o propósito legalista do aborto, sendo o PL nº 20/91 de autoria dos ex-deputados Eduardo Jorge (PT/SP) e Sandra Starling (PT/MG), o mais questionado.

Assim, volta e meia, o assunto vem à tona trazendo sempre uma carga ostensiva de debates. O último caso, que passamos a analisar, causou maior repercussão por ter sido o primeiro a ser erigido em sede de Corte Constitucional.

2.1 – O caso em estudo: a liminar concedida à CTNS em sede de ADPF

Em 17 de Junho de 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS formalizou ação de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental junto ao Egrégio Supremo Tribunal Federal (escudada na Lei nº 9.882/99, segundo a qual confere-se legitimidade para a argüição àqueles que estão no rol do artigo 103 da Carta Política da República), visando à declaração da inconstitucionalidade, com eficácia abrangente e efeito vinculante, da interpretação dos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal – Decreto-Lei nº 2.848/40 - como impeditiva da antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico, diagnosticados por médico habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo da gestante de assim agir sem a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica do Estado.

O cerne da questão, exposta na exordial, orbitou em torno dos crescentes casos clínicos de gestação com seres anencefálicos, com os quais os médicos se deparam dia a dia e se vêem impedidos de realizar a antecipação do parto, em razão da mencionada vedação legal e constitucional.

Como argumento persuasivo, a CNTS utilizou-se de dados científicos para comprovar que a permanência de feto anômalo no útero da gestante seria potencialmente perigosa, podendo gerar danos à sua saúde e à sua vida, e lembrou que a mora judiciária, hoje indisfarçável, comprometeria sobremaneira qualquer possibilidade de espera, uma vez que o tempo de gestação humana é, em média, de 40 (quarenta) semanas, tempo bem menor do que a marcha processual.

O eminente Ministro Marco Aurélio de Mello, ao analisar o caso, firmou entendimento de que:

"(...) diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia a dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar".

Citou ainda os dados técnicos levantados pela argüente de que, nos casos de anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza da inviabilidade de vida do nascituro igual a 100% (cem por cento). Disse o magistrado:

"A literatura médica aponta que a má-formação por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, não apresentando o feto os hemisférios cerebrais e o córtex, leva-o ou à morte intra-uterina, alcançando 65% dos casos, ou à sobrevida de, no máximo, algumas horas após o parto. A permanência de feto anômalo no útero da mãe mostrar-se-ia potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde e à vida da gestante. Consoante o sustentado, impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causa à gestante dor, angústia e frustração, resultando em violência às vertentes da dignidade humana – a física, a moral e a psicológica - e em cerceio à liberdade e autonomia da vontade, além de colocar em risco a saúde, tal como proclamada pela Organização Mundial da Saúde – o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença".

Com espeque nisso, concedeu a medida liminar determinando que toda gestante que se encontrar nesta situação de feto anencefálico tem o direito de interromper a gravidez.

2.2 - As divergências jurisprudenciais em casos simétricos

Também foi suscitada pela argüente e utilizada como parâmetro pelo MM relator, a divergência jurisprudencial entre as Cortes brasileiras, inclusive entre o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, à luz do debate ocorrido nos autos do Habeas Corpus de nº 84.025-6/RJ assim retratada:

"É emblemático o que ocorreu no Habeas Corpus nº 84.025-6/RJ, sob a relatoria do ministro Joaquim Barbosa. A situação pode ser assim resumida: em Juízo, gestante não logrou a autorização para abreviar o parto. A via-crúcis prosseguiu e, então, no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a relatora, desembargadora Giselda Leitão Teixeira, concedeu liminar, viabilizando a interrupção da gestação. O Presidente da Câmara Criminal a que afeto o processo, desembargador José Murta Ribeiro, afastou do cenário jurídico tal pronunciamento. No julgamento de fundo, o Colegiado sufragou o entendimento da relatora, restabelecendo a autorização. Ajuizado habeas corpus, o Superior Tribunal de Justiça, mediante decisão da ministra Laurita Vaz, concedeu a liminar, suspendendo a autorização. O Colegiado a que integrado a relatora confirmou a ordem concedida para reformar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, desautorizando o aborto. Daí o habeas impetrado no Supremo Tribunal Federal. Entretanto, na assentada de julgamento, em 4 de março último, confirmou-se a notícia do parto e, mais do que isso, de que a sobrevivência não ultrapassara o período de sete minutos".

