Multiparentalidade: análise dos efeitos sucessórios a partir do precedente do Recurso Extraordinário nº 898.060 do Supremo Tribunal Federal

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O ORDENAMENTO JURÍDICO E AS ESPÉCIES DE FAMÍLIA

É indispensável que se faça um estudo sobre as espécies de família contempladas em nosso ordenamento, para uma melhor compreensão da evolução conceitual da família em nosso âmbito jurídico. Importante salientar que hodiernamente a família não mais se atém ao modelo previsto no Código Civil de 1916, onde sua formação apenas encontrava possibilidade através do matrimônio. Conforme ensinamentos de Dias (2015, p.130-144), temos 5 espécies de família, a serem: a monoparental, a parental, a pluriparental, a paralela e a eudemonista.

A Constituição Federal de 1988, nos trouxe em seu artigo 226, § 4º, a entidade da família monoparental, cujo a qual é a realidade de grande parte das famílias brasileiras modernas. Trata-se daquela onde temos o filho ou filhos e apenas um dos genitores (DIAS, 2015, P. 139-140). Vejamos que o artigo. 226, § 4º, da Constituição Federal de 1988, aduz que: “entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.

Com a parental, ou ainda anaparental, temos a formação familiar a partir da convivência entre pessoas, que podem ou não ser parentes, mas que a cima disso possuem o intuito familiar. No exemplo citado por Dias (2015, p. 140), temos o fato de duas irmãs que possuem a convivência juntas e que a partir dessa convivência, adquirem patrimônio em conjunto e no caso de haver o falecimento de uma das irmãs, a autora afirma: “A solução que se aproxima de um resultado justo é conceder à irmã, com quem a falecida convivia, a integralidade do patrimônio, pois ela, em razão da parceria de vidas, antecede aos demais irmãos na ordem de vocação hereditária”.

A multiparental, ou pluriparental, denomina-se para Dias (2015, p. 141) como sendo a “pluralidade das relações parentais, especialmente fomentadas pelo divórcio, pelo recasamento, seguidos das famílias não matrimoniais e das desuniões”. Chamado pela autora ainda de família-mosaico, temos a composição de relacionamentos pretéritos, que podem trazer para a nova família filhos já concebidos e na maioria das vezes novos filhos comuns ao novo casal. Nesse sentido a autora afirma ser caracterizada essa espécie pela multiplicidade de vínculos, ambiguidade dos compromissos e a interdependência.

Vejamos, ainda, que as famílias multiparentais são as formadas pela coexistência múltipla de pais ou mães  em busca, biológicos e afetivos, onde temos o desenrolar de funções importantes no desenvolvimento do filho. Conforme afirmam Teixeira e Rodrigues (apud JANNOTTI et al, 2013, p. 3):

A multiparentalidade pode ter como causa o fato de o pai biológico desconhecer o nascimento de seu filho, razão pela qual outra pessoa passa a exercer a função paterno/filial. Outro fator é o surgimento crescente das famílias recompostas, em que pode ocorrer uma superposição de papeis parentais, já que, por vezes, o padrasto/madrasta passa a exercer faticamente a autoridade parental, sem que haja, contudo, o afastamento do genitor do convívio com o filho. É possível, ainda, a multiparentalidade temporal, em que a recomposição familiar ocorre após a morte do pai ou mãe biológico e o padrasto/madrasta passa a exercer esta função. Nesses casos, o registro de nascimento deveria conter o real histórico parental

A paralela, é uma espécie de família presente em nossa sociedade a muito tempo, e com um certo desprezo por parte de nossa sociedade, caracteriza-se pelo concubinato daquele que já possui um vínculo matrimonial ou de união estável.

