Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

Multiparentalidade: análise dos efeitos sucessórios a partir do precedente do Recurso Extraordinário nº 898.060 do Supremo Tribunal Federal

Exibindo página 1 de 4
Agenda 30/06/2017 às 11:18

A multiparentalidade já encontra o necessário amparo jurídico. Ela é vista como uma nova espécie de ligação entre os indivíduos, abarcando não só os laços biológicos, como também os afetivos.

Resumo: O presente trabalho busca realizar uma análise, passando pelos aspectos constitucionais e civis, sobre a viabilidade sucessória, ante a multiparentalidade, em decorrência do precedente normativo aberto pelo Recurso extraordinário nº 898.060, do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Passaremos por uma análise da evolução do instituto da família, abordando a mutação de sua definição até os modelos presentes em nossa atual sociedade, analisando a hodierna proteção jurídica dada ao afeto e seus reflexos. Abordaremos como a doutrina e a jurisprudência atual enxerga a possibilidade de coexistência entre as relações biológicas e afetivas presentes na multiparentalidade e a possibilidade de produção concomitante de seus efeitos no campo sucessório, discutindo a igualdade de filiação, o direito à herança e a produção de reflexos nos aspectos patrimoniais e extrapatrimoniais e a efetiva segurança jurídica.

Palavras-chave: Multiparentalidade. Pais afetivos e biológicos. Herança. Direito sucessório.


INTRODUÇÃO

Ao decorrer do tempo, a evolução social traz novas formas de organização familiar que estão à margem da vivência matrimonial. Assim, temos a necessidade de evoluir e de modernizar as disciplinas jurídicas que têm relação direta com o tema.

Durante esse desenvolvimento social, o instituto da família sofreu as mais variadas e bruscas modificações até os dias atuais. Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, podemos constatar as variações no sentido de família acompanhando a evolução e os movimentos sociais, que são uma forte característica da atual forma de sociedade.

Começam a surgir as relações familiares afetivas, onde afeto externa uma relação parental que vai além da existência ou não de genes que liguem os indivíduos. Passam a existir pais afetivos e biológicos, presentes de formas e momentos distintos, mas não menos importantes, passa a existir a coexistência de paternidades, socioafetiva e biológica, a multiparentalidade.

O estudo será feito a partir do precedente aberto pelo Supremo Tribunal Federal, buscando analisar os aspectos doutrinários e jurisprudencial e legal a fim de descrever sua aplicação no âmbito sucessório e descrever a sua repercussão para o atual ordenamento jurídico.

Será desenvolvida uma metodologia dialética, baseada em uma técnica de investigação teórica, em forma de pesquisa exploratória, especificamente um estudo doutrinário, jurisprudencial e legal, por meio do banco de dados como do Google Acadêmico e do Supremo Tribunal Federal, utilizando-se de uma abordagem qualitativa, ou seja, não se pretende utilizar qualquer valor numérico matemático.

Nesse sentido, temos que a pesquisa de cunho qualitativa se equivale a obter dados por meio de analises dos dados referentes ao estudo, conforme Michel (2015).

Já para Goldenberg (1997), em uma pesquisa qualitativa não há representatividade numérica, sim o entendimento de certo fato social. Vamos discutir a evolução do conceito de família, passando pela multiparentalidade e os aspectos afetivos e suas conceituações abordando sua evolução histórica e seus impactos no ordenamento jurídico pátrio, além de abordando os aspectos constitucionais de proteção à igualdade entre os filhos, independentemente de sua origem, em seus aspectos sucessórios.

O núcleo desse trabalho é a análise do precedente aberto pelo Supremo Tribunal Federal – STF, através do Recurso Extraordinário - RE 898.060, quais os efeitos diretos no direito sucessório da prevalência de ambos os laços afetivos e biológicos. Será analisada a 10 possibilidade de haver ou não as consequências patrimoniais e extrapatrimoniais, a partir da premissa de o assento de nascimento conter ou não a verdade genética oculta ou desconhecida.

