Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Análise jurídica da política pública de recuperação de empresas

Exibindo página 1 de 3
Agenda 02/05/2017 às 10:00

Esta pesquisa examina a política pública de recuperação de empresas à luz do marco teórico da análise jurídica da política econômica (AJPE).

RESUMO:Esta pesquisa examina a política pública de recuperação de empresas à luz do marco teórico da Análise Jurídica da Política Econômica (AJPE). Com este desiderato, inicialmente será estudada a construção da política pública de recuperação de empresas no Brasil, a partir do conceito de paradigma de Thomas Kuhn e com a divisão nas etapas da agenda, formulação, implementação e avaliação. Nessa parte, haverá o desenho geral da política pública, com o exame dos seus principais atores, instituições e conjunto de idéias, e a investigação de possíveis conseqüências jurídicas em decorrência da política. Em seguida, haverá a aplicação da abordagem da Análise Jurídica da Política Econômica para o sistema de recuperação de empresas. A AJPE consiste em uma abordagem interdisciplinar convergente com o “Novo Direito e Desenvolvimento”, que analisa o conjunto de princípios, regras, instituições, discursos dirigidos à organização da produção, troca e consumo na sociedade. Nessa perspectiva, almeja-se a construção de um instrumental analítico capaz de conciliar interesses materiais, valores morais, culturais, religiosos, motivações psicológicas, entre outros, levando-se em consideração a avaliação empírica, de maneira a possibilitar o desenvolvimento econômico em bases mais equitativas. Examinar-se-á, outrossim, a juridicidade do desenvolvimento de uma interpretação teleológico-empírica no direito brasileiro, com o escopo de promover o engajamento dos atores jurídicos com as políticas públicas. Por derradeiro, haverá a exposição das conclusões do trabalho relativas à adequação ou não da utilização do instrumental da AJPE para a construção das normas relativas à recuperação de empresas, mormente percorrendo o itinerário do procedimento analítico do direito.

Política Pública. Recuperação de Empresas. Análise Jurídica da Política Econômica.

SUMÁRIO:1 INTRODUÇÃO..2 CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS..2.1 agenda. 2.2 formulação.. 2.3 implementação.. 2.4 avaliação.. 3 APLICAÇÃO DA ANÁLISE JURÍDICA DA POLÍTICA ECONÔMICA..3.1 interpretação teleológico-empírica. 3.2 procedimento analítico.. 4 CONCLUSÕES..REFERÊNCIAS..                                         


1 INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, o Brasil experimentou um importante desenvolvimento econômico-social com o condão de desencadear um processo de melhoria de qualidade de vida da população, elevando o acesso das classes mais pobres a direitos fundamentais, por meio da manutenção de níveis adequados de emprego, aumento da renda e expansão do crédito. Entrementes, o alcance de melhores níveis de pujança econômica ainda depende da superação de algumas deficiências da nossa legislação. Um desses desafios postos à apreciação dos juristas se refere à necessidade de consolidação de uma política pública específica de recuperação de empresas.

Naturalmente, uma política pública de recuperação de empresas envolve uma gama de medidas de diversas ordens, como oferta de crédito por intermédio dos bancos públicos e privados, capacitação de profissionais, simplificação da questão tributária, definição de regras claras sobre trava bancária, sucessão das obrigações com relação aos ativos alienados, celeridade processual, entre outras. Tudo isso com o intuito de manter a atividade produtiva, os empregos e a arrecadação tributária, permitir o recebimento dos créditos, evitar desequilíbrios na cadeia produtiva, em síntese: conferir maior solidez à economia nacional.

