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O princípio da proteção da confiança aplicado à Administração Pública

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Agenda 14/07/2017 às 13:20

São perfeitamente harmonizáveis os princípios da legalidade, da supremacia do interesse público sobre o privado e da proteção da confiança.

1. Introdução.

O presente trabalho anela proporcionar ao leitor uma melhor compreensão acerca do princípio da proteção da confiança, cada vez mais em voga na jurisprudência pátria, como consequência da valorização dos princípios no ordenamento jurídico, notadamente no que concerne ao reconhecimento da sua normatividade, fruto do pensamento neoconstitucionalista.

Entre os princípios, destaca-se a boa-fé, mais especificamente na sua vertente objetiva, resultado de uma nova visão do Direito, que tomou corpo com a elaboração do Código Civil de 2002, dando ênfase ao valor da eticidade nas relações jurídicas.

Ademais, como fundamento ao princípio em epígrafe, faz-se uma breve digressão acerca do Estado de Direito, previsto na Constituição da República Federativa do Brasil, e do princípio da segurança jurídica.

Busca-se, sobretudo, dar enfoque ao princípio da proteção da confiança na atuação da Administração Pública, trazendo-se, ao final, aplicações efetivadas pelos Tribunais Superiores.

1.1. Breves considerações sobre os princípios.

De início, para uma melhor compreensão sobre as considerações principiológicas a serem expostas, faz-se necessário breve apontamento sobre o gênero norma jurídica. Isso porque se deve diferenciar norma (regra, princípio ou postulado) de texto, sabendo que “normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos” (ÁVILA, 2006, p. 30).

Partindo dessa compreensão, pode haver textos dos quais não derivam qualquer norma, bem como poderá haver normas que não se originam de texto expresso (não possuem um suporte físico), mas apenas da interpretação de um ou mais dispositivos.

Ademais, existe ainda a hipótese de um mesmo dispositivo funcionar como lastro para a construção de regras, princípios e postulados. Propõe-se, com esse raciocínio, uma alternativa inclusiva, segundo a qual os textos podem originar, simultaneamente, mais de uma espécie normativa.

O fundamental, todavia, é compreender que não existe necessariamente a correspondência entre texto e norma, razão pela qual tais termos devem ser adequadamente compreendidos e utilizados.

Outra observação importante consiste na responsabilidade científica que se deve ter na aplicação dos princípios, no intuito de proceder a uma utilização racional e fundamentada dos mesmos, que não se preste a arbítrio ou a “decisionismos” meramente subjetivos.

De fato, como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello (2011, p. 54), os princípios são o “mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para exata compreensão e inteligência delas [...]”. Destarte, se utilizados de modo pernicioso e irresponsável, serão malignas as consequências que advirão, assim como seria prejudicial, no estágio atual da ciência do Direito, uma “interpretação jurídica imunizada da influência principiológica” (MAFFINI, 2005, p. 27).

Sem dúvidas, há diversas tentativas de se conceituar o que seja princípio, de modo que o entendimento adotado guiará a tarefa hermenêutica de sua compreensão. Conquanto haja expressivos autores que tratam sobre a matéria, na presente monografia será adotada a tese esposada pelo professor Humberto Ávila (2006), para o qual os princípios são normas imediatamente finalísticas, ou seja, visam precipuamente à determinação de um fim juridicamente relevante. Ensina ainda o citado jurista:

Com efeito, os princípios estabelecem um estado ideal de coisas a ser atingido (state of affairs, Idealzustand), em virtude do qual deve o aplicador verificar a adequação do comportamento a ser escolhido ou já escolhido para resguardar tal estado de coisas. Estado de coisas pode ser definido como uma situação qualificada por determinadas qualidades. O estado de coisas transforma-se em fim quando alguém aspira conseguir, gozar ou possuir as qualidades presentes naquela situação. (ÁVILA, 2006, p. 71)

 Assim, o aplicador deve fazer uma leitura finalística dos princípios, identificando o estado ideal de coisas almejado (finalidade) e promovendo os comportamentos idôneos ao alcance desse mesmo current state of affairs.

É importante ainda ter em mente a essencial colaboração constitutiva dos aplicadores do Direito para a concretização dos princípios.

