3 APLICAÇÃO DA ANÁLISE JURÍDICA DA POLÍTICA ECONÔMICA
O alvorescer do século XXI testemunhou um mundo repleto de um complexo de transformações econômicas, sociais, econômicas e culturais. Todas essas alterações evidenciaram a decrepitude do paradigma econômico vigente para o atendimento do padrão aceitável de respeito aos direitos humanos. A crise financeira, econômica, fiscal e social de 2008 trouxe à baila os riscos de submeter a vida das pessoas a categorias macroeconômicas destituídas de densidade ética. Esse cenário, de outro lado, demonstrou a incapacidade dos juristas de contribuir de maneira efetiva com um novo padrão de governança. Apegados às tradicionais “formas” e “teorias jurídicas”, bem como a importações da filosofia pós-metafísica, os juristas não lograram oferecer modelos capazes de promover transformação social. A impotência jurídica em face de uma realidade extremamente injusta ensejou novas perspectivas acerca do estudo do fenômeno jurídico que se valem da interdisciplinaridade e da influência do estudo empírico na construção das normas jurídicas[18].
A Escola do Direito e Desenvolvimento, nesse contexto, voltou a receber atenção, e busca, em uma nova fase, oferecer instrumental analítico para viabilizar o aperfeiçoamento dos arranjos institucionais, mormente nos países com desenvolvimento tardio. A rigor, pode-se distinguir três momentos distintos na forma de enfrentamento dos problemas de desenvolvimento. Em uma primeira fase, houve triangulação entre uma teoria do desenvolvimento, o Estado como protagonista e o direito público como instrumento de governança. Países como Brasil, Chile, México, Coréia do Sul e Tailândia compartilhavam até 1950 um cenário caracterizado pelo atraso econômico, pela baixa produtividade industrial e falta de competitividade em um ambiente internacional já industrializado, o que era compensado pela redução de custos e salários[19].
No Brasil, a partir do final dos anos de 1940 houve grande influência da teoria do subdesenvolvimento da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina) desenvolvida por autores como Raul Prebisch e Celso Furtado. Predominou nesse momento o protagonismo estatal coordenando as iniciativas sociais e econômicas. Essa linha desenvolvimentista alcançou seu esgotamento no início da década de 80 em decorrência da crise da dívida externa ocasionada pelo aumento dos juros norte-americanos e pelos desarranjos da própria economia política interna, que retiraram a força propulsora dos aparelhos estatais.
No início da década de 90, então, um novo paradigma de desenvolvimento foi estabelecido a partir do Consenso de Washington. Países como Brasil, México, Chile, Argentina, Bolívia, Venezuela e tantos outros convergiram para um modelo marcado pelo protagonismo do mercado com a privatização de algumas empresas estatais e com a criação de Agências Reguladoras Independentes. O Estado assumiu o papel de fazer com que as regras do jogo fossem respeitadas de maneira a estimular os investimentos privados, que trariam desenvolvimento econômico. Entrementes, o neoliberalismo não apresentou os resultados prometidos, mormente para os países em desenvolvimento. A rigor, antes mesmo da grave crise de 2008, o modelo privatista já começava a recuar pela insuficiência das taxas de crescimento e baixa qualidade de vida da maior parte da população[20].
Nesse sentido, o Brasil desde os anos 2000 passou a desenvolver uma agenda denominada de Novo Desenvolvimentismo. Esse modelo possui como características fundamentais o ambiente democrático e o Estado com o papel de estimular o crescimento econômico, ao mesmo tempo em que implementa programas de inclusão social. Não seria despiciendo observar que o Estado nesta quadra precisa agir mediante intenso diálogo institucional, em virtude do fortalecimento da federação brasileira, da própria descentralização administrativa e do amadurecimento da sociedade civil. No novo cenário, o Estado assume a função primordial de fomento econômico. O crescimento dos financiamentos do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) simboliza o novo tipo de participação do Estado da economia, não mais, predominantemente, de forma direta, porém mantendo como agenda o fortalecimento dos agentes privados. De outro lado, destacam-se como providências relevantes da política social o controle da inflação, as medidas de distribuição de renda, a valorização do salário mínimo e a expansão do crédito.