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Este relato de divergência jurisprudencial também ajudou a formar a opinião do ministro, em razão de sua clara preocupação quanto à segurança jurídica nas decisões emanadas do judiciário, verbis:

"Constata-se, no cenário nacional, o desencontro de entendimentos, a desinteligência de julgados, sendo que a tramitação do processo, pouco importando a data do surgimento, implica, até que se tenha decisão final - proclamação desta Corte -, espaço de tempo bem superior a nove meses, período de gestação. Assim, enquadra-se o caso na cláusula final do § 1º em análise. Qualquer outro meio para sanar a lesividade não se mostra eficaz. Tudo recomenda que, em jogo tema da maior relevância, em face da Carta da República e dos princípios evocados na inicial, haja imediato crivo do Supremo Tribunal Federal, evitando-se decisões discrepantes que somente causam perplexidade, no que, a partir de idênticos fatos e normas, veiculam enfoques diversificados. A unidade do Direito, sem mecanismo próprio à uniformização interpretativa, afigura-se simplesmente formal, gerando insegurança, o descrédito do Judiciário e, o que é pior, com angústia e sofrimento ímpares vivenciados por aqueles que esperam a prestação jurisdicional."

O entendimento destoante dos tribunais brasileiros resulta do fato de que, se de um lado há uma angústia, incerteza e frustração por parte da gestante, por saber que está gerindo um ser que não sobreviverá, ou mesmo, poderá nascer morto, por outro, se impõe o dever de cumprimento da lei, sobretudo porque a legislação constitucional tutela a vida como bem maior a ser preservado, bem como as hipóteses em que se admite atentar contra ela estão elencadas de modo restrito, inadmitindo-se interpretação extensiva, tampouco analogia em desfavor da parte, devendo prevalecer, nesses casos, o princípio da reserva legal (8).

Destarte, a decisão judicial, embora ainda não sufragada pelo colegiado, e sob a alegativa de que não obriga a mulher gestante, que se encontra nessa situação, a provocar o aborto (apenas transmite-lhe o poder de decisão sobre o futuro de seu filho e da disposição de seu corpo), abre grave precedente a outros mecanismos antijurídicos ligados à morte, como a eutanásia, a própria pena de morte e o extermínio de raças consideradas impuras, além de afrontar descaradamente o direito positivo brasileiro, razão pela qual, debruçamo-nos neste pequeno trabalho, na expectativa de suscitar um saudável debate e, quiçá, ver revertido o abstraído julgamento.


3. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO

Fundamentais são todos os direitos tidos como inerentes ao ser humano, por vezes confundidos com os próprios direitos do homem, alguns deles, inclusive, com os direitos da personalidade. Na realidade, os direitos fundamentais são princípios constitucionais fundamentais, pois guardam os valores basilares da Ordem Jurídica e de um Estado Democrático de Direito. Paulo Bonavides (9) os classifica em quatro gerações (dimensões); Norberto Bobbio (10) os atrela à democracia; J. J. Gomes Canotilho (11), aos direitos da personalidade; e Celso Antônio Bandeira de Melo (12) os chama de mandamento nuclear de um sistema. Neste caso, o que se tem em pauta é o mais estrutural dos direitos fundamentais: o direito à vida. Alexandre de Moraes (13), a propósito, afirma que:

"O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos".