Precisamente porque os princípios instituem fins a realizar, os comportamentos adequados a sua realização e à própria delimitação dos seus contornos normativos dependem [...] de atos do Poder Judiciário, do Poder Legislativo e do Poder Executivo, sem os quais os princípios não adquirem normatividade. (ÁVILA, 2006, p. 78)

A partir de tal premissa é que se vai investigar (a) como os tribunais vem aplicando em suas decisões o princípio da proteção da confiança, (b) a positivação de dispositivos tendentes a realizar o estado ideal de segurança e confiança, (c) bem como a atuação da Administração diante dos casos concretos enfrentados.

Registre-se ainda a existência de princípios que se caracterizam por impor a realização de uma finalidade mais ampla, que engloba outras mais restritas (subprincípios). Trata-se dos chamados sobreprincípios, que detêm “uma função de amalgamação dos vários subprincípios que lhe dão conformação” (MAFFINI, 2005, p. 31). Como exemplo, cita-se o Estado de Direito, sobre o qual se passa a discorrer, posto que a proteção da confiança dele deriva, mesmo que mediatamente.

1.2. Do Estado de Direito.

Embora não seja simples a tarefa de apreender o conceito do que seja Estado de Direito, tentar-se-á enveredar pelo assunto, mesmo que de forma perfunctória, no intuito de facilitar o acompanhamento da linha de raciocínio adotada.

Como base, deve-se ter em mente que o Estado de Direito deflui de norma expressa da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB)[1], de caráter eminentemente principiológico, devendo, como foi mencionado acima, ser encarado como sobreprincípio, “dada a amplitude de suas finalidades, bem como pelo fato de que coliga e é fundamentado por uma variada gama de outros princípios (subprincípios), dotados de fins menos amplos” (MAFFINI, 2005, p. 33).

É marcante, em qualquer conceituação proposta, o fato de o Estado de Direito ser aquele submisso à ordem jurídica, constitucional ou infraconstitucional, por ele mesmo criada. Nesse sentido, deve ser uma organização que se autolimita. Sem tal característica, não há que se falar em Estado de Direito.

Mello (2011) propõe um conceito baseado em duas premissas teóricas, quais sejam, (a) a de Rousseau, com a afirmação do princípio da igualdade de todos os homens e, como decorrência, a soberania popular; e (b) a de Montesquieu, segundo o qual todo aquele que detém poder tende a abusar dele e o poder vai até onde encontra limites.

Desse modo, o Estado de Direito seria “um modelo de organização social que absorve para [...] o mundo jurídico, uma concepção política e a traduz em preceitos concebidos expressamente para a montagem de um esquema de controle do poder” (MELLO, 2011, p. 49).

Silva (2009) aponta como características básicas do Estado de Direito a submissão ao império da lei, a divisão de poderes e o enunciado e garantia dos direitos individuais.

No Brasil, fala-se modernamente em Estado Constitucional, tendo como norte e fundamento a supremacia da Constituição e a garantia da prevalência dos direitos fundamentais (RODOVALHO, 2012).

1.3. Da segurança jurídica como corolário do princípio do Estado de Direito.

Nessa toada, ressalte-se que a segurança jurídica é princípio aplicável a todas as áreas do Direito; no entanto, tomar-se-á, para mais detida verificação, a sua aplicabilidade na seara do Direito Público, com vistas a sua repercussão nas práticas da Administração.

Na lição do professor Almiro do Couto e Silva (2004), o Estado de Direito seria composto de um aspecto material, sustentado pelos ideais de justiça e segurança jurídica, e de um aspecto formal, no qual se destacam (a) a existência de um sistema de direitos e garantias, (b) a divisão das funções do Estado e (c) a legalidade da Administração Pública.

Ressalte-se, na temática delimitada para este trabalho, que há julgados[2] do Supremo Tribunal Federal (STF) relacionando diretamente o sobreprincípio do Estado de Direito com o princípio da segurança jurídica, cuja ideia equivale a um anseio antropológico do ser humano, sendo um elemento justificador e imanente do Estado e do próprio Direito (MAFFINI, 2005, p. 39). Canotilho (2012, p. 257) aduz que “o homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida”.