Interessante observar que nesse contexto o papel-chave do aparelho estatal consiste na sua relevante participação na construção e desenvolvimento das políticas públicas. Naturalmente, as políticas públicas não são impostas pelo Estado, mas decorrem de um complexo de decisões políticas envolvendo constante interação de uma série de atores públicos e privados, um conjunto de instituições sociais e um sistema de crenças compartilhadas em determinado tempo e lugar. Avulta de grande relevância, portanto, o desenvolvimento de estudos que articulem possíveis contribuições jurídicas para que o Estado se desincumba satisfatoriamente de seus misteres na coordenação das políticas públicas de desenvolvimento econômico. Esse campo ainda se encontrado cercado de incertezas e não existe um modelo universal capaz de enfrentar os problemas experimentados. O diálogo horizontal e o pragmatismo democrático apontam para um caminho que certamente levará ao amadurecimento de arranjos institucionais específicos, mostrando-se de grande utilidade a inter-relação com países em condições de desenvolvimento semelhantes como os demais BRICS[21].
A rigor, esse estudo das novas relações entre o direito, a economia e as políticas governamentais encontra distintas linhas de pensamento, com um amplo campo de possibilidades a ser investigado. Neste artigo, contudo, haverá o aprofundamento da abordagem denominada de Análise Jurídica da Política Econômica (AJPE) com o objetivo de aferir sua capacidade de contribuir com melhorias no Direito Recuperacional. A AJPE se trata de uma nova abordagem interdisciplinar, desenvolvida por Marcus Faro de Castro, que analisa o conjunto de princípios, regras, instituições, discursos dirigidos à organização da produção, troca e consumo na sociedade. Nessa perspectiva, almeja-se a construção de um instrumental analítico capaz de conciliar interesses materiais, valores morais, culturais, religiosos, motivações psicológicas, entre outros, levando-se em consideração a avaliação empírica, de maneira a possibilitar o desenvolvimento econômico em bases mais equitativas. Outrossim, reconhece-se que as políticas econômicas atuam de maneira distintas sobre as ações e a fruição de direitos dos diversos grupos sociais[22].
Aspecto fundamental da AJPE consiste na inclusão das políticas públicas na análise jurídica. Essa percepção enseja a conversão do significado do interesse público em política pública. A inserção das cláusulas de ordem pública, inclusive, torna tênue o limite entre a política pública e o direito subjetivo. Registre-se que o conteúdo da política importará na promoção ou limitação da fruição de determinados direitos. Duas estratégicas analíticas utilizadas nesse contexto são a “análise posicional” e a “nova análise contratual”[23]. Esse modelo teórico apresenta alternativa inovadora à reconfiguração das entidades governamentais, da sociedade, da política econômica e do direito. Nos estreitos limites deste trabalho, contudo, haverá tão somente a aplicação do procedimento analítico para a interpretação jurídica que leva em consideração as políticas públicas e os diversos direitos fundamentais envolvidos, no âmbito do sistema de recuperação de empresas.
3.1 interpretação teleológico-empírica
Nos últimos anos, o Judiciário tem sido acionado amiúde para o cumprimento das políticas públicas previstas na Constituição Federal de 1988. Essas demandas desafiaram os juristas a buscar soluções aptas a atender às demandas sociais. Modalidades diversas de respostas foram apresentadas sem que nenhuma delas lograsse efeitos satisfatórios. Com efeito, malgrado a diversidade de posições doutrinárias, pode-se sintetizar as soluções em quatro propostas distintas para a resolução das demandas: interpretação formal; interpretação substantiva; ponderação de valores; e Análise Econômica do Direito.
Os defensores da interpretação formalista concentram seus esforços na análise dos dispositivos constantes na Constituição e na lei, não atribuindo grande relevância para as peculiaridades fáticas. Interessante observar a utilização nessa linha argumentativa do princípio da reserva do possível, fundado na distinção consagrada na Alemanha de direitos negativos (ou de defesa contra o Estado, como a propriedade) e positivos (prestacionais – são exemplos a saúde e a educação). Contudo, essa separação é passível de críticas, tendo em vista que a fruição dos direitos negativos também demanda a prestação estatal de serviços de segurança pública, jurisdição, entre outros. A seu turno, a interpretação substantiva almeja a proteção dos grupos vulneráveis. Seus corifeus se dividem entre os que adotam uma linha finalista e aqueles procedimentalistas. O maior problema dessa teoria consiste na desconsideração das implicações de suas escolhas para a ordem econômica. Na prática, é possível que haja perda de competitividade no cenário internacional ou criação de insegurança decorrente do subjetivismo[24].