Esclareceremos, neste trabalho, os reflexos da filiação afetiva e multiparentalidade na ordem sucessória sob a ótica do julgamento do Recurso Extraordinário nº 898.060 do Supremo Tribunal Federal. Isto posto, elucidar o precedente aberto pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário nº 898.060 e seus efeitos sucessórios, bem como a efetividade da segurança jurídica e os efeitos gerados a partir desse precedente.


1. FAMÍLIA: EVOLUÇÃO HISTÓRICA, JURÍDICA E SOCIAL

Aqui, iremos retratar o início do instituto da família e sua evolução histórica através da nossa sociedade e em nosso ordenamento. Veremos que a formação da família bem como suas espécies evoluíram tanto quanto evoluiu nossa sociedade e seus conceitos.

Durante o decorrer do século XX, antes de chegarmos à Carta Magna de 1988, as demais constituições brasileiras utilizavam de uma abordagem específica, de modo a termos apenas alguns pontos abordados, conforme veremos, sem que houvesse um trato disciplinado no que se refere à deveres e direitos da família.

A Constituição Federal de 1988 é um marco para essa evolução familiar no Brasil, levando em consideração o momento histórico social que vivíamos e a mutação do pensamento comum sobre a família prevista no Código Civil de 1916, onde era absoluta a forma patriarcal como modelo de instituição familiar.

1.1. A EVOLUÇÃO INSTITUCIONAL DA FAMÍLIA: OS ASPECTOS SOCIAIS, E A CONSTRUÇÃO DA MULTIPARENTALIDADE.

Com a sociedade, surge a necessidade entre os homens de desenvolver regramentos que possam garantir e direcionar a convivência social de forma a assegurar a harmonia que deve haver entre os indivíduos. Nesse sentido, é de fácil constatação a evolução conjunta da sociedade e do direito e a existência de um dinamismo próprio que nos possibilitou a chegar aos dias atuais e nos permitirá evoluir ainda mais.

A evolução da sociedade nos aponta novas formas de organização social e familiar e de definição ao instituo da família, que estão à margem da vivência matrimonial. Assim temos a necessidade de evoluir e de modernizar as disciplinas jurídicas que têm relação direta ao tema.

Com sua origem, o instituto da família, passar ser visto como uma instituição de cunho obrigatório dentro da sociedade. Com um início social bastante conservador, a família em seu início, não necessitava de qualquer traço de um laço de afetividade entre seus membros.

Inicialmente, a família era vista como uma instituição patriarcal e hierarquizada. Tínhamos o patriarca como chefe e essência nuclear do instituto familiar, a ele cabia a manutenção e os direitos inerentes à família, e sua formação objetivava apenas posição social e perpetuação do nome.

A economia da época da origem do instituto familiar era formada em sua essência pela agricultura, e com a família passa a ter uma melhor administração das atividades do campo, uma vez que os filhos serviam de mão de obra.

A família tinha uma formação extensiva, verdadeira comunidade rural, integrada por todos os parentes, formando unidade de produção, com amplo incentivo à procriação. Era uma entidade patrimonializada, cujos membros representavam força de trabalho. O crescimento da família ensejava melhores condições de sobrevivência a todos. O núcleo familiar dispunha de perfil hierarquizado e patriarcal (DIAS, 2015, p. 30).

A partir de uma análise das famílias romanas e gregas, podemos averiguar mais um aspecto patriarcal em sua essência. Tais famílias possuíam uma formação a ser baseada em “organização política cujo princípio básico era a autoridade, e esta abrangia todos quantos a ela estavam submetidos.

O pater familias era, ao mesmo tempo, chefe político, sacerdote e juiz” (NOGUEIRA, 2006, p. 73). Sendo o pater considerado um Deus, a que se incumbia a função de proteção do lar. Havia um culto secreto e obrigatório onde os mortos da sua genealogia deviam ser adorados. “O primeiro filho era encarregado de continuar o culto aos ancestrais; se deixasse de fazê-lo, traria, com sua conduta, infelicidade e morte para a família” (NOGUEIRA, 2006, p. 78).