Há quase uma década o Brasil adotou um novo arquétipo de enfrentamento das crises econômico-financeiras experimentadas pelo devedor empresário. Com efeito, evidenciando-se a deficiência do Decreto-lei nº 7.661/1945 (Antiga Lei de Falências) para o contexto econômico do início da década de 90, entrou na agenda governamental a necessidade de estabelecer outro modelo. Nessa perspectiva, seguindo uma tendência mundial, o legislador nacional se baseou em um valor extremamente relevante para evitar maiores danos em virtude da insolvência do empresário, qual seja, o princípio da preservação da empresa. Esta concepção, longe de trazer qualquer privilégio para o empresário, representa, a rigor, o objetivo de manter unidades produtivas, preservando os interesses dos trabalhadores, do Fisco, dos consumidores (mantendo-se um ambiente concorrencial adequado) e da própria economia, tendo em vista que o encerramento de atividades pode ensejar uma ruptura na cadeia produtiva. Acrescente-se ainda a necessidade de tutelar o crédito, estimulando os investimentos necessários para viabilizar o financiamento da economia nacional por atores públicos e privados.

Com este desiderato, vislumbra-se, a partir daquele momento, a formulação e a implementação efetivamente de uma política de recuperação de empresas. Agora, passados quase dez anos, torna-se adequada a avaliação dessa política pública, a fim de corrigir eventuais deficiências e, portanto, melhorar o ambiente de negócios no Brasil, conferindo maior competitividade para os empresários nacionais. A avaliação da política pública, contudo, até mesmo por força de sua natureza interdisciplinar, apresenta uma série de dificuldades para o pesquisador, mormente o jurista, normalmente, desacostumado com os mecanismos analíticos utilizados para capturar os fluxos dinâmicos da política, com profundas interações entre atores, instituições e um conjunto de crenças, a revelarem muito mais do que a visão estrutural da pirâmide normativa.

Não obstante, a abordagem da Análise Jurídica da Política Econômica (AJPE), linha de pesquisa que propõe um novo arranjo institucional entre o direito, a política econômica e a atuação estatal (estudo convergente com o “Novo Direito e Desenvolvimento no Brasil”), parece oferecer instrumental adequado para engajar de maneira mais intensa os valores consagrados na Constituição Federal de 1988 na construção das políticas públicas, em especial, nessa pesquisa, naquela destinada à recuperação de empresas. Pretende-se neste trabalho, portanto, verificar a aptidão da decomposição analítica do direito da AJPE para apresentar respostas satisfatórias na interpretação da Lei de Recuperação de Empresas e Falências do Brasil.


2 CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS

Atualmente, a dinâmica do Estado vem sendo compreendida por intermédio do instrumental analítico das políticas públicas[1]. Deveras, a partir dos anos 80 o modelo baseado nos grandes sistemas de planejamento exibiu sinais de decrepitude motivados por novas variáveis como as grandes crises financeiras e do petróleo. Assim, fez-se necessária a introdução de mecanismos de respostas estatais mais flexíveis, surgindo nesse contexto a gestão estratégica[2]. Nesse período, outrossim, houve uma cobrança crescente por maior participação democrática, facilitada pelo avanço no campo das comunicações e da informática. Esse conjunto de circunstâncias incorporou à análise estrutural da administração pública uma visão dos fluxos de decisão, isto é, do próprio funcionamento estatal. Tratava-se da construção da ação da máquina administrativa a partir da noção de políticas públicas, um sistema de decisões públicas condicionadas pelo fluxo de reações e valores dos agentes sociais influentes com o desiderato de alcançar determinados fins[3].

Não se desconhece a dificuldade (e talvez impossibilidade) de se formular um conceito jurídico de políticas públicas[4]. Esses obstáculos, contudo, não impedem uma análise jurídica para as políticas públicas, desde que se siga um método compatível com esse complexo de decisões políticas. Nesse sentido, um direito individual pode ser reconhecido, por exemplo, com o fundamento de se encontrar afinado com os objetivos traçados por determinado programa governamental.

A todas as luzes, muitas questões nessa temática permanecem indefinidas, o que, aliás, é natural em face da sua interdisciplinaridade, com problemas envolvendo direito, política, administração, economia, entre outros campos. Não obstante, o desenvolvimento teórico tem se mostrado capaz de lançar novas perspectivas na administração pública. Com este objetivo, será realizada uma decomposição da política pública de recuperação de empresas no Brasil. Os estudos acerca das políticas públicas têm se utilizado da divisão em etapas do ciclo de vida da política, de maneira a capturar mais precisamente a interação entre os atores sociais envolvidos. Nesse sentido, fragmenta-se o estudo da política pública em quatro fases: agenda; formulação; implementação; e avaliação. Em seguida, será realizado o estudo com base em cada uma dessas etapas[5].