A interpretação baseada na ponderação de valores, de outro lado, analisa abstratamente os valores em questão. Contudo, esse cálculo prudencial abstrato não é capaz de vislumbrar as dificuldades da realidade fenomênica. Ademais, evidente a dificuldade na construção de soluções capazes de conciliar os interesses em jogo sem que se verifiquem os problemas concretos. Por derradeiro, a Análise Econômica do Direito se baseia no exame do custo-benefício em busca da eficiência econômica, desprezando os interesses e valores não econômicos. Nesse cálculo, não entram, contudo, alguns valores consagrados pela Constituição Federal como orientadores da ordem econômica, tal como a promoção da justiça social [25].
Desta forma, no tema da recuperação de empresas, percebe-se que o julgado comentado anteriormente se valeu dos princípios da função social e da preservação da empresa para afastar a aplicação de regras constantes na mesma Lei nº 11.101/2005. Contudo, essa interpretação foi realizada de maneira abstrata, sem a base empírica que fornecesse subsídios robustos para verificar se a decisão foi adotada de forma compatível com a política pública. Como ressaltado, não há mecanismo seguro para preencher o conteúdo dos princípios sem levar em conta a realidade social, razão pela qual a interpretação aduzida fica carente de fundamentação nos termos defendidos neste artigo.
Propõe-se, portanto, uma interpretação teleológico-empírica como apropriada a capturar os fins da política pública, consagrados no plano legislativo, com base em dados econômicos. Ressalte-se que o ordenamento jurídico brasileiro ampara de forma ampla a interpretação teleológica quando no art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei nº 4.657/42) impõe que o juiz aplique a lei atendendo aos seus fins sociais e às exigências do bem comum. Esta modalidade interpretativa atribui ao magistrado genuína missão política. Não seria despiciendo observar que a previsão da função social (da empresa, dos contratos, da propriedade) apenas reforça esse caráter finalístico, tendo em vista que a legitimidade do direito repousa no cumprimento de seu desiderato.
O Teleologismo Jurídico constituiu uma escola de hermenêutica, fundada por Rudolph Von Ihering na Alemanha. Referido jurisconsulto criticou a jurisprudência conceitualista e a aplicação da lógica formal, sustentando uma interpretação movida pelos resultados, com base no caráter finalístico do Direito. Dessarte, as regras jurídicas são determinadas pelo fim prático e social das instituições jurídicas. Assim, há certa liberdade do intérprete vinculada à consecução dos interesses sociais. Indubitavelmente, a grande contribuição dessa Escola consiste na finalidade prática e social a moldar a interpretação jurídica[26].
De outro lado, o método empírico (ou sociológico) emprega técnica compatível com o atendimento das necessidades sociais, levando em consideração os efeitos reais da legislação. Trata-se de abordagem prospectiva com base nas conseqüências econômicas, políticas, culturais e sociais da aplicação do direito. Nesse sentido, imprescindível o auxílio de outros campos, tais como a Economia, a Ciência Política, a Sociologia etc. O processo sociológico com viés político deve ser o principal na aplicação do Direito. Nesse contexto, importante a referência à Escola Sociológica Americana surgida na primeira metade do século XX, com os nomes de Roscoe Pound, Oliver Wendel Holmes, Benjamim Nathan Cardozo e Louis Brandeis[27]. Carlos Maximiliano já sustentava que o verdadeiro sentido do texto deve ser compatível com o bem social, bem como que o bom intérprete é um sociólogo do Direito[28].
Em um Estado Democrático promotor de políticas públicas, imprescindível que a decisão judicial leve em consideração o seu impacto social e econômico, mesmo porque o Judiciário possui participação, juntamente com outros vários atores sociais, na construção das políticas. Aliás, esse tipo de análise permite uma avaliação da relação daqueles sujeitos dentro da ordem macroeconômica. Um critério dessa natureza, desde que utilizado de maneira transparente, permitiria uma maior articulação dos órgãos estatais na implementação de políticas públicas. Diversos institutos no direito brasileiro consagram as formas de interpretação teleológica e empírica, admitindo argumentos consequencialistas, como por exemplo: a suspensão de segurança na Lei do Mandado de Segurança, a Modulação de Efeitos na declaração de inconstitucionalidade etc.
Desta forma, percebe-se que a análise consequencialista com base empírica, desde que naturalmente respeitando os objetivos expressos da política econômica da Constituição, pode trazer grandes benefícios para a interpretação jurídica. Deveras, o núcleo axiológico da Lei nº 11.101/2005 (arts. 47 e 75) estabelece uma série de princípios e objetivos inseridos na política pública de recuperação de empresas. Para a densificação do conteúdo e compatibilização de todos esses valores com as demais regras e princípios, inclusive com eventuais políticas conflitantes (tributária, de crédito, industrial etc), mister a utilização de dados empíricos. Para tanto, imprescindível o desenvolvimento de um instrumental analítico que ofereça coerência e consistência na interpretação, bem como transparência na fundamentação das decisões. É o que se pretende no próximo tópico.
