Toda a atividade da administração pública é norteada pelos princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público. O fim, e não a vontade, domina todas as formas de administração. Para realizar as suas funções, a administração pública recorre à colaboração de terceiros. Uma das formas de atuação conjugada da administração pública com o particular é o contrato administrativo, derivado de um procedimento licitatório. No entanto, existem ocasiões em que a administração pública recebe da lei autorização para deixar de licitar, se assim entender conveniente ao interesse público, dentre elas, cito a do inc. IV do art. 24 da Lei Federal n° 8.666/93, in verbis:
“É dispensável a licitação nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos.”
Muito se tem discutido sobre a legalidade de contratos administrativos com dispensa de licitação para contratação do serviço de coleta de lixo, decorrentes de situação de emergência ou calamidade, fruto, na verdade, da desídia da administração pública municipal no Estado do Rio de Janeiro, demonstrando falta de planejamento adequado para tratar a execução do serviço, que é de sua essencialidade inafastável por questões de saúde pública.
Na acepção trazida pelos dicionários da língua portuguesa, Aurélio entre outros, desídia tem mesmo sentido que inércia, negligência, desleixo, descaso ou incúria. No ramo do Direito Administrativo, desídia é sinônimo de falta de planejamento ou de ausência de previsão para necessidades previsíveis.
As Cortes de Contas, criticam, assim, e acertadamente, casos em que o administrador público sabe quando se terá o término de determinado contrato, conhecendo-se, também o tempo necessário para selecionar o futuro contratado através de prévio procedimento licitatório, porém não se inicia, em tempo hábil o procedimento de contratação, ou se atende de forma tempestivamente decisões emanadas das Cortes de Contas que pugnam pela correção de irregularidades e inconsistências identificadas nos Editais submetidos à sua fiscalização, gerando situação que se terá que contratar direto (sem licitação), sob pena de se comprometer a saúde e vida de pessoas, colocando em risco sua segurança, bem como a segurança do patrimônio público e de serviços essenciais.
É usual, nesses casos, dizer que se trata de emergência ficta ou fabricada ou controlada, para diferenciá-la da real, mas parcela significativa da doutrina e da jurisprudência (conjunto das decisões e interpretações das leis realizadas pelos tribunais superiores, adaptando as normas às situações de fato) estão reputando ilegais os contratos decorrentes dessas situações.
A propósito, indispensável a lição de Lucas Rocha Furtado que, por sua pertinência, merece reprodução, ipsis litteris:
“Admitir que o contrato decorrente da contratação direta justificada por situações emergenciais criadas pela desídia do administrador seja válido, e buscar apenas a punição desse administrador negligente, é entendimento que legitima o conluio entre administrador e empresa ou profissional contratado. Essa empresa ou profissional contratado poderia vir a ser escolhido arbitrariamente – e no mais das vezes o é – e em relação a ele muito pouco ou nada poderia ser feito, haja vista o contrato, de acordo com esse ponto de vista, ser considerado legítimo. O entendimento do Tribunal de Contas da União, conforme já observamos, é no sentido de considerar que a desídia do administrador não poderá jamais justificar a contratação emergencial sem licitação. Outro aspeto relevante de ser considerada ilegal e contratação emergencial diz respeito à responsabilização criminal do servidor que a realizou, com base no que dispõe o art. 89 da Lei 8.666/93. Do contrário, se a contratação for tida como lícita, a desídia do administrador irá importar em que tipo de responsabilização? Se o contrato é lícito, legal, não há como punir alguém que tenha praticado ato ilícito. A desídia, por sí só, não teria o poder de implicar qualquer tipo de punição do servidor.” (Curso de Licitação e Contratos Administrativos. Teoria, Prática e Jurisprudência. São Paulo: Atlas. 2001. P. 75.)
Penso, contudo, de forma diferente, pois a meu ver, ainda que decorrente de conduta desidiosa, a dispensa por urgência ou calamidade deve ser reputada legal. Entendo que a coletividade não pode ser penalizada duas vezes, uma com a própria desídia do administrador público municipal, e outra com a impossibilidade de ver resolvida situação que compromete a vida de pessoas ou a incolumidade de bens públicos, fato que se verificaria caso a dispensa fosse reputada ilegal. Ademais, há valores que a lei pretende que sejam preservados, quais sejam, a vida de pessoas e a segurança de bens, cuja pretensão não encontra limitações. Com efeito, a lei não condiciona a dispensa a que a situação seja emergência real, não cabendo ao intérprete agregar essa situação.
Isso não quer dizer que se está a premiar o administrador público municipal desidioso, negligente e causador de situação de emergência ficta (ou mesmo o contratado) ou que ficará a salvo das consequências, id est, condenação por improbidade administrativa e crime de dispensa indevida de licitação, pela afronta aos artigos 15, §7°, inc. II (que permeia o princípio do planejamento), da Lei Federal n° 8.666/93, e o art. 74, incisos I (dever de atendimento das metas de governo) e II (obrigação de ser eficaz), da Constituição Federal.
O Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, recentemente, para ser mais preciso, em sessão do dia 22.06.2017, ao analisar o processo TCE-RJ n° 203.328-4/17, foi incisivo ao afirmar que as contratações diretas, por emergência, de serviços de limpeza urbana por desídia do administrador público municipal são irregulares e serão consideradas quando da análise das suas contas de gestão, in verbis:
“Destaco que em todas as contratações diretas materializadas pela Administração Municipal, o principal e cabal fundamento não é outro senão a suposta impossibilidade no atendimento tempestivo das decisões emanadas desta Corte que pugnam pela correção de irregularidades e inconsistências identificadas nos respectivos instrumentos convocatórios submetidos à sua fiscalização. A pergunta que, a meu sentir, precisa ser respondida neste momento, é de que forma a prestação dos aludidos serviços continuará a ser feita após o esgotamento do prazo de vigência (07.07.2017) do contrato emergencial n° 01/2017 (n° 203.889-8/17), já que o edital concebido com o escopo de regularizar tal situação restou – frise-se, mais uma vez – revogado. Tais fatos, a nosso sentir, levam-nos a presumir (iuris tantum) que as emergências invocadas podem enquadrar-se naquilo que, doutrinariamente, convencionou-se denominar de “fabricadas” ou “controladas”, i.e., aquelas decorrentes de falta de planejamento, desídia ou incúria da Administração Pública, ao deixar “ [...] de tomar tempestivamente as providências necessárias à realização da licitação previsível. Assim, atinge-se o termo final de um contrato sem que a licitação necessária à nova contratação tenha sido realizada.” Com efeito, a desídia administrativa e a inexistência de planejamento das contratações públicas atinentes aos serviços em testilha – atentatórias aos princípios mais comezinhos que norteiam a Administração Pública, dentre os quais se destaca o da eficiência (art. 37, caput) -, ao que tudo indica, constitui prática recorrente naquele Município, merecendo desta Corte, nesse espetro, posicionamento firme em defesa da norma constitucional programática plasmada no inciso XXI, do artigo 37. (...) Por último, alerto ao jurisdicionado que os atos praticados pelo gestor público, analisados individualmente neste e em outros processos, poderão, conforme sua relevância, ser considerados quando da análise das contas de gestão do administrador por esta Corte de Contas, no exercício de sua competência constitucional prevista no art. 71 II da Carta da República. Neste ponto, cito lição do Professor Luiz Henrique Lima, Conselheiro Substituto do Tribunal de Contas de Mato Grosso, que aponta, de forma bastante didática, as diferenças entre contas de governo e contas de gestão, in verbis: “De outro modo: as contas de governo propiciam uma avaliação ʽmacroʼ, de natureza política, verificando-se, por exemplo, se foram cumpridos os valores mínimos constitucionalmente previstos para aplicação em saúde e na manutenção e no desenvolvimento do ensino (CF: arts. 198, §§1°, 2° e 3°, e 212); já as contas de gestão proporcionam uma avaliação ʽmicroʼ eminentemente técnica, examinando-se os aspetos da legalidade, legitimidade e economicidade ao nível de um determinado contrato ou ordem de pagamento.” Assim, no julgamento das contas de gestão, deverá ser levado em consideração o conjunto de atos praticados pelo ordenador de despesas durante o exercício a fim de embasar a conclusão pela sua regularidade ou irregularidade. Cabe ressaltar que esta Corte tem o dever de encaminhar à Justiça Eleitoral a lista dos responsáveis cujas contas sejam julgadas irregulares, para fins de avaliação quanto à declaração de inelegibilidade por 8 anos, para qualquer cargo público, nos termos do art. 1°, I, “g” da Lei Complementar n° 64/90.” (Plenário do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, Voto GA-3, Processo Eletrônico n° 50058/2017, da Relatoria da Conselheira Substituta Andrea Siqueira Martins) [o negrito e o grifo não é meu]
Conclusão: no Estado do Rio de Janeiro, as consequências serão ainda mais rigorosas para o administrador público municipal desidioso, negligente e causador de situação de emergência ficta (ou mesmo o contratado) para as contratações diretas (por emergência) de serviços de limpeza urbana. Além da condenação por improbidade administrativa e crime de dispensa indevida de licitação, pela afronta aos artigos 15, §7°, inc. II (que permeia o princípio do planejamento), da Lei Federal n° 8.666/93, e o art. 74, incisos I (dever de atendimento das metas de governo) e II (obrigação de ser eficaz), da Constituição Federal, o administrador público municipal desidioso terá sua conta de gestão julgada irregular pela Corte de Contas do Estado do Rio de Janeiro, com eventual declaração de inelegibilidade por 8 anos pela Justiça Eleitoral.