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O objetivo primeiro, a razão que, antes de qualquer outra, leva o homem a realizar direito, está numa exigência de ordem e segurança. [...] O homem – cabe reiterar – para poder conviver com os demais, necessita de saber não só o que pode fazer, mas também o que esperar que os outros façam. [...] Se a situação fosse diferente, logo descambaríamos para o caos. Não haveria certeza em relação a nada. E uma sensação de absoluta intranquilidade se apossaria de todos. A convivência se transformaria em um verdadeiro martírio. (CAVALCANTI FILHO, 1964, p. 53 e 58 apud RODOVALHO, 2012, p. 298)

Ademais, do princípio da segurança jurídica e de sua significação decorrem também um conjunto de valores e noções como certeza, estabilidade, previsibilidade e confiança, valores estes presentes em diversas normas jurídicas de nosso ordenamento[3].

Nesse contexto, embora a segurança jurídica seja comumente considerada um subprincípio derivado do Estado de Direito, em relação a outros princípios mais específicos, como é o caso da proteção da confiança, pode ser abordada como um sobreprincípio, daí se falar em função mediatizadora da segurança jurídica, ligando o princípio do Estado de Direito ao princípio da proteção da confiança.

1.4. Da segurança jurídica ao princípio da proteção da confiança.

Para se perceber a ligação entre os princípios objetos do presente tópico, considerar-se-á a sistematização tripartite da segurança jurídica apresentada por Maffini (2005).

Num primeiro aspecto, segurança jurídica induz à ideia de previsibilidade, entendida numa perspectiva ex ante, acerca das medidas ou comportamentos do Poder Público. Nesse sentido, o estado de coisas anelado conduz à necessidade de que os administrados tenham condições de antever as possibilidades de atuação administrativa. Tal aspecto é concretizado por pressupostos como o da irretroatividade legal, o da legalidade e o da proteção da confiança.

Numa segunda dimensão, a segurança é compreendida segundo a noção de acessibilidade ao agir estatal, requerendo transparência da atuação administrativa, notadamente através da publicidade efetiva, adequada e suficiente dos atos administrativos e da necessidade de motivação de suas decisões, que deverão ser exaradas com clareza, coerência e precisão, com o escopo de facilitar o entendimento e o controle por parte dos administrados.

Em arremate, numa terceira acepção, o autor considera novamente a segurança jurídica em função da previsibilidade, dessa vez numa perspectiva ex post, no sentido de estabilidade ou permanência das relações jurídicas, que não se apresenta, por óbvio, de forma absoluta, mas requer um mínimo de continuidade. Nesse modo de ver, o princípio da segurança jurídica conforma institutos como a coisa jugada[4], a decadência e a proteção da confiança.

Percebe-se que se falou em proteção da confiança tanto quanto ao aspecto de previsibilidade (ex ante), aqui numa feição objetiva, cuja seara de estudo costuma extrapolar os limites do Direito Administrativo, enveredando principalmente para o Direito Constitucional e para o Direito Tributário, como quanto ao de estabilidade, numa feição subjetiva desse subprincípio, tratada como feição substancial da proteção da confiança, que proporciona a preservação de atos e de seus efeitos, mesmo que editados de modo contrário à ordem jurídica[5].

Assim é que Canotilho (2012, p. 257) ensina:

Estes dois princípios – segurança jurídica e proteção da confiança – andam estreitamente associados, a ponto de alguns autores considerarem o princípio da proteção da confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica. Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objetivos da ordem jurídica – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – enquanto a proteção da confiança se prende mais com as componentes subjetivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos atos dos poderes públicos.

Além das três dimensões supracitadas, deve se mencionar as duas formas de incidência da segurança jurídica, conforme lições de Almiro do Couto e Silva (2004, p. 36), cujo entendimento é também partilhado por J.J. Canotilho, consoante se percebe através do excerto acima transcrito.

Na primeira forma, de sentido objetivo, abordam-se os limites à retroatividade dos atos do Estado, notadamente quanto à proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, conforme constitucionalmente preservados[6].

Já na segunda forma, de sentido subjetivo, protege-se a confiança das pessoas no pertinente aos atos, procedimentos e condutas do Estado, no qual se encaixa propriamente a proteção substancial da confiança[7].