Mesmo com toda controvérsia social envolvendo esse tipo de família, Dias (2015, p. 50-51) afirma ser de grande mérito para o direito, uma vez que, na maioria das vezes essa união resulta em filhos e há impacto no âmbito jurídico, assim, não ver essa relação, não lhe outorgar qualquer efeito, atenta contra a dignidade dos partícipes e filhos porventura existentes. Conforme o código Civil de 2002, em seu art. 1.727: “as relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato”

A eudemonista, é fundado na base afetiva, e tem como função exclusiva a busca pela felicidade dos indivíduos, por meio de realização pessoal ou profissional. “Reconhecimento do afeto como único modo eficaz de definição da família e de preservação da vida” (Dias, 2015, p 143), o que acaba com o formato antiquado da hierarquia e passa a abranger de forma mais democrática a entidade familiar, “em que as relações são muito mais de igualdade e de respeito mútuo, e o traço fundamental é a lealdade” (DIAS, 2015, p. 144).

Corrobora com esse pensamento o ilustre Silvio de Salvo Venosa:

A unidade familiar, sob o prisma social e jurídico, não mais tem como baluarte exclusivo o matrimônio. A nova família estrutura-se independentemente das núpcias. Coube à ciência jurídica acompanhar legislativamente essas transformações sociais, que se fizeram sentir mais acentuadamente em nosso país na segunda metade do século XX, após a Segunda Guerra. Na década de 70, em toda a civilização ocidental, fez-se sentir a família conduzida por um único membro, o pai ou a mãe. Novos casamentos dos cônjuges separados formam uma simbiose de proles. (VENOSA, 2011, p.6)

Podemos constatar então que hoje temos um rol mais amplo para a formação das famílias em nosso ordenamento, não sendo mais cabível apenas a família oriunda do matrimônio, sendo hodiernamente uma forma mais abrangente apara a sua formação, baseando-se não só no matrimônio, mas inclusive no afeto em todas as suas formas. Dias (2010, p.43), transcende o antiquado e tradicional conceito de família a fim de alcançar uma noção que mais se adeque à atual realidade.

Uma visão pluralista da família, que abrigue os mais diversos arranjos familiares, devendo-se buscar o elemento que permite enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade, independentemente de sua conformação. O desafio dos dias de hoje é achar o toque identificador das estruturas interpessoais que autorize nominá-las como família. Esse referencial só pode ser identificado no vínculo que une seus integrantes. É o envolvimento emocional que leva a subtrair um relacionamento do âmbito do direito obrigacional – cujo núcleo é a vontade – para inseri-lo no direito das famílias, que tem como elemento estruturante o sentimento do amor que funde as almas e confunde patrimônios, gera responsabilidades e comprometimentos mútuos. Esse é o divisor entre o direito obrigacional e o familiar: os negócios têm por substrato exclusivamente a vontade, enquanto o traço diferenciador do direito de família é o afeto. (DIAS, 2010, p. 43)

Nosso Código Civil de 1916, conforme Farias e Rosenvald (2014, p.36), nos trazia uma forte influência da Revolução Francesa, onde a essência da família era patriarcal, imperiosamente matrimonial e de forma hierarquizada, onde a preservação do vínculo matrimonial se sobrepõe a felicidade daqueles que à compõem, sem preocupação aos laços afetivos.

Para Maria Berenice Dias (2015, p. 102)

Essa concepção começou a ser quebrada com o surgimento da Lei do Divórcio (L. 6.515/77), que veio regulamentar a dissolução do casamento e trazer grandes avanços à época, como: a não obrigatoriedade de adoção do nome do cônjuge; o direito de alimentos também ao marido, e não só à mulher “honesta e pobre”; e a mudança do regime universal para o regime parcial de bens, quando os noivos não acordarem por regime específico

Atendendo aos reais interesses da sociedade, bem como aos assuntos pertinentes abordados de forma mais condizente com a realidade, o legislador reformula o código de 1916 em 2002, nos trazendo um texto mais moderno, onde abrangem-se as diversas formas de família a igualdade entre os filhos sem distinção de sua origem. É possível uma melhor visualização dessas mudanças entre o Código Civil de 2002 e o antigo código de 1916, com o esquema:

Tabela 1. Comparação do Direito de Família no Código Civil de 1916 e na Constituição Federal de 1988 em conjunto com o Código Civil de 2002.