3.1. - Direito à vida: sob o ponto de vista jurídico-científico

Do ponto de vista jurídico, o direito à vida está inserido como princípio fundamental na CF/88 logo no caput do artigo 5º, que preconiza, in verbis:

"Art.5º Todos são iguais perante a lei, (...) garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:" - grifamos -

Também na mesma carta, define o artigo 227, in verbis:

"Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". - grifamos -

A garantia constitucional incidente sobre a vida humana é reflexo de um Estado que prima pela ampla liberdade e igualdade de direitos, em contrapartida aos que primam por outros valores sociais menos caros, historicamente atrelados às sociedades descompromissadas com os direitos humanos (14).

Estando o direito à vida associado aos fundamentos de um Estado Democrático de Direito, não se pode erigir contra ele qualquer ação, porque contrariaria a logicidade do sistema normativo. Celso Antônio Bandeira de Mello (15), em lição lapidar, aduz que:

"Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, dispositivo fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.(...)Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra".

Paulo Bonavides (16) afirma que os direitos fundamentais, mormente os de primeira geração, têm por titular o indivíduo, sendo oponíveis ao Estado numa política de liberalismo e de não intervenção, traduzindo-se como faculdades ou atributos da pessoa: "são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado".

As correntes jus-naturalistas já definiam certas categorias de direitos como sendo inerentes à própria existência humana. A vida é consagradamente um direito inato ao homem, um direito natural e universal, independentemente de credo, convicção política ou filosófica. Ives Gandra Martins (17), ao tratar do tema, leciona:

"O direito à vida é o primeiro dos direitos naturais que o direito positivo pode simplesmente reconhecer, mas que não tem a condição de criar".

E quando aborda o dever do Estado em privilegiar a vida, sobretudo a dos mais indefesos, continua o jurista:

"O direito à vida, talvez mais do que qualquer outro impõe o reconhecimento do Estado para que seja protegido e, principalmente o direito à vida do insuficiente. Como os pais protegem a vida de seus filhos logo após o nascimento, pois estes não teriam condições de viver sem tal proteção, dada sua fraqueza, e assim agem por imperativo natural, o Estado deve proteger o direito à vida do mais fraco, a partir da ‘teoria do suprimento’. Por esta razão, o aborto e a eutanásia são violações ao direito natural à vida, principalmente porque exercidas contra insuficientes".

Ora, ao se decidir pela autorização do aborto, ainda que em casos semelhantes ao abordado, afronta-se, além de um direito natural, um princípio fundamental, vez que, se traduz na intervenção do Estado na esfera jurídica do indivíduo pela limitação do direito à vida, quando o próprio Estado edita normas de proteção à vida. Sob nenhum aspecto, como iremos verificar, é justificável tal impropério jurídico.

Destaque-se mais, que a carga semântica depositada na expressão "direito à vida" infere duas situações: 1º - o direito de permanecer vivo, que já pressupõe a existência do indivíduo e; 2º - o direito de nascer vivo, que antecede ao surgimento do indivíduo no mundo exterior. Quando a questão é analisada sob o ponto de vista da primeira situação, abre-se perigoso espaço para o debate da "pena de morte"; quando analisado pelo prisma da segunda situação, trata-se inegavelmente do aborto.

Estas duas vertentes são, precisamente, fortalecedoras do argumento utilizado pelos abortistas. É que a teoria adotada é a de que o "direito à vida", preconizado na legislação, refere-se somente ao indivíduo que já se tornou pessoa, inclusive com atributos da personalidade, e aí sim, consubstanciaria crime qualquer atentado contra si. No caso do nascituro, como não teria se tornado pessoa (Partus nondum editus, homo non recte fuisse dicitur) (18) não constituiria ato ilícito a sua abortagem. Ledo engano! O nascituro é pessoa! (19) E ainda que não seja assim considerado por alguns, bastaria estar vivo dentro do útero, pois o crime é contra a vida do ser, não contra a denominação biológica que se queira dar ao feto. Trata-se de um ser humano, e assim o é, porque descende da espécie humana. Não se pode dar tratamento "coisificado" ao feto, considerando-o como um ser inanimado (salvo se já estiver morto) ou como um animal de outra espécie (porque biologicamente impossível).