Nessa linha, Maffini chega à seguinte conclusão:

a proteção da confiança deve ser considerada como um princípio deduzido, em termos imediatos, do princípio da segurança jurídica e, em termos mediatos, do princípio do Estado de Direito, com precípua finalidade voltada à obtenção de um estado de coisas que enseje estabilidade, previsibilidade e calculabilidade dos atos, procedimentos ou simples comportamentos estatais e que traz consigo deveres comportamentais mediatos que impõem a preservação de atos estatais e de seus efeitos. (MAFFINI, 2005, p. 48-49)

Destarte, no presente trabalho, será dado foco ao princípio da proteção da confiança, como alicerce da necessária estabilidade de que devem gozar os atos administrativos.

1.4.1 Proteção da confiança como princípio constitucional.

Consoante explicado no início do presente capítulo, não se pode confundir texto e norma, principalmente porque há normas que podem ser extraídas da interpretação sistêmica de diversos dispositivos ou mesmo de apenas um artigo, sem que tenham suporte físico expresso.

Nesse sentido, a positivação expressa de um princípio não se afigura necessária para que o mesmo tenha índole constitucional.

Desse modo, conforme demonstrado, é sustentável o reconhecimento do feitio constitucional do princípio da confiança através de uma dedução do sobreprincípio do Estado de Direito (art. 1º, CRFB), dedução mediatizada pelo princípio da segurança jurídica (constrói-se, nessa linha, a seguinte sequência: Estado de Direito/segurança jurídica/proteção da confiança).

Maffini (2005, p. 73) condensa a lição a ser transmitida:

[...] o estado de coisas que é almejado pela proteção da confiança, consubstanciado na estabilidade das relações jurídicas, em face de condutas ou promessas advindas da atividade da Administração Pública, compõe a noção de segurança jurídica, a qual, por seu turno, é um dos elementos conformadores do Estado de Direito, cuja posição constitucional não se pode colocar em dúvidas.

A partir dessa conclusão, depreende-se que o princípio da proteção da confiança, caso se aceite o entendimento de que tem assento constitucional, poderia ser utilizado como parâmetro em sede de controle de constitucionalidade das leis e dos atos da Administração, exigindo do intérprete e do aplicador do Direito que o inclua na ponderação a ser realizada com os demais princípios constitucionais explícitos ou implícitos.

1.5. A boa-fé e o princípio da proteção da confiança nas práticas administrativas.

A boa-fé é noção que se firmou, desde o mundo romano, no Direito Privado, subdividindo-se em boa-fé subjetiva e objetiva. Aquela atua no campo das intenções, diz respeito ao substrato psicológico do agente, ao sentimento pessoal de estar agindo conforme o Direito. Já a boa-fé objetiva se relaciona com o dever de lealdade do agente, de manutenção de uma conduta proba, nos termos do padrão de moralidade exigido, de correção e lisura do comportamento das partes reciprocamente envolvidas numa relação jurídica.

Conquanto a boa-fé seja deveras relevante na seara privada, tendo em vista que o particular deverá pautar sua conduta pela lealdade, sob o risco de, não o fazendo, gerar situação de crise e desconfiança mútua, em que seria tormentosa qualquer relação jurídica[8], far-se-á restringir sua abordagem ao âmbito da Administração Pública.

Referindo-se à necessidade de agir de boa-fé perante os administrados, Mello (2011, p. 119-120) aduz que “a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso [...] produzido de maneira a confundir [...] o exercício de direitos por parte do cidadão”.

Nesse sentido, a noção de boa-fé se aproxima da ideia de segurança jurídica aqui defendida, pela qual, nos vínculos entre o Estado e os indivíduos, “se assegura uma certa previsibilidade da ação estatal, do mesmo modo que se garante o respeito pelas situações constituídas [...] ou reconhecidas pelo Poder Público” (COUTO E SILVA, 2004, p. 36).