Família no CC/16

Família na CF/88 e no CC/02

Matrimonializada

Pluralizada

Patriarcal

Democrática

Hierarquizada

Igualitária substancialmente

Heteroparental

Hetero ou Homoparental

Biológica

Biológica ou socioafetiva

Unidade de produção e reprodução

Unidade socioafetiva

Caráter institucional

Caráter instrumental

Fonte: Farias e Rosenvald (2014, p. 44)

Pode-se verificar então, conforme Dias (2015, p. 52), que “houve uma constitucionalização de um modelo de família eudominista e igualitário, com maior espaço para o afeto e realização individual”. Podemos destaca a união estável, com previsão constitucional, com sendo uma forma de união sem a presença do matrimonio, assim duas pessoas unidas pelo afeto e reconhecidas pelo ordenamento jurídico.

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado

§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. (BRASIL, 1988)

Segundo Neto (2013, p. 24), “tendo como premissa uma nova cultura jurídica que possa permitir a proteção estatal de todas as entidades familiares, repersonalizando as relações sociais, centrando-se no afeto como sua maior preocupação”. Logo, temos a aplicação do princípio da afetividade diretamente em todas as formas de família em nosso ordenamento.

Podemos destacar ainda, corroborando com a afetividade como formadora da família, Farias e Rosenvald (2014, p. 88) “a partir da convivência, permitindo que cada pessoa se realize, pessoal e profissionalmente, convertendo-se em seres socialmente úteis, não mais se confinando ao estreito espaço de sua própria família”.

O direito sucessório é abordado no último livro no Código civil de 2002.  A sucessão como disposta no código, disciplina a transmissão patrimonial do falecido a seus sucessores. Gonçalves (2014, online) o “ referido ramo do direito disciplina a transmissão do patrimônio, ou seja, do ativo e do passivo do de cujus ou autor da herança a seus sucessores”.

Partindo desse ponto, da família e da sucessão, é necessário ainda esclarecer que a vedação entre a distinção dos filhos trata-se de preceito constitucional, do qual podemos extrair do art. 227, § 6º, da Carta Magna, o princípio da igualdade entre os filhos e por meio deles concretiza-se a dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, art. 226, § 7º, também da Constituição Federal

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“Art. 226, § 7º “Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

[...]

§ 6.º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.”. (BRASIL, 1988)

O pensamento que influencia os novos tempos da família não é de que o Estado tenha de delimitar as formas de família, mas sim, proteger todas elas. Tal proteção é fundamental, não só para o contexto social mas para garantia de segurança jurídica aos reflexos gerados pela família aos diversos ramos do direito.

Não pode ser feita então, nenhuma distinção entre filhos, tenha ele origem ou não de relação matrimonial, ou seja, de origem biológica, sendo a origem da filiação uma questão cultural e afetiva, como é a opção do ordenamento atual.

Um dado da natureza, e sim uma construção cultural, fortificada na convivência, no entrelaçamento dos afetos, pouco importando sua origem. Nesse sentido, o filho biológico é também adotado pelos pais, no cotidiano de suas vidas. (LÔBO, 2011, p.273)

Há, ainda, em nosso ordenamento, previsão de reconhecimento de parentesco de acordo com o que é natural ou civil e ainda que resulte de consanguinidade ou de origem diversa, como podemos verificar no disposto no art. 1.593, do Código Civil de 2002, in verbis, “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem”.

Desse modo, tendo em vista a atual conjuntura social, e as mais diversificadas formas de família aqui abordadas, combinadas aos princípios da dignidade da pessoa humana, ao da paternidade responsável, da busca pela felicidade e o da igualdade entre os filhos, faremos uma análise frente à decisão inovadora da Suprema corte, por meio do recurso extraordinário nº 898.060, frente a omissão legislativa quanto ao assunto a paternidade socioafetiva concomitante à filiação de origem biológica e seus aspectos sucessórios.

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