O que caracterizava essas famílias não era o laço vindo da consanguinidade, mas sim uma subordinação ao mesmo pater famílias. “O que unia os membros da família antiga não era o nascimento ou o sentimento, mas a religião do fogo sagrado e dos antepassados; assim, só fazia parte da mesma família aquele que fosse iniciado no seu culto” (NOGUEIRA, 2006, p. 79).

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Hodiernamente, essa concepção pretérita de traços obrigatórios e doméstico passa a ser substituída por um direito individual, cidadão, a partir de uma realidade construída no seio da sociedade, que estabelece uma descentralização do modelo familiar, uma democratização igualitária independente do matrimônio, impulsionada pelo afeto como núcleo familiar (FARIAS; ROSENVALD, 2014, p.36).

Hoje, a sociedade não tem mais na procriação para produção no campo e o culto aos deuses ancestrais os núcleos basilares da formação das famílias. A modernização social, libertou os homens e mulheres da prisão do patriarcalismo e de sua consequente hierarquia, e na busca de cada indivíduo pela felicidade e de seu desenvolvimento pessoal o afeto começa a tomar lugar na sociedade.

A transição da família como unidade econômica para uma compreensão igualitária, tendente a promover o desenvolvimento da personalidade de seus membros, reafirma uma nova feição, agora fundada no afeto. Seu novo balizamento evidencia um espaço privilegiado para que os seres humanos se complementem e se completem. Abandona-se, assim, uma visão institucionalizada, pela qual a família era, apenas, uma célula social fundamental, para que seja compreendida como núcleo privilegiado para o desenvolvimento da personalidade humana (FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 38).

Vejamos que, para Farias e Rosenvald (2014, p. 43), a família moderna é um conjunto democrático, descentralizado e não patriarcal, com proteção essencial do seu núcleo familiar, de forma a tutelar o próprio indivíduo. Assim, a família passa a existir em função daqueles que a compõem, o que para os autores, ajusta-se chamar de família eudemonista, cuja característica principal é a busca pela felicidade de forma pessoal e solidária dos componentes familiares.

Hodiernamente, podemos encontrar, na carta magna, modelos de famílias que são independentes do casamento, como a união estável e a comunidade a ser formada por qualquer dos seus pais e seus descendentes, denominada “família monoparental”. Conforme Ministro Ayres Britto (2011, p.3):

Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil, bem como a Inexistência e hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico (ADI 4277, Relator (a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, p. 3)

Para fortalecer esse pensamento, Lôbo (2011, p. 20) diz que a realização pessoal da afetividade, no ambiente de convivência e solidariedade, é função básica da família de nossa época. Temos então, que a antiga noção da família foi superada, uma vez que à prevalência do afeto na família moderna modificou a função que a mulher tinha no seio da família patriarcal.

Começam a surgir às relações familiares afetivas, onde afeto externa uma relação parental que vai além da existência ou não de genes que liguem os indivíduos. Passam a existir pais afetivos e biológicos, presentes de formas e momentos distintos, mas não menos importantes, passa a existir a coexistência de paternidades, socioafetiva e biológica, a multiparentalidade, harmonizando-se com a realidade social hodierna, fundamentando-se na carta magna que no artigo 270, caput, de seu escopo jurídico aduz que é dever do Estado proteger a família, base de nossa sociedade. Podemos destacar aqui, a valiosa conclusão de Maria Berenice Dias (2010, s.p).

Não mais se pode dizer que alguém só pode ter um pai e uma mãe. Agora é possível que pessoas tenham vários pais. Identificada a pluriparentalidade, é necessário reconhecer a existência de múltiplos vínculos de filiação. Todos os pais devem assumir os encargos decorrentes do poder familiar, sendo que o filho desfruta de direitos com relação a todos. Não só no âmbito do direito das famílias, mas também em sede sucessória. (...) Tanto é este o caminho que já há a possibilidade da inclusão do sobrenome do padrasto no registro do enteado

Isto posto, verifica-se que, no início, o modelo familiar era da união entre homem e mulher de uma forma obrigatória a formar uma instituição com fulcro em uma sociedade conservadora, moralista e patriarcal, onde havia uma necessidade de procriação para desenvolvimento da economia predominante agrícola e geração de mão de obra a partir dos filhos. Ainda assim, no entanto, a evolução social modificou toda essa noção familiar, com as conquistas dos direitos das mulheres e o fim de uma sociedade patriarcal e a busca pela felicidade dos indivíduos e de seu desenvolvimento pessoal com o surgimento do núcleo basilar familiar do afeto.

