Multiparentalidade: análise dos efeitos sucessórios a partir do precedente do Recurso Extraordinário nº 898.060 do Supremo Tribunal Federal

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A multiparentalidade já encontra o necessário amparo jurídico. Ela é vista como uma nova espécie de ligação entre os indivíduos, abarcando não só os laços biológicos, como também os afetivos.

RESUMO: O presente trabalho busca realizar uma análise, passando pelos aspectos constitucionais e civis, sobre a viabilidade sucessória, ante a multiparentalidade, em decorrência do precedente normativo aberto pelo Recurso extraordinário nº 898.060, do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Passaremos por uma análise da evolução do instituto da família, abordando a mutação de sua definição até os modelos presentes em nossa atual sociedade, analisando a hodierna proteção jurídica dada ao afeto e seus reflexos. Abordaremos como a doutrina e a jurisprudência atual enxerga a possibilidade de coexistência entre as relações biológicas e afetivas presentes na multiparentalidade e a possibilidade de produção concomitante de seus efeitos no campo sucessório, discutindo a igualdade de filiação, o direito à herança e a produção de reflexos nos aspectos patrimoniais e extrapatrimoiais e a efetiva segurança jurídica. Nesse trabalho, utilizamos do método dogmático indutivo e o procedimento aqui aplicado foi o de pesquisa qualitativa, bibliográfica, documental, legal e jurisprudencial. Palavras-chave: Multiparentalidade. Pais afetivos e biológicos. Herança. Direito sucessório.


INTRODUÇÃO

Ao decorrer do tempo, a evolução social traz novas formas de organização familiar que estão à margem da vivência matrimonial. Assim, temos a necessidade de evoluir e de modernizar as disciplinas jurídicas que têm relação direta com o tema.

Durante esse desenvolvimento social, o instituto da família sofreu as mais variadas e bruscas modificações até os dias atuais. Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, podemos constatar as variações no sentido de família acompanhando a evolução e os movimentos sociais, que são uma forte característica da atual forma de sociedade.

Começam a surgir as relações familiares afetivas, onde afeto externa uma relação parental que vai além da existência ou não de genes que liguem os indivíduos. Passam a existir pais afetivos e biológicos, presentes de formas e momentos distintos, mas não menos importantes, passa a existir a coexistência de paternidades, socioafetiva e biológica, a multiparentalidade.

O estudo será feito a partir do precedente aberto pelo Supremo Tribunal Federal, buscando analisar os aspectos doutrinários e jurisprudencial e legal a fim de descrever sua aplicação no âmbito sucessório e descrever a sua repercussão para o atual ordenamento jurídico.

Será desenvolvida uma metodologia dialética, baseada em uma técnica de investigação teórica, em forma de pesquisa exploratória, especificamente um estudo doutrinário, jurisprudencial e legal, por meio do banco de dados como do google acadêmico e do Supremo Tribunal Federal, utilizando-se de uma abordagem qualitativa, ou seja, não se pretende utilizar qualquer valor numérico matemático.

Nesse sentido, temos que a pesquisa de cunho qualitativa se equivale a obter dados por meio de analises dos dados referentes ao estudo, conforme Michel (2015).

Já Para Goldenberg (1997), em uma pesquisa qualitativa não há representatividade numérica, sim o entendimento de certo fato social. Vamos discutir a evolução do conceito de família, passando pela multiparentalidade e os aspectos afetivos e suas conceituações abordando sua evolução histórica e seus impactos no ordenamento jurídico pátrio, além de abordando os aspectos constitucionais de proteção à igualdade entre os filhos, independentemente de sua origem, em seus aspectos sucessórios.

O núcleo desse trabalho é a análise do precedente aberto pelo Supremo Tribunal Federal – STF, através do Recurso Extraordinário - RE 898.060, quais os efeitos diretos no direito sucessório da prevalência de ambos os laços afetivos e biológicos. Será analisada a 10 possibilidade de haver ou não as consequências patrimoniais e extrapatrimoniais, a partir da premissa de o assento de nascimento conter ou não a verdade genética oculta ou desconhecida.

Esclareceremos, neste trabalho, os reflexos da filiação afetiva e multiparentalidade na ordem sucessória sob a ótica do julgamento do Recurso Extraordinário nº 898.060 do Supremo Tribunal Federal. Isto posto, elucidar o precedente aberto pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário nº 898.060 e seus efeitos sucessórios, bem como a efetividade da segurança jurídica e os efeitos gerados a partir desse precedente. 


FAMÍLIA: EVOLUÇÃO HISTÓRICA; JURÍDICA E SOCIAL

Aqui, iremos retratar o início do instituto da família e sua evolução histórica através da nossa sociedade e em nosso ordenamento. Veremos que a formação da família bem como suas espécies evoluíram tanto quanto evoluiu nossa sociedade e seus conceitos.

Durante o decorrer do século XX, antes de chegarmos a Carta Magna de 1988, as demais constituições brasileiras utilizavam de uma abordagem específica, de modo a termos apenas alguns pontos abordados, conforme veremos, sem que houvesse um trato disciplinado no que se refere à deveres e direitos da família.

A Constituição Federal de 1988 é um marco para essa evolução familiar no Brasil, levando em consideração o momento histórico social que vivíamos e a mutação do pensamento comum sobre a família prevista no Código Civil de 1916, onde era absoluta a forma patriarcal como modelo de instituição familiar. 


A EVOLUÇÃO INSTITUCIONAL DA FAMÍLIA: OS ASPECTOS SOCIAIS, E A CONSTRUÇÃO DA MULTIPARENTALIDADE.

Com a sociedade, surge a necessidade entre os homens de desenvolver regramentos que possam garantir e direcionar a convivência social de forma a assegurar a harmonia que deve haver entre os indivíduos. Nesse sentido, é de fácil constatação a evolução conjunta da sociedade e do direito e a existência de um dinamismo próprio que nos possibilitou a chegar aos dias atuais e nos permitirá evoluir ainda mais.

A evolução da sociedade nos aponta novas formas de organização social e familiar e de definição ao instituo da família, que estão à margem da vivência matrimonial. Assim temos a necessidade de evoluir e de modernizar as disciplinas jurídicas que têm relação direta ao tema.

Com sua origem, o instituto da família, passar ser visto como uma instituição de cunho obrigatório dentro da sociedade. Com um início social bastante conservador, a família em seu início, não necessitava de qualquer traço de um laço de afetividade entre seus membros.

Inicialmente, a família era vista como uma instituição patriarcal e hierarquizada. Tínhamos o patriarca como chefe e essência nuclear do instituto familiar, a ele cabia a manutenção e os direitos inerentes à família, e sua formação objetivava apenas posição social e perpetuação do nome.

A economia da época da origem do instituto familiar era formada em sua essência pela agricultura, e com a família passa a ter uma melhor administração das atividades do campo, uma vez que os filhos serviam de