3.2 procedimento analítico
A AJPE oferece um instrumental analítico apto a avaliar a fruição de direitos no bojo de uma política pública de modo a aferir a concretização de direitos fundamentais. Esse procedimento segue uma série de etapas que confere transparência e viabiliza o controle da análise. Dessarte, percorre-se o seguinte itinerário: 1) identificação do componente da política pública objeto da divergência; 2) indicação do direito fundamental envolvido; 3) realização da decomposição analítica do direito; 4) elaboração da quantificação desse direito; 5) construção de um índice de fruição empírica (IFE); 6) desenvolvimento do padrão de validação jurídica (PVJ); 7) avaliação dos resultados no que tange à efetividade do direito; 8) recomendação de reformas na hipótese de falta de efetividade (ou descompasso entre o IFE e o PVJ)[29].
A primeira fase consiste na identificação do componente da política pública que está gerando celeuma. O tema exemplificado no primeiro capítulo, envolvendo a política pública de recuperação de empresas, trata da exigência da apresentação de certidão negativa de débitos tributários para a concessão da recuperação judicial levando em consideração a mora legislativa em não estabelecer o parcelamento especial previsto na legislação de regência. Em segundo lugar, na ótica da AJPE, deve haver a descrição dos direitos potencialmente afetados. Em se tratando de recuperação de empresas, o número de envolvidos é elevado. Com interesses diretos e indiretos, podem ser apontados: empresário, credores em geral (recebimento dos créditos), trabalhadores (manutenção dos empregos), fornecedores, Fisco (geração de novas receitas tributárias), consumidores (manutenção da oferta de produtos específicos e da concorrência), demais integrantes da cadeia produtiva e governo (em função da geração de emprego e renda e dos riscos para o mercado de crédito).
Neste momento, passa-se à “decomposição analítica de direitos” (terceira etapa), isto é, à análise do conjunto de prestações relacionado com a fruição empírica do direito à produção. No que tange à política de recuperação de empresas, necessário destacar a capacitação de profissionais pela política educacional, o oferecimento de infraestrutura para escoamento da produção, uma política tributária simplificada e de acordo com a capacidade do contribuinte, uma oferta de crédito com taxas competitivas, uma política energética que mantenha preços razoáveis, segurança pública, acesso a matéria-prima, pesquisa e inovação tecnológicas etc. Pode-se pensar nesse contexto na oferta de isenção tributária, linhas especiais de crédito, contratos com o Estado, barreiras a investimento estrangeiro, entre outras medidas[30].
Como por exemplo, o Relatório Doing Business de 2014 do Banco Mundial indica que em uma comparação da economia de 189 países, o Brasil se encontra na posição 116, com base nos seguintes tópicos: abertura de empresas; obtenção de alvarás de construção; obtenção de eletricidade; registros de propriedades; obtenção de crédito; proteção de investidores; pagamento de impostos; comércio entre fronteiras; execução de contratos; e resolução de insolvência[31]. Outrossim, irão balizar a decisão os dados do Índice de Competitividade Mundial (World Competitiveness Yearbook – WCY). Na edição 2014, o Brasil caiu para a colocação 54 de um total de 60 países. A pesquisa se baseia em quatro pilares de competitividade: performance econômica; eficiência do governo; eficiência dos negócios; e infraestrutura. O Brasil apresentou alta de preços, baixa participação no comércio internacional, burocracia trabalhista e regulatória, alta carga tributária, taxas de juros desestimulantes (malgrado a participação do BNDES tenha sido relevante na oferta de crédito), baixa produtividade empresarial e déficits acentuados de infraestrutura básica (estradas, portos, aeroportos, energia), tecnológica (telefonia, internet, entre outras) e de educação[32].
Do mesmo modo, podem ser utilizados os dados do Global Competitiveness Report. No Relatório Mundial de Competitividade 2013-2014 elaborado pelo Fórum Econômico Mundial, o Brasil ficou na colocação 56 de um total de 148 países. Para a construção do índice doze fatores de competitividade são levados em consideração: instituições; infraestrutura; ambiente macroeconômico; saúde e educação primária; educação superior e capacitação; eficiência do mercado de bens; eficiência do mercado de trabalho; desempenho do mercado financeiro; prontidão tecnológica; tamanho do mercado; sofisticação dos negócios; e inovação[33].