Aproxima-se, também, e consequentemente, do princípio da proteção da confiança, em particular quando se considera que a boa-fé objetiva “se torna operativa com vistas à produção de um estado de confiança mútua” (MAFFINI, 2005, p. 53), impondo um comportamento orientado pelos padrões de moralidade e lealdade na relação recíproca entre Administração Pública e administrado. Desse modo, aquela deve gerar nos particulares a expectativa de que saberá respeitar e considerar seus interesses legítimos e leva-los à concretização.

Todavia, proteção da confiança e boa-fé, embora sejam conceitos bastante aproximados, não se confundem. A boa-fé, na verdade, é apenas um dos pressupostos para a aplicação do princípio da proteção da confiança, sobretudo em relação aos atos administrativos concretos. Isso porque a boa-fé confere legitimidade à confiança gerada no administrado.

1.6. Dos possíveis óbices à aplicação do princípio da proteção da confiança.

O princípio da proteção da confiança foi apresentado como sendo de natureza constitucional (seguindo a sequência Estado de Direito/segurança jurídica/proteção da confiança); todavia, este princípio tem sido preterido pela Administração, em especial quando há colisão com outros princípios considerados pelo agente público, em si mesmos, como mais importantes, tais quais os princípios da legalidade e da supremacia do interesse público sobre o privado. Como exemplo do que foi dito, a Administração tem anulado atos administrativos mesmo após o decurso de considerável período de tempo[9], baseado na preponderância dos valores supracitados.

No presente tópico, buscar-se-á demonstrar que a oposição de tais princípios, como óbices à aplicação da proteção da confiança no caso concreto, é argumento falacioso, não devendo prevalecer, já que podem ser harmonicamente compatibilizados no ordenamento jurídico pátrio, como se passa a demonstrar.

1.6.1. Legalidade administrativa.

De início, deve-se criticar a hipertrofiada utilização deste princípio como valor absoluto no Direito Administrativo. Por essa razão, afigura-se importante explanar como a legalidade e a proteção da confiança se cotejam e se compatibilizam através de instrumentos hermenêuticos de ponderação, de modo que, em determinadas situações, uma terá maior peso do que a outra para a solução do impasse.

Para compreender a legalidade administrativa, não se pode prescindir da lição do professor Hely Lopes Meirelles, segundo o qual “enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza” (2009, p. 89).

Segundo Mello (2011, p. 99), este é o “princípio capital para a configuração do regime jurídico-administrativo”, sendo corolário direto do Estado de Direito.

É o fruto da submissão do Estado à lei. É, em suma: a consagração da ideia de que a Administração Pública só pode ser exercida na conformidade da lei e que, de conseguinte, a atividade administrativa é atividade sublegal, infralegal, consistente na expedição de comandos complementares à lei. Para avaliar corretamente o princípio da legalidade e captar-lhe o sentido profundo cumpre atentar para o fato de que ele é a tradução jurídica de um propósito político: o de submeter os exercentes do poder em concreto – o administrativo – a um quadro normativo que embargue favoritismos, perseguições ou desmandos. (MELLO, 2011, p. 100)

Numa visão mais ampla, pode-se enxergar a legalidade não só como vinculação à lei em sentido estrito, mas também a todo o Direito, inclusive aos seus princípios, consoante expressa o art. 2º, I, da Lei nº 9.784[10].

Por essa razão, a conduta e os atos administrativos não devem ser pautados apenas pelas leis em sentido estrito que lhe sejam próprias, mas segundo todo o arcabouço jurídico-normativo, englobando regras, princípios e postulados, ou seja, conforme uma legalidade mais ampla, também chamada juridicidade (MAFFINI, 2005).

Nesse sentido é que se compreende o cotejo a ser realizado entre legalidade e proteção da confiança, na medida em que “a segurança jurídica – e assim a proteção da confiança – não fica postada sob a lei, mas acima, ou, pelo menos, ao lado dela” (MAFFINI, 2005, p. 64).

Com efeito, não olvidando a patente importância do princípio da legalidade na seara administrativa, pondera-se que o mesmo não pode ser colocado, a priori, em patamar superior aos demais princípios, notadamente em relação aos que também apresentam natureza constitucional, mas ao lado deles, no escopo de conferir a máxima efetividade a todos os princípios integrantes do ordenamento jurídico pátrio.