O modelo familiar tradicional sofreu mutações profundas e as mais diversas alterações no transcurso do tempo. Para comprovar isso, temos hodiernamente novos arranjos familiares. Dessa forma, surgem as famílias monoparentais, recompostas, avoengas, anaparentais, decorrentes de uniões estáveis, homoafetivas e poliafetivas, dentre outras configurações possíveis.

Nesse cenário social, diante de toda essa evolução de conceitos e valores, onde as famílias estão estruturando-se nesses mais diversificados formatos e padrões, temos cada vez mais afastado a noção de família sendo apenas ligada por traços genéticos, biológicos ou decorrentes dos efeitos matrimoniais, passando o afeto a ser o núcleo definidor da entidade familiar.

Dentro desse contexto, temo a multiparentalidade, uma nova espécie de ligação entre nos indivíduos, ligados por vários vínculos, tanto biológico quanto afetivo. Conforme Pereira (apud Buchmann, 2013, p. 51) temos que a multiparentalidade é “o parentesco constituído por múltiplos pais, ou seja, quando um filho tem mais de um pai e/ou mais de uma mãe”.

Trata-se a multiparentalidade de uma relação harmônica entre uma multiplicidade de pais ou mães, afetivos e biológicos, com o afeto como essência em busca da felicidade, e do melhor para a criança ou o adolescente envolvido. Vejamos o que aponta Kirch e Copatti (2013, p.339):

A multiparentalidade significa a legitimação da paternidade/maternidade do padrasto ou madrasta que ama, cria e cuida de seu enteado (a) como se seu filho fosse, enquanto que ao mesmo tempo o enteado (a) o ama e o(a) tem como pai/mãe, sem que para isso, se desconsidere o pai ou mãe biológicos. A proposta é a inclusão no registro de nascimento do pai ou mãe socioafetivo permanecendo o nome de ambos os pais biológicos.

Dias (2010, p.49) nos mostra ainda que a multiparentalidade “decorre da peculiar organização do núcleo, reconstruído por casais onde um ou ambos são egressos de casamentos ou uniões anteriores. Eles trazem para a nova família seus filhos e, muitas vezes, têm filhos em comum”. A autora aponta ainda que “as famílias pluriparentais são caracterizadas pela estrutura complexa decorrente da multiplicidade de vínculos, ambiguidade das funções dos novos casais e forte grau de interdependência”.

Ocorre que a multiparentalidade passa a ser uma forma de compreensão no plano jurídico daquilo que ocorre na realidade fática de nossa sociedade. Nos traz segurança de coexistência de paternidade afetiva e biológica como direito no instituo da família (KIRCH & COPATTI, 2013).

Assim, uma hipótese jurídica para que o genitor biológico ou afetivo, fundados nos princípios da afetividade e dignidade da pessoa humana, estabelecerem seus vínculos familiares, surgindo assim a multiparentalidade, admitindo no mundo jurídico a realidade fática.

Constituição Federal

Art. 226, § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. (BRASIL, 1988)

Podemos constatar, conforme Maurício Cavallaazi Póvoas (2012, p.79), que a multiparentalidade

Trata-se da possibilidade jurídica conferida ao genitor biológico e/ou do genitor afetivo de invocarem os princípios da dignidade humana e da afetividade para ver garantida a manutenção ou o estabelecimento de vínculos parentais (2012, p. 79)

Com esse contexto familiar hodierno, aflora o fenômeno da multiparentalidade, resultante do reconhecimento da socioafetividade e do surgimento das diversas formas de famílias advindas da liberdade de formação e desconstituição das entidades familiares. Não obstante a pluripaternidade também pode resultar ainda de adoção que não destrua o passado, das chamadas técnicas de reprodução assistida e das famílias poliamoristas.