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

2.1 agenda

Dessarte, como visto, a primeira fase da política pública é identificada com a agenda, ou seja, o momento em que um determinado tema passa a ser objeto de preocupação dos atores sociais e para o qual se vislumbra um conjunto de medidas com o condão de atender aquela demanda. Assim, no início da década de 90, percebeu-se que o Decreto-lei nº 7.661/45 possuía uma série de deficiências, como por exemplo, morosidade excessiva no trâmite do processo, um procedimento mais direcionado para a liquidação da empresa (o que ensejava o encerramento de empresas economicamente viáveis) e ineficiência na maximização dos ativos, resultando em baixa recuperação dos créditos.

Não seria despiciendo observar que a legislação falimentar possui uma grande importância no desenvolvimento econômico nacional. Deveras, a tutela do crédito é fundamental para o funcionamento do capitalismo na atualidade. No exercício ordinário de sua atividade, os empresários contraem dívidas com a expectativa de saldá-las com os ganhos futuros. Naturalmente, por diversas razões, os esperados lucros podem não ser alcançados, surgindo dificuldade no pagamento dos credores. A busca individual pelos ativos do estabelecimento empresarial pode levar a um desmonte ineficiente das unidades produtivas, tornando o procedimento altamente prejudicial para todos os interesses envolvidos na manutenção da empresa. Além disso, a maior parte dos credores não receberá a totalidade dos seus créditos e, consequentemente, elevará os custos da transação na próxima oportunidade para compensar as perdas e o risco. Com maiores gastos para fomentar a produção, os produtos brasileiros perdem competitividade no mercado externo e mesmo internamente com a concorrência dos importados. Assim, a tendência é gerar menos empregos, tributos etc. Em uma situação extrema, experimenta-se uma crise financeira nacional.

Para evitar esses efeitos extremamente maléficos da inadimplência do empresário, a maioria dos países tem estabelecido um processo de bancarrota organizando os credores. Na realidade, a depender do grau da crise experimentada pelo devedor, opta-se por um procedimento de reorganização (no caso de viabilidade econômica do empreendimento) ou de alienação imediata dos ativos. Neste caso, realiza-se o ativo e há um rateio do produto da arrecadação seguindo uma ordem de prioridades, que no Brasil, em síntese, começa por despesas administrativas da massa falida, salários, créditos segurados, tributos, créditos não-segurados (fornecedores, por exemplo), e acionistas. A legislação falimentar brasileira (Decreto-lei nº 7.661/45) previa os dois procedimentos (a falência e a concordata), contudo se mostrou inoperante. Com efeito, não era capaz de maximizar os ativos (a falta de transparência e a sucessão de obrigações para os adquirentes do estabelecimento deterioravam o patrimônio) e não conseguia reabilitar empresas viáveis, já que apenas aumentava em até dois anos o prazo de pagamento de dívidas (art. 156).

Outrossim, a concordata não passava de um reescalonamento ou abatimento de dívidas (não promovia qualquer reestruturação do empresário) e de efeito restrito aos credores quirografários. Os credores com garantia real podiam executar ativos indispensáveis para a manutenção da atividade. Também os prazos eram excessivamente curtos e os percentuais de pagamento altos (pagamento em dois anos, sendo 50% ao final do primeiro ano), o que praticamente inviabilizava qualquer recuperação. Ademais, a concordata se tratava de um favor legal, com a questão da viabilidade econômica sendo decidida pelo Judiciário, sem a expertise necessária. A legislação ainda não estimulava qualquer acordo extrajudicial, uma vez que, para tanto, seria necessária a aprovação pela unanimidade dos credores para que se tornasse vinculante. Por fim, as dívidas contraídas pela massa não gozavam de prioridade com relação a determinados créditos, o que elevava demasiadamente o custo do crédito para a continuação da atividade em virtude do risco elevado de inadimplemento[6].