Discorrendo sobre o princípio da máxima efetividade, Uadi Lammego Bulos assim esboça:

Também chamado de princípio da eficiência interpretativa ou da interpretação efetiva, seu objetivo é imprimir eficácia social ou efetividade às normas constitucionais, extraindo-lhes o maior conteúdo possível, principalmente em matéria de direitos humanos fundamentais. (2011, p. 451)

Destarte, conclui-se que a preponderância do princípio da proteção da confiança, após adequado sopesamento, também pode atender, mesmo que em menor grau, ao princípio da legalidade, desde que vista a partir dessa ideia mais ampla de juridicidade.

1.6.2. Supremacia do interesse público sobre o privado.

A supremacia do interesse público constitui uma das bases de sustentação do regime jurídico-administrativo brasileiro. Celso Antônio Bandeira de Mello, discorrendo sobre o interesse público, dá-nos a seguinte lição:

[...] na verdade, o interesse público, o interesse do todo, do conjunto social, nada mais é que a dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, dos interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da Sociedade (entificada juridicamente no Estado), nisto se abrigando também o depósito intertemporal destes mesmos interesses, vale dizer, já agora, encarados eles em sua continuidade histórica, tendo em vista a sucessividade das gerações de seus nacionais. (2011, p. 60)

Desse modo, compreende-se que não deve haver absoluta desvinculação entre interesses públicos e individuais, além de se desmistificar a ideia de que os interesses públicos seriam insuscetíveis de serem defendidos por particulares, notadamente porque estes são interessados diretos na defesa do interesse coletivo.

Aprofundando a reflexão sobre o princípio em análise, Mello “proclama a superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como condição até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último [interesse particular]” (2011, p. 70).

A Lei 9.784/99, em seu art. 2º, parágrafo único, II, conceitua o princípio da supremacia do interesse público de forma vaga, limitando-se a afirmar que consiste no atendimento aos fins de interesse geral[11].

Dessumem-se duas consequências deste princípio, quais sejam, (a) posição privilegiada do órgão encarregado de zelar pelo interesse público e exprimi-lo, nas relações com os particulares e (b) posição de supremacia do órgão nas mesmas relações (MELLO, 2011, p. 70).

Ocorre que o mencionado princípio vem sendo objeto de críticas nos últimos tempos[12], sobretudo pela vagueza e imprecisão do que se possa compreender por interesse público. A ressalva maior é de que a noção de interesse público é facilmente manipulável e pode ser usada para perpetrar inúmeras arbitrariedades cometidas pela autoridade pública pouco escrupulosa.

No intuito de evitar qualquer tipo de excesso, deve haver certas limitações ao referido princípio, as quais repousarão especialmente no princípio da legalidade, de modo que as prerrogativas e privilégios da Administração Pública, enquanto tal, deverão ser fundadas em preceitos legais e constitucionais, como instrumentos de previsibilidade e de direito fundamental de contenção do poder[13].

Com base nisso, Maffini defende que

a existência de algumas prerrogativas públicas não pode induzir à conclusão de que a Administração Pública sempre teria uma posição vantajosa em prejuízo dos interesses privados. Não se pode, pois, desconsiderar o extenso rol de direitos e garantias fundamentais propositalmente colocados no início do texto da Constituição Federal, que não permitiriam fossem os interesses dos cidadãos simples e aprioristicamente preteridos por um abstrato interesse público. (2005, p. 69)

Em conclusão, embora seja o interesse público finalidade inafastável do agir administrativo, deve-se relembrar a inexistência de cisão absoluta entre este e o interesse privado, conforme vem sendo defendido.

Assim, em determinadas situações, a proteção de interesses individuais, com base no princípio da proteção da confiança, coincidirá com a proteção do interesse público, notadamente através da preservação da segurança jurídica, com a consequente “tutela de interesses privados consubstanciados na proteção de expectativas legitimamente depositadas pelos cidadãos nos atos ou procedimentos da Administração Pública” (MAFFINI, 2005, p. 70).

1.7. Da aplicação do princípio da proteção da confiança nos tribunais pátrios[14].

No presente ponto, investigar-se-á como alguns tribunais pátrios vêm aplicando o princípio da proteção da confiança, notadamente quanto à preservação de atos administrativos eivados de nulidade, mas cuja edição foi realizada há tempo considerável.