2. O ORDENAMENTO JURÍDICO E AS ESPÉCIES DE FAMÍLIA

É indispensável que se faça um estudo sobre as espécies de família contempladas em nosso ordenamento, para uma melhor compreensão da evolução conceitual da família em nosso âmbito jurídico. Importante salientar que hodiernamente a família não mais se atém ao modelo previsto no Código Civil de 1916, onde sua formação apenas encontrava possibilidade através do matrimônio. Conforme ensinamentos de Dias (2015, p.130-144), temos 5 espécies de família, a serem: a monoparental, a parental, a pluriparental, a paralela e a eudemonista.

A Constituição Federal de 1988, nos trouxe em seu artigo 226, § 4º, a entidade da família monoparental, cujo a qual é a realidade de grande parte das famílias brasileiras modernas. Trata-se daquela onde temos o filho ou filhos e apenas um dos genitores (DIAS, 2015, P. 139-140). Vejamos que o artigo. 226, § 4º, da Constituição Federal de 1988, aduz que: “entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.

Com a parental, ou ainda anaparental, temos a formação familiar a partir da convivência entre pessoas, que podem ou não ser parentes, mas que a cima disso possuem o intuito familiar. No exemplo citado por Dias (2015, p. 140), temos o fato de duas irmãs que possuem a convivência juntas e que a partir dessa convivência, adquirem patrimônio em conjunto e no caso de haver o falecimento de uma das irmãs, a autora afirma: “A solução que se aproxima de um resultado justo é conceder à irmã, com quem a falecida convivia, a integralidade do patrimônio, pois ela, em razão da parceria de vidas, antecede aos demais irmãos na ordem de vocação hereditária”.

A multiparental, ou pluriparental, denomina-se para Dias (2015, p. 141) como sendo a “pluralidade das relações parentais, especialmente fomentadas pelo divórcio, pelo recasamento, seguidos das famílias não matrimoniais e das desuniões”. Chamado pela autora ainda de família-mosaico, temos a composição de relacionamentos pretéritos, que podem trazer para a nova família filhos já concebidos e na maioria das vezes novos filhos comuns ao novo casal. Nesse sentido a autora afirma ser caracterizada essa espécie pela multiplicidade de vínculos, ambiguidade dos compromissos e a interdependência.

Vejamos, ainda, que as famílias multiparentais são as formadas pela coexistência múltipla de pais ou mães em busca, biológicos e afetivos, onde temos o desenrolar de funções importantes no desenvolvimento do filho. Conforme afirmam Teixeira e Rodrigues (apud JANNOTTI et al, 2013, p. 3):

A multiparentalidade pode ter como causa o fato de o pai biológico desconhecer o nascimento de seu filho, razão pela qual outra pessoa passa a exercer a função paterno/filial. Outro fator é o surgimento crescente das famílias recompostas, em que pode ocorrer uma superposição de papeis parentais, já que, por vezes, o padrasto/madrasta passa a exercer faticamente a autoridade parental, sem que haja, contudo, o afastamento do genitor do convívio com o filho. É possível, ainda, a multiparentalidade temporal, em que a recomposição familiar ocorre após a morte do pai ou mãe biológico e o padrasto/madrasta passa a exercer esta função. Nesses casos, o registro de nascimento deveria conter o real histórico parental

A paralela, é uma espécie de família presente em nossa sociedade a muito tempo, e com um certo desprezo por parte de nossa sociedade, caracteriza-se pelo concubinato daquele que já possui um vínculo matrimonial ou de união estável.