Mas, infelizmente, o entendimento da decisão aqui atacada diverge de nossa linha de raciocínio por uma razão não muito óbvia: o eminente julgador não aceita que o feto anencefálico seja possuidor de vida. Disse o ministro, verbis:

"(...) a gestante convive diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo. Se assim é - e ninguém ousa contestar (...)" - grifamos -

Assim, em nosso sentir, este discurso teratológico de que o ser intra-uterino não tem vida, ou se a tem, não pode ser considerado como pessoa (e neste caso, não haveria crime de morte se fosse praticado o aborto), é mais aberrante do que o próprio ato.

Por outro lado, do ponto de vista científico, o que parece estar em jogo é a incerteza (pelo menos do excelentíssimo ministro) do que seja "vida", ou do que seja "vida viável". Neste aspecto é inarredável esclarecer que a vida não pode ser confundida com condições necessárias, ou viabilidade de existência. É, outrossim, o resultado indissociável da geração biológica do ser, independentemente do seu desenvolvimento ou da forma que assumirá.

Obtém-se a vida com a fertilização do óvulo e a formação do zigoto (20) e não quando o embrião se torna feto. Este momento crucial marca não só o início da vida, mas também assegura os direitos, ou, ao menos, as expectativas de direito do nascituro. Engana-se quem desconsidera este momento inicial como marco científico de relevância para o direito, pois é justamente neste limiar que confluem a vida e o direito, resultando na chamada vida intra-uterina. William A. Liley (21), considerado o pai da medicina fetal, descreve a importância que tem o ser em formação:

"O novo indivíduo comanda o seu ambiente e o seu destino com tenacidade de propósito, implanta-se na parede esponjosa do útero e numa demonstração de vigor fisiológico interrompe a menstruação da mãe. Tal é, pois, o feto que nós conhecemos e que nós próprios fomos um dia. É o feto de que cuidamos na Obstetrícia moderna, que vem a ser o mesmo bebê do qual cuidamos antes e depois do nascimento, o qual pode ficar doente antes e depois de nascer, exigindo diagnóstico e tratamento como qualquer outro paciente."

Esta importância que a ciência dá ao feto é a prova clara de que o homem já se convenceu que a vida criada é totalmente distinta da criadora, embora interligadas. Aliás, em frase secular, Jérôme Lejeune (22), descobridor da Síndrome de Down, proferiu o seguinte raciocínio:

"Aceitar o fato de que, depois da fertilização, um novo ser humano começou a existir não é uma questão de gosto ou de opinião. A natureza humana do ser humano, desde a sua concepção até sua velhice não é uma disputa metafísica. É uma simples evidência experimental".

Neste sentido, por reconhecê-lo possuidor de vida independente, é que a moderna medicina fetal trata o ser intra-uterino como paciente, chegando a submetê-lo, quando necessário, ao tratamento médico, inclusive cirúrgico. Assim, qualquer manipulação do nascituro no útero materno, com o fim de levá-lo à expulsão forçada é, sem dúvida, um eufemismo para "pena de morte".

Este mesmo reconhecimento científico da dissociabilidade dos seres, genitor e gerido, é que forçou o Direito a reconhecer que o nascituro, embora não se tenha constituído de personalidade (23), possa ser ao menos merecedor de proteção jurídica.

3.2 - Direitos do nascituro

O Direito confere proteção jurídica ao nascituro por uma inflexão às normas gerais, constitucionais ou mesmo internacionais, que garantem ao ser humano a devida proteção, mesmo antes de nascer.