Com relação à quantificação do direito à recuperação judicial (quarta fase), pode-se levar em consideração os princípios, regras, instrumentos (recuperação judicial, recuperação extrajudicial e a falência), mecanismos (alienação de estabelecimento, renegociação da dívida, operações societárias etc.) e instituições da Lei de Recuperações e Falências. Na avaliação do direito à recuperação judicial, desse modo, os dispositivos da Lei nº 11.101/2005 devem funcionar como ponto de partida para a análise do caso concreto. Para a construção de um índice de fruição empírica (IFE) – quinta etapa, faz-se mister salientar que todos os relatórios referidos alhures apresentam uma série de dados e índices que demonstram as dificuldades experimentadas pelo empresário no Brasil. A construção de um índice que aponte para o grau de fruição do direito de produção, portanto, se mostra possível. Não se pretende nesse trabalho a indicação efetiva de um índice, mesmo porque o tema é de grande complexidade e envolve diversas políticas públicas e direitos de grupos diversos.
Também não parece adequado um índice definitivo, mas apenas a estipulação de caminhos para a compatibilização dos direitos com as políticas públicas. A avaliação de políticas públicas possui natureza política tanto quanto as outras fases[34], razão pela qual a sugestão proposta neste artigo aponta para a criação de um Comitê com representação de todos os segmentos envolvidos para oferecer parecer com dados técnico-empíricos no bojo do processo de recuperação judicial. No caso concreto, portanto, o Comitê irá verificar a efetiva fruição do empresário ao direito de produção, o que dependerá da conjuntura a que está submetido (uma pequena rede varejista enfrenta obstáculos distintos de uma grande siderúrgica com foco na exportação).
No que tange ao padrão de validação jurídica (PVJ) – sexto passo, podem ser utilizados tanto os precedentes que se formaram com base na metodologia exposta quanto os dados sobre resolução de insolvências do relatório Doing Business do Banco Mundial[35]. Assim, o Brasil aparece no Relatório de 2014 ocupando a 135ª posição (de um total de 189 países), com um prazo médio de 4 anos para o procedimento de insolvência, custo de 12% do patrimônio do devedor e taxa de recuperação de 19,5 centavos por dólar. Malgrado ainda precise melhorar muito, pode-se considerar a Lei nº 11.101/2005 um sucesso, já que no ano de 2004, o prazo da insolvência era de 10 anos, com custo de 9% do patrimônio e taxa de recuperação de 0,2 centavos por dólar. Pela similaridade dos desafios experimentados pelas respectivas economias, poderia se adotar como parâmetro, por exemplo, a média dos BRICS como objetivo imediato a ser perseguido.
Na sétima fase, avalia-se a efetividade do direito à produção por parte do empresário em crise. Nesse sentido, a partir dos dados de competitividade levantados, haverá a verificação se as dificuldades enfrentadas decorreram de culpa do empresário (má gestão, falta de planejamento etc.) ou foram fruto da conjuntura econômica (custo do crédito e da energia, tributação elevada e burocrática, entre outras hipóteses). Caso se identifique, por exemplo, a culpa do empresário, mas para a política pública seja importante a recuperação, provavelmente a melhor solução para concretização dos princípios da preservação da empresa e da função social será a alienação do estabelecimento empresarial para que outro empresário assuma a atividade de forma mais eficiente. Na hipótese de crise decorrente da conjuntura econômica, o empresário terá direito à recuperação e o Estado deverá promover os meios como oferta de crédito a juros adequados, incentivos fiscais, treinamento de profissionais etc.
Por fim, no que tange à reforma em decorrência da falta de efetividade do direito (oitava e última etapa), com relação ao exemplo sob exame, naturalmente se verifica a necessidade da edição de uma lei concedendo parcelamento especial para viabilizar a superação da crise econômico-financeira por uma empresa viável e até lá, caso se verifique empiricamente que o entendimento se compatibiliza com as políticas públicas em jogo, pode-se dispensar a certidão negativa ou mesmo aplicar algum parcelamento especial dos programas de recuperação fiscal (como o “Refis da Crise”, por exemplo). No presente trabalho, optou-se por se trabalhar com o exemplo da exigência de certidão negativa de débitos tributários na recuperação judicial. Não obstante, o intuito foi apenas assentar as bases para uma nova interpretação jurídica da política pública de recuperação de empresas que será útil para a avaliação de outros tantos casos, como a prorrogação do prazo de 180 dias para a suspensão das ações e execuções contra o devedor empresário[36], a suspensão das execuções fiscais[37], entre outros.