Mesmo com toda controvérsia social envolvendo esse tipo de família, Dias (2015, p. 50-51) afirma ser de grande mérito para o direito, uma vez que, na maioria das vezes essa união resulta em filhos e há impacto no âmbito jurídico, assim, não ver essa relação, não lhe outorgar qualquer efeito, atenta contra a dignidade dos partícipes e filhos porventura existentes. Conforme o código Civil de 2002, em seu art. 1.727: “as relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato”

A eudemonista, é fundado na base afetiva, e tem como função exclusiva a busca pela felicidade dos indivíduos, por meio de realização pessoal ou profissional. “Reconhecimento do afeto como único modo eficaz de definição da família e de preservação da vida” (Dias, 2015, p 143), o que acaba com o formato antiquado da hierarquia e passa a abranger de forma mais democrática a entidade familiar, “em que as relações são muito mais de igualdade e de respeito mútuo, e o traço fundamental é a lealdade” (DIAS, 2015, p. 144).

Corrobora com esse pensamento o ilustre Silvio de Salvo Venosa:

A unidade familiar, sob o prisma social e jurídico, não mais tem como baluarte exclusivo o matrimônio. A nova família estrutura-se independentemente das núpcias. Coube à ciência jurídica acompanhar legislativamente essas transformações sociais, que se fizeram sentir mais acentuadamente em nosso país na segunda metade do século XX, após a Segunda Guerra. Na década de 70, em toda a civilização ocidental, fez-se sentir a família conduzida por um único membro, o pai ou a mãe. Novos casamentos dos cônjuges separados formam uma simbiose de proles. (VENOSA, 2011, p.6)

Podemos constatar então que hoje temos um rol mais amplo para a formação das famílias em nosso ordenamento, não sendo mais cabível apenas a família oriunda do matrimônio, sendo hodiernamente uma forma mais abrangente apara a sua formação, baseando-se não só no matrimônio, mas inclusive no afeto em todas as suas formas. Dias (2010, p.43), transcende o antiquado e tradicional conceito de família a fim de alcançar uma noção que mais se adeque à atual realidade.

Uma visão pluralista da família, que abrigue os mais diversos arranjos familiares, devendo-se buscar o elemento que permite enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade, independentemente de sua conformação. O desafio dos dias de hoje é achar o toque identificador das estruturas interpessoais que autorize nominá-las como família. Esse referencial só pode ser identificado no vínculo que une seus integrantes. É o envolvimento emocional que leva a subtrair um relacionamento do âmbito do direito obrigacional – cujo núcleo é a vontade – para inseri-lo no direito das famílias, que tem como elemento estruturante o sentimento do amor que funde as almas e confunde patrimônios, gera responsabilidades e comprometimentos mútuos. Esse é o divisor entre o direito obrigacional e o familiar: os negócios têm por substrato exclusivamente a vontade, enquanto o traço diferenciador do direito de família é o afeto. (DIAS, 2010, p. 43)

Nosso Código Civil de 1916, conforme Farias e Rosenvald (2014, p.36), nos trazia uma forte influência da Revolução Francesa, onde a essência da família era patriarcal, imperiosamente matrimonial e de forma hierarquizada, onde a preservação do vínculo matrimonial se sobrepõe a felicidade daqueles que à compõem, sem preocupação aos laços afetivos.

Para Maria Berenice Dias (2015, p. 102)

Essa concepção começou a ser quebrada com o surgimento da Lei do Divórcio (L. 6.515/77), que veio regulamentar a dissolução do casamento e trazer grandes avanços à época, como: a não obrigatoriedade de adoção do nome do cônjuge; o direito de alimentos também ao marido, e não só à mulher “honesta e pobre”; e a mudança do regime universal para o regime parcial de bens, quando os noivos não acordarem por regime específico

Atendendo aos reais interesses da sociedade, bem como aos assuntos pertinentes abordados de forma mais condizente com a realidade, o legislador reformula o código de 1916 em 2002, nos trazendo um texto mais moderno, onde abrangem-se as diversas formas de família a igualdade entre os filhos sem distinção de sua origem. É possível uma melhor visualização dessas mudanças entre o Código Civil de 2002 e o antigo código de 1916, com o esquema:

Tabela 1. Comparação do Direito de Família no Código Civil de 1916 e na Constituição Federal de 1988 em conjunto com o Código Civil de 2002.