Orlando Gomes (24) já ensinava que a ordem jurídica admite a existência de uma personalidade fictícia, ao lado da real e verdadeira, em hipóteses nas quais não haveria coincidência entre a existência fática do sujeito e o próprio direito, apenas presunção, elencando 03 (três) situações: 1º - a do nascituro; 2º a do ausente; 3º a da pessoa cuja possibilidade de vir a existir é admitida para aquisição de direitos. Ainda segundo o civilista, a lei assegura direitos ao nascituro por um dever do Estado de não duvidar das leis da natureza e de conferir expectativa de direitos ao ser futuro.

Os Romanos já tratavam da questão, ainda que esparsamente, e estendiam os direitos do nascido ao concebido, pela mera expectativa do nascimento (25). Carlo Fadda (26) colecionou passagens em que os romanos tutelavam alguns direitos do feto:

"No segundo século do Império, a mulher divorciada, que procurava desfazer-se dos frutos da ligação com o marido, de que se separára,(sic) passou a ser punida pelas manobras para evitar o nascimento, as medidas eram tomadas no interesse do pai do nascituro(...) tal mulher era condenada ao exílio, por ter agido contra a spes proli do marido. (...) Os jurisconsultos da época clássica assentaram princípios mais tarde consubstanciados no Digesto (...) a sentença de PAULO afirmava que: ‘aquêle, (sic) que se encontra no útero deve conservar-se assim, como se estivesse entre os sêres (sic) vivos, sempre que se trate dos seus próprios interesses’ (...) e a afirmação de JULIANO:‘Aquêles (sic) que estão no útero entendem-se estar em quase todo o direito civil, que existem na natureza; porque as heranças legítimas lhes são restituídas(sic); e, se a mulher grávida é feita prisioneira pelos inimigos, goza do benefício do post-liminio o filho, que dela nasce; segue igualmente, a condição do pai ou da mãe.’"

No direito moderno não há dissonância deste raciocínio, guardando perfeito entendimento sobre a proteção jurídica do nascituro, principalmente nas legislações internacionais. O Preâmbulo e o artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos da Criança, por exemplo, determinam que, in verbis:

"Toda criança necessita de proteção e cuidados especiais, inclusive a devida proteção legal, tanto antes quanto após o seu nascimento". - grifamos -

Também a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (conhecida como Pacto de São José da Costa Rica), da qual o Brasil é signatário, através da promulgação do Decreto nº 678/92, estabelece, in verbis:

"Artigo 4º - Direito à vida: 1. Toda pessoa tem direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente." - grifamos -

Acompanha estes comandos a íntegra da Lei Federal brasileira nº 8.069/90, que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente, que, pela redação do seu artigo 7º, assim assegura, in verbis:

"Art. 7º - A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência" - grifamos -

Por seu turno, o novo Código Civil brasileiro, a exemplo do anterior, preconiza de forma mais objetiva:

"Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro." - grifamos -

Ricardo Fiúza (27), relator do Projeto de Lei que resultou no novo Código Civil descreve os direitos vigorados no novel diploma legal que recaem sobre o nascituro:

"Conquanto comece do nascimento com vida a personalidade civil do homem, a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro (CC, arts. 2º, 1609, 1779, parágrafo único e 1798) como o direito à vida (CF, art. 5º, CP, arts. 124 a 128, I e II), à filiação (CC, arts. 1596 e 1597), à integridade física, a alimentos (RT, 650/220;RJTJSP, 150/906), a uma adequada assistência pré-natal, a um curador que zele pelos seus interesses em caso de incapacidade de seus genitores, de receber herança (CC, arts. 1798 e 1800 §3º), de ser contemplado por doação (CC, art. 542), de ser reconhecido como filho, etc."

O parlamentar, em comentário ao artigo 2º do NCC (28), reserva ainda uma passagem sobre o discurso de comprometimento que o Senador Josaphat Marinho (autor da Emenda nº 368 ao texto original do projeto) fez em plenário:

"A emenda restaura, basicamente, o texto do artigo 4º do atual Código Civil (leia-se Código anterior). Ressalvar os direitos do nascituro, ‘desde a concepção’, como hoje assegurado, é fórmula ampla que deve ser preservada acima das divergências doutrinárias. Num fim de século em que se realça a amplitude dos direitos humanos, bem como a necessidade de defendê-los com energia, suprimir a cláusula ‘desde a concepção’ suscitaria estranheza."