Em pesquisa realizada no sítio virtual do STF, no dia 20 de agosto de 2013, com a chave de busca “proteção da confiança”, foram encontrados 48 (quarenta e oito) acórdãos[15].

Dentre as decisões, destaca-se o acórdão proferido no Agravo Regimental na Medida Cautelar na Ação Cautelar nº 3.172 / DF (AC 3172 MC-AgR), relatado pelo Ministro Celso de Mello, com julgamento em 19 de fevereiro de 2013.

Em apertada síntese, o caso trata de portaria que, após 15 (quinze) anos, revogou a nomeação do indivíduo para o cargo de agente da polícia federal. Pela importância dos ensinamentos, transcrevem-se alguns trechos do voto emitido pelo ministro relator:

A fluência de tão longo período de tempo culmina por consolidar justas expectativas no espírito do administrado e, também, por incutir, nele, a confiança da plena regularidade dos atos estatais praticados, não se justificando a ruptura abrupta da situação de estabilidade em que se mantinham, até então, as relações de direito público entre o agente estatal, de um lado, e o Poder Público, de outro.

[...]

A essencialidade do postulado da segurança jurídica e a necessidade de se respeitarem situações consolidadas no tempo, amparadas pela boa-fé do cidadão (seja ele servidor público, ou não), representam fatores a que o Judiciário não pode ficar alheio [...] *grifo e sublinhado nossos. (BRASIL, 2013)

Além desse julgado, pode-se mencionar também o Mandado de Segurança nº 28.953 / DF, relatado pela Min. Carmem Lúcia, com julgamento em 28 de fevereiro de 2012, cujo voto proferido pelo Min. Luiz Fux, acompanhando a relatora, merece destaque em pequeno trecho:

Eu registro também que é da doutrina do Supremo Tribunal Federal o postulado da segurança jurídica e da proteção da confiança, que são expressões do Estado Democrático de Direito, revelando-se impregnados de elevado conteúdo ético, social e jurídico, projetando sobre as relações jurídicas, inclusive, as de Direito Público. De sorte que é absolutamente insustentável o fato de que o Poder Público não se submeter também a essa consolidação das situações eventualmente antijurídicas, pelo decurso do tempo. (BRASIL, 2012, grifo e sublinhado nossos)

Já em pesquisa realizada no site do Superior Tribunal de Justiça, em 20 de agosto de 2013, com a chave de busca “proteção da confiança”, foram encontrados 51 (cinquenta e um) acórdãos[16].

Percebe-se ser ainda tímida a utilização do termo “proteção da confiança” na fundamentação de decisões do STJ, especialmente na seara administrativa. É mais corrente o uso das expressões boa-fé e segurança jurídica, mesmo que, na prática, pela análise dos argumentos utilizados, haja uma clara defesa da proteção da confiança, como é o caso do Recurso Especial nº 1098490 / SC, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, com julgamento em 05 de março de 2009[17].

Por último, em pesquisa feita no banco jurisprudencial do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, em 20 de agosto de 2013, com o critério de pesquisa “proteção da confiança”, foram encontrados 49 (quarenta e nove) acórdãos[18].

Entretanto, assim como ocorre na jurisprudência do STJ, também é incipiente a utilização expressa do princípio da proteção da confiança na fundamentação dos acórdãos do TRF5 na seara administrativa.

Desse modo, percebe-se que, no que concerne ao Direito Administrativo, nos Tribunais pesquisados, ainda há preferência pela utilização, na fundamentação das decisões, de princípios como a boa-fé objetiva e a segurança jurídica, embora por vezes esteja implícito e não nominado o conteúdo do princípio da proteção da confiança, notadamente por ser decorrência do princípio da segurança jurídica e ter a boa-fé como pressuposto de aplicação, pois esta confere legitimidade à confiança gerada nos administrados.

Sobre o autor
Paulo Henrique Sá Costa

Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Atualmente exerce o cargo de Procurador do Estado do Piauí.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Paulo Henrique Sá. O princípio da proteção da confiança aplicado à Administração Pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5126, 14 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58790. Acesso em: 24 nov. 2024.

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