Com esse cenário, a necessidade de reforma da legislação falimentar passou a compor a agenda governamental, mormente com as crises econômicas experimentadas pela América Latina ao longo da década de 80. Era o momento de criação de uma lei compatível com a dinâmica econômica da atualidade.

2.2 formulação

No início da década de 90, iniciou-se a segunda fase do desenvolvimento de uma política pública: a formulação. Dessarte, a Portaria nº 233 do Ministério da Justiça instituiu uma Comissão que foi responsável pelo anteprojeto publicado em 27/03/1992 no DOU para fomentar os debates sobre o tema. Desse anteprojeto, foi apresentado o Projeto de Lei nº 4.376/1993. Após mais de dez anos de tramitação e um intenso processo de negociação no Congresso Nacional, foi sancionada em 9 de fevereiro de 2005 a Lei nº 11.101, com publicação na mesma data e entrada em vigor 120 dias após.

O texto aprovado trouxe uma série de alterações para o sistema de enfrentamento das empresas em crise. Com relação à liquidação, previu limitação do crédito trabalhista a 150 salários mínimos (art. 83, I), preferência do crédito segurado com relação ao Fisco (art. 83, II); previsão de alienação do estabelecimento logo após a arrecadação dos bens, preferencialmente, por inteiro (art. 139); isenção do adquirente do estabelecimento com relação às obrigações do devedor (arts, 60, parágrafo único, e 141, II)[7]; e prioridade com relação aos créditos surgidos no bojo do processo de reorganização no caso de falência (art. 84).

De outro lado, o processo de recuperação judicial possui distinções relevantes em comparação com a antiga concordata. Isso porque aquele admite negociação entre credores e devedor (art. 58) e estabelece o automatic stay, ou seja, durante o prazo de 180 dias são suspensas as ações e execuções contra o empresário (art. 6º, § 4º), permitindo uma efetiva reorganização da atividade. Por fim, a nova lei ainda trouxe a possibilidade de recuperação extrajudicial (arts. 161/167), reduzindo custos nos Tribunais e perda de reputação, e uma modalidade mais simplificada para as microempresas e empresas de pequeno porte (arts. 70/72).

Com relação à formulação, pode-se até mesmo traçar uma analogia com o paradigma de Kuhn[8]. Evidencia-se a instituição dos princípios metafísicos com o núcleo axiológico da lei, traçado nos arts. 47 e 75. Nesses dispositivos, são enunciados valores a serem perseguidos como função social, estímulo à atividade econômica, manutenção da fonte produtiva, preservação da empresa, emprego dos trabalhadores, interesse dos credores e preservação e otimização da utilização produtiva dos bens, ativos, inclusive intangíveis, e recursos produtivos da empresa.

De outro lado, há as normas de ação consistentes, em síntese, nos institutos da falência, da recuperação judicial e da recuperação extrajudicial de empresas. A rigor, a maior parte das empresas experimenta crises de diversas ordens: financeira, econômica, patrimonial, entre outras. Para o enfrentamento desses momentos difíceis, em primeiro lugar, elas se valem dos mecanismos próprios do mercado, como alterações na gestão, operações societárias, negociação de dívidas, obtenção de financiamento, mudança no rumo dos negócios, redução de custos etc. O agravamento da crise, entretanto, exige a intervenção estatal de maneira a proteger os diversos interesses envolvidos. Nesse sentido, surgem os institutos da falência, da recuperação judicial e da recuperação extrajudicial com o regramento estabelecido na Lei nº 11.101/2005.

Como terceiro elemento da matriz disciplinar, temos a metodologia caracterizada tanto pela celebração de acordos entre devedor e credores (dentro ou fora de um processo judicial) quanto pela alienação forçada do estabelecimento no processo falimentar. É importante observar que, malgrado a impressão inicial aponte em sentido contrário, a falência também visa à preservação da empresa, contudo sob a titularidade de outro empresário. A falência é do empresário (empresário individual, EIRELI ou sociedade empresária) e não da empresa. Enquanto atividade esta apenas deixa de ser exercida por haver se tornado inviável. O processo falimentar deve ser célere exatamente para evitar a depreciação dos ativos.