Outro não é o entendimento dos tribunais pátrios quanto aos direitos do nascituro, com relevo inclusive nas ações sobre o estado de capacidade ou da legitimidade conferida ao nascituro:

"Ao nascituro assiste capacidade para ser parte. O nascimento com vida investe o infante na titularidade da pretensão de direito material, até então apenas uma expectativa resguardada.(TJSP - Ap.Cív. 193.648-1 DJ. 14/9/93. Rel. Renan Lotufo)"

"Ao nascituro assiste, no plano do Direito Processual, capacidade para ser parte, como autor ou como réu. Representando o nascituro, pode a mãe propor Ação de Investigação de Paternidade. (RJTJRS 104/418)"

Com tudo isso, não haveria mais motivos para prosperar o infeliz entendimento judicial, nem razões para continuarmos debatendo o tema. Entretanto, a larga e autorizada doutrina civil brasileira, ainda encontra espaço para abordar novos ângulos da questão. Veja-se, por exemplo, o que pensa a respeito o jurista Sílvio de Salvo Venosa (29):

"O nascituro é um ente já concebido que se distingue de todo aquele que não foi ainda concebido e que poderá ser sujeito de direito no futuro, dependendo do nascimento, tratando-se de uma prole eventual; (...) Por isso entendemos que a condição de nascituro extrapola a simples situação de expectativa de direito".

Esta linha argumentativa reforça a idéia de que o nascituro, como feto já concebido, não está no mesmo patamar do esperma e do óvulo que aguardam para fecundar in vitro no lastro de uma reprodução assistida, por exemplo, pois estes carecem ainda de qualquer proteção jurídica própria, posto que ainda não são sujeitos de direito. O ordenamento jurídico nacional não admite a existência plena de direito sem sujeitos, em que pesem as correntes doutrinárias inspiradas em Brinz (30) e sua ótica Zweckvermögen ou Windscheid (31) com seu posicionamento sobre "um direito destinado a um fim e não a um sujeito". (32)

O nascituro, portanto, já tem tutela jurídica e não uma mera expectativa, o que infere proteção total, e não fracionada de seus direitos. Pode não ter personalidade, pois, como veremos, personalidade é uma ficção jurídica, criada pelo direito positivo, mas certamente já é um ser com vida e em formação.

3.3 - Limites ao direito de liberdade: supressão da autonomia da vontade privada

No viés da questão está um direito não menos fundamental: o da liberdade, também garantida constitucionalmente. A decisão monocrática do ministro Marco Aurélio de Mello traz, em seu bojo, sua preocupação quanto ao exercício deste direito, bem como o da autonomia da vontade privada, in verbis:

"Consoante o sustentado, impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causa à gestante (...) cerceio à liberdade e autonomia da vontade" - grifamos -

Não se discute ser a liberdade um sagrado direito, consagrado que está em nossa Carta Política. Também é plenamente reconhecível a autonomia da vontade privada de um indivíduo, porque, aliás, intrinsecamente ligados; se há direito de liberdade, há o de autonomia da vontade. O que se pergunta é: pode a mulher, alegando tais direitos, dispor de seu corpo como bem lhe aprouver, nem que isto signifique por fim a vida de um ser intra-uterino? Pode o tribunal constitucional interpretar distinções na dimensão de princípios fundamentais desta magnitude?

Ora, como dantes demonstrado, cientificamente, a gestação de uma vida faz dela totalmente individualizada da outra, embora dependentes biologicamente entre si. Ao gerar o filho, a mulher perde completamente o domínio desta parte de seu corpo, que cresce involuntariamente, dependendo, é claro, dos inevitáveis suprimentos que aquela fornecerá. Noutros termos, o feto gerado não é mais considerado como mera víscera da mulher, como propagava Ulpiano (33). É, outrossim, um ser com vida própria.