Família no CC/16

Família na CF/88 e no CC/02

Matrimonializada

Pluralizada

Patriarcal

Democrática

Hierarquizada

Igualitária substancialmente

Heteroparental

Hetero ou Homoparental

Biológica

Biológica ou socioafetiva

Unidade de produção e reprodução

Unidade socioafetiva

Caráter institucional

Caráter instrumental

Fonte: Farias e Rosenvald (2014, p. 44)

Pode-se verificar então, conforme Dias (2015, p. 52), que “houve uma constitucionalização de um modelo de família eudominista e igualitário, com maior espaço para o afeto e realização individual”. Podemos destaca a união estável, com previsão constitucional, com sendo uma forma de união sem a presença do matrimonio, assim duas pessoas unidas pelo afeto e reconhecidas pelo ordenamento jurídico.

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado

§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. (BRASIL, 1988)

Segundo Neto (2013, p. 24), “tendo como premissa uma nova cultura jurídica que possa permitir a proteção estatal de todas as entidades familiares, repersonalizando as relações sociais, centrando-se no afeto como sua maior preocupação”. Logo, temos a aplicação do princípio da afetividade diretamente em todas as formas de família em nosso ordenamento.

Podemos destacar ainda, corroborando com a afetividade como formadora da família, Farias e Rosenvald (2014, p. 88) “a partir da convivência, permitindo que cada pessoa se realize, pessoal e profissionalmente, convertendo-se em seres socialmente úteis, não mais se confinando ao estreito espaço de sua própria família”.

O direito sucessório é abordado no último livro no Código civil de 2002. A sucessão como disposta no código, disciplina a transmissão patrimonial do falecido a seus sucessores. Gonçalves (2014, online) o “ referido ramo do direito disciplina a transmissão do patrimônio, ou seja, do ativo e do passivo do de cujus ou autor da herança a seus sucessores”.

Partindo desse ponto, da família e da sucessão, é necessário ainda esclarecer que a vedação entre a distinção dos filhos trata-se de preceito constitucional, do qual podemos extrair do art. 227, § 6º, da Carta Magna, o princípio da igualdade entre os filhos e por meio deles concretiza-se a dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, art. 226, § 7º, também da Constituição Federal

“Art. 226, § 7º “Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

[...]

§ 6.º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.”. (BRASIL, 1988)

O pensamento que influencia os novos tempos da família não é de que o Estado tenha de delimitar as formas de família, mas sim, proteger todas elas. Tal proteção é fundamental, não só para o contexto social mas para garantia de segurança jurídica aos reflexos gerados pela família aos diversos ramos do direito.

Não pode ser feita então, nenhuma distinção entre filhos, tenha ele origem ou não de relação matrimonial, ou seja, de origem biológica, sendo a origem da filiação uma questão cultural e afetiva, como é a opção do ordenamento atual.

Um dado da natureza, e sim uma construção cultural, fortificada na convivência, no entrelaçamento dos afetos, pouco importando sua origem. Nesse sentido, o filho biológico é também adotado pelos pais, no cotidiano de suas vidas. (LÔBO, 2011, p.273)

Há, ainda, em nosso ordenamento, previsão de reconhecimento de parentesco de acordo com o que é natural ou civil e ainda que resulte de consanguinidade ou de origem diversa, como podemos verificar no disposto no art. 1.593, do Código Civil de 2002, in verbis, “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem”.

Desse modo, tendo em vista a atual conjuntura social, e as mais diversificadas formas de família aqui abordadas, combinadas aos princípios da dignidade da pessoa humana, ao da paternidade responsável, da busca pela felicidade e o da igualdade entre os filhos, faremos uma análise frente à decisão inovadora da Suprema corte, por meio do recurso extraordinário nº 898.060, frente a omissão legislativa quanto ao assunto a paternidade socioafetiva concomitante à filiação de origem biológica e seus aspectos sucessórios.

Sobre o autor
Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!