Por derradeiro, o paradigma fica completo com os instrumentos postos à disposição dos atores. O art. 50 da Lei nº 11.101/2005 demonstra a amplitude dos meios que podem ser utilizados pelo empresário para superar uma crise econômico-financeira. São exemplos medidas de natureza financeira (remissão parcial e concessão de prazos mais longos), providências societárias (fusões, cisões, transformações, cessões de cotas etc.), alienação do estabelecimento, alteração do controle, mudanças na administração, emissão de valores mobiliários, entre outras. Essa gama de medidas é um dos maiores avanços da nova lei e abre a possibilidade de grandes transformações na empresa, tornando muito efetiva a possibilidade de reerguimento da atividade.

2.3 implementação

A implementação da política pública (terceira etapa) consistiu no reposicionamento dos atores sociais com base na aplicação da própria legislação. Na metáfora do jogo social, houve uma jogada reguladora e se examinam agora as jogadas acionadoras, levando em consideração o conceito de situação[9]. Nesta fase, cabe referência aos novos papéis desempenhados pelo juiz, promotor, administrador judicial, credores (trabalhadores, Fisco, bancos, fornecedores etc.) e empresários. É importante destacar que se trata de uma abordagem backward mapping, ou seja, os elaboradores da política de recuperação de empresas não possuem qualquer controle acerca da execução do programa[10]. A política de recuperação de empresas, aliás, guarda interessantes peculiaridades com relação às demais. Isso porque, em regra, a análise de políticas públicas pelo Judiciário ocorre excepcionalmente com base em alegação de inobservância de direito fundamental por parte do Poder Executivo. Em se tratando de recuperação de empresa, ao revés, os Tribunais são a arena adequada para a construção de acordo entre empresário e credores ou mesmo para a liquidação do ativo. Não há sequer um órgão gerencial que acompanhe o desenvolvimento da política em âmbito nacional, regional ou local.

Um dos principais jogadores com atuação modificada a partir do advento da nova legislação foi o magistrado. Deveras, com a atribuição do poder de deliberar pela aprovação do plano de recuperação judicial aos credores (art. 58, Lei 11.101/2005), em tese, o magistrado teria reduzido seus poderes no âmbito dos processos recuperacionais. Não obstante, o núcleo axiológico expresso na legislação, a necessidade de celeridade processual e a ampliação da utilização da lei acabaram sendo bem recebidas pela magistratura, não havendo manifestação de insatisfação nesse sentido. O magistrado permanece podendo controlar a legalidade do plano (Enunciado CJF 44) e inclusive verificar situações de conflitos de interesse (Enunciado CJF 45)[11].

Com relação à atuação do Ministério Público, ocorreu uma restrição na sua participação no processo falimentar. Isso porque houve veto presidencial ao art. 4º da Lei nº 11.101/2005, que estabelecia a intervenção do promotor em todos os processos de falência e recuperação judicial, bem como naquelas em que a massa falida fosse parte (como previsto no art. 210 do Decreto-lei 7.661/45). Com isso, a atuação do Parquet ocorre nos casos expressamente previstos na lei. O veto foi justificado com o intuito de evitar morosidade pela participação do MP em todos os atos, evitando-se ainda a sobrecarga de trabalho desnecessário das promotorias de justiça. Passados alguns anos da vigência do texto legal, ao que parece, o Ministério Público acabou considerando interessante a restrição para se concentrar nos atos em que o interesse público resta mais evidente. Assim, o Conselho Nacional do Ministério Público editou a Recomendação nº 16, de 28 de abril de 2010, prevendo no art. 5º, XII, que é desnecessária a intervenção do MP antes da decretação de falência ou do deferimento do pedido de recuperação judicial[12].

O terceiro jogador com atuação alterada foi o administrador judicial. A rigor, este personagem teve sua natureza substancialmente modificada. O antigo síndico (na falência) ou comissário (na concordata) era escolhido preferencialmente entre os credores. Todavia, como visto, pela ausência de privilégio com relação aos créditos tributários e trabalhistas, o cargo de síndico não era interessante, já que a chance de recebimento, seja do crédito originário, seja da remuneração pelos seus misteres, era reduzida. Com a Lei nº 11.101/2005, entretanto, esse cenário foi alterado. Isso porque o art. 84 previu como créditos extraconcursais a remuneração do administrador judicial, recebendo antes dos credores tributários, trabalhistas e reais, o que normalmente garante o adimplemento. Ademais, a nomeação passou a ser de livre decisão do magistrado, não recaindo mais, como regra, sobre um dos credores, o que evidenciou sua natureza atual de auxiliar do juízo. A garantia da remuneração, naturalmente, está criando um mercado para o exercício desse múnus público, com atuação frequente de profissionais e pessoas jurídicas especializadas.

Os empresários, outrossim, receberam bem a novel legislação. Os dados apontam para uma crescente quantidade de pedidos de recuperação judicial. Em 2013, houve o recorde de 874 pedidos, demonstrando que os empresários têm confiado no portfólio de soluções da Lei nº 11.101/2005, já que a rejeição dos credores ao plano de recuperação implica na falência da sociedade empresária (art. 56, § 4º).

A seu turno, os credores são divididos em diversas classes com interesses diversos. No caso dos trabalhadores, a Lei nº 11.101/2005 manteve o crédito como privilegiado no art. 83, I, e estipulou prazo máximo para o pagamento dos salários na recuperação judicial (um ano para os créditos vencidos até o pedido de recuperação e 30 dias para o pagamento de até 5 salários-mínimos de créditos salariais vencidos nos três meses anteriores ao pedido – art. 54). Há inclusive a previsão de os trabalhadores assumirem a gestão da sociedade empresária (art. 50, VII). Com relação aos bancos, a lei foi benéfica, uma vez que garantiu posição de prevalência até mesmo sobre o Fisco (normalmente as instituições financeiras representam os credores com garantia real em virtude de contratos de mútuo), conforme art. 83, II. Outrossim, em um processo falimentar mais efetivo, o Fisco ganha na arrecadação com a manutenção das unidades produtivas. Ressalte-se que os tributos gerados após a recuperação judicial também são extraconcursais (art. 84, V). De uma forma geral, os atores receberam bem a nova legislação. As suas jogadas respeitam as balizas estabelecidas pela matriz disciplinar da Lei nº 11.101/2005.

2.4 avaliação

A quarta fase alude à avaliação da política. Com este intuito, o primeiro exame a ser realizado concerne à utilização dos institutos de recuperação de empresas, tanto em termos quantitativos (número de sociedades empresárias que se valeram do instituto) quanto em termos qualitativos (se o instituto está sendo utilizado por grandes sociedades, o que impacta de maneira mais evidente a ordem econômico-social). Sobre o tema, importante sublinhar que a partir do ano 2000 houve uma queda considerável no número de falências e a partir de 2010 o quantitativo se estabilizou, mantendo-se no patamar mais baixo desde que os dados começaram a ser levantados em 1991. Por outro lado, ocorreu aumento substancial no número de recuperações judiciais, com estabilidade a partir de 2009[13]. Naturalmente, esses números decorrem de toda uma conjuntura econômica, mas não deve ser desprezada a relevância da nova lei de recuperações e falências.

A esse respeito, impende observar que das 4.234 sociedades empresárias que ingressaram com o pedido de recuperação após o advento da Lei nº 11.101/2005 até o final de 2013, 1.023 (24%) obtiveram a aprovação do plano pelos credores. Ademais, grandes empresas têm sido preservadas por meio da nova lei, como demonstram os casos da Eucatex S/A Indústria e Comércio (setor moveleiro e de construção civil; mais de 2.000 funcionários)[14] e da Leon Heimer S/A (setor de grupos geradores e soluções em energia)[15], ambas recuperadas. Nessa linha de raciocínio, a importância social da recuperação judicial também deve ser levada em consideração. Evita-se o desemprego de milhares de pessoas, bem como a redução de unidades produtivas, permitindo, outrossim, o estímulo à atividade econômica.

Entretanto, muitos motivos ainda entravam o sucesso das recuperações, mormente das pequenas empresas. Em primeiro lugar, há empresas que se tornam inviáveis pelo endividamento, pela obsolescência, pela mudança do mercado, por crises internacionais, entre outros fatores. Ademais, o empresário protela em demasia a adoção de providências para resolução da crise. De outro lado, o acesso ao crédito fica muito difícil em uma situação de crise, o que praticamente inviabiliza qualquer reestruturação (as grandes empresas se valem, muitas vezes, de fundos de investimentos). Ressalte-se ainda que o custo do processo é muito elevado, tendo em vista que demanda profissionais especializados. No Brasil, outrossim, ainda não há uma cultura de participação dos credores na recuperação, de forma que se torna difícil convencê-los a trocar os créditos por participação acionária. Muitos empreendedores, na qualidade de sócios-administradores, também não estão dispostos a alienar o controle da sociedade empresária (tratando a recuperação simplesmente como um mecanismo de reescalonamento da dívida).

Não obstante, há uma questão de suma importância nessa temática que não pode passar despercebida. Com efeito, indubitavelmente, o reconhecimento da recuperação de empresas enquanto política pública provoca efeitos práticos muito relevantes. O fato de haver uma política tem dado azo a uma interpretação judicial distinta da ordinariamente empregada, ainda que com base na aplicação dos princípios da função social e da preservação da empresa. Alguns temas que chegaram ao Judiciário demonstram esse raciocínio, como, por exemplo, na exigência de certidão negativa de débitos tributários estabelecida na legislação para a recuperação judicial. Deveras, o art. 57 da Lei nº 11.101/2005 impõe a juntada de certidão negativa de débito tributário para a concessão da recuperação judicial, exigência também constante no art. 191-A do Código Tributário Nacional. Ademais, o art. 155-A do CTN estabelece no § 3º que haverá lei específica dispondo sobre o parcelamento de créditos tributários do devedor em recuperação judicial e o § 4º do mesmo dispositivo determina que, enquanto não editada a lei específica (que ainda não foi editada), haverá a aplicação das condições gerais de parcelamento fixadas pelo ente da Federação, não podendo o prazo ser inferior ao da lei federal. Ressalte-se que a lei de parcelamento da União (Lei nº 10.522/2002) permite o pagamento em sessenta parcelas mensais (art. 10)[16].

Entrementes, o Judiciário tem afastado a interpretação literal, que exigiria a adesão ao parcelamento em sessenta meses enquanto não editada a lei específica, para privilegiar a recuperação de empresas, dispensando a certidão negativa[17]. No julgado referido, ainda há a referência à suspensão indireta do processo de execução fiscal, malgrado a lei estabeleça que não ocorreria suspensão, nos termos do art. 6º, § 7º, do diploma recuperacional. A interpretação teleológica utilizada pelos Tribunais, entretanto, vem se utilizando de valores abstratos a partir dos princípios jurídicos da função social e da preservação da empresa. Ademais, essa compreensão não viabiliza a compatibilização de todas as políticas públicas envolvidas, como, por exemplo, a tributária. Pretende-se, então, nessa pesquisa, avaliar se esta forma de interpretação é adequada, bem como examinar a possibilidade de construção de novos parâmetros.

Sobre o autor
Gerardo Alves Lima Filho

Presidente do Sindicato dos Oficiais de Justiça do DF e Oficial de Justiça do TJDFT. Bacharel em Direito pela UFBA, Especialista em Direito pela ESMA/DF e Mestre em Direito pelo UniCEUB. Foi diretor e gestor de diversas entidades representativas de servidores públicos, exerceu o cargo de Policial Rodoviário Federal e foi professor de diversas faculdades de Direito de Direito Empresarial, Civil, Processual Civil e Prática Civil. Publicou inúmeros artigos em sites e revistas jurídicas especializadas. Possui experiência em Direito Administrativo, Previdenciário, Constitucional, Empresarial, Tributário, Civil, Processo Civil, Trabalho, Processo do Trabalho, Penal e Processual Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA FILHO, Gerardo Alves. Análise jurídica da política pública de recuperação de empresas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5053, 2 mai. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56280. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Artigo elaborado quando cursei a disciplina Direito Contratual com o Professor Daniel Amin no mestrado do UniCEUB.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!