O aborto não pode ser justificado sob o pretexto do direito de liberdade que a mulher teria de usar o corpo, que é seu por natureza, pois, fecundado o óvulo e iniciada a gestação, a mulher passa a ser hospedeira natural e indissociável da cria. Física e biologicamente falando, a mulher tem a função de criar um ambiente interno para o desenvolvimento do novo ser que se avizinha e disso cuida a natureza com toda sua "tecnologia de ponta", que não conta com uma interrupção abrupta para atender egos e vontades psíquicas manifestadas, quando mais acobertadas pelo manto da justiça.

O corpo humano não é um contrato e o aborto não pode ser objeto de negócio jurídico para que se albergue a pretensa argumentação da autonomia da vontade privada. Quando a ciência pandectista elaborou a "teoria do negócio jurídico" (com o máximo apuro, delineou-a para institucionalizar juridicamente a liberdade individual na área dos interesses particulares) (34) não previu a autonomia de vontade como subterfúgio para o cometimento de crimes, muito menos da natureza do aborto. O crime não é contratável!

A liberdade deve ser tangível sob certos limites, de tal modo que as pessoas possam dela desfrutar com a livre consciência de que não poderão invadir a esfera jurídica de terceiros, sob pena de afrontar princípios básicos inseridos no próprio propósito de liberdade. Aliás, Montesquieu (35), fazendo alusão à liberdade nas democracias, certa vez disse:

"É verdade que nas democracias o povo parece fazer o que quer; mas a liberdade política não consiste nisso (...) A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo que elas proíbem, não teria mais liberdade, porque os outros também teriam tal poder."

E no Brasil não há, via de regra, permissão para o aborto. Desta forma, não faz sentido invocar o princípio fundamental da liberdade, em defesa da mãe e em favor do ato, pois a nova camada de direitos gerada com a vida que se inicia está tutelada juridicamente (ao passo que o outro não) e desautoriza qualquer eventual direito de liberdade da mãe sobre o seu corpo, por não ser mais seu em plenitude.

De forma professoral Ives Gandra Martins (36) comenta a teoria exposta:

"Os argumentos, que têm sido trazidos à discussão, de que o aborto não é atentado ao direito à vida, mas o exercício de um direito ao corpo que a mulher possui, não prevalecem, visto que a própria natureza feminina a faz hospedeira do direito à vida de outrem. No momento que a concepção se dá, já não é mais titular solitária de seu corpo, que pertence também a seu filho. (...) Desde a concepção, o corpo feminino pertence a duas vidas, é dirigido por dois seres, mãe e filho, e a mãe não pode praticar homicídio para retirar ao filho direito que possui para sua sobrevivência, ao corpo materno, qualquer que seja a conveniência ou o motivo."

Como se vê, o esteio jurídico utilizado na decisão não foi dos mais propícios e, em linhas gerais, fere princípios basilares do direito. Não pode haver desnivelamento de princípios jurídicos quando estes estão em patamares iguais, como no caso em questão (vide item 4.2). Os direitos à liberdade e o de autonomia da vontade privada podem ser interpretados, tão somente, quando do livre arbítrio da gestante em querer ou não conceber um filho; uma vez concebido estanca-lhe qualquer direito de interrupção do fluxo natural da vida. É desalentador que a decisão não tenha levado tais robustos elementos em consideração.

Sobre o autor
Glauco Cidrack do Vale Menezes

Mestre em Ciências Jurídico-Processuais pela Universidade de Coimbra; Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de Fortaleza; professor de Direito Civil e Processo Civil da Faculdade Farias Brito; Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENEZES, Glauco Cidrack Vale. Aborto eugênico: alguns aspectos jurídicos.: Paralelo com os direitos fundamentais da vida, da liberdade e da autonomia da vontade privada e com os direitos da personalidade no novo Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 413, 24 ago. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5622. Acesso em: 6 nov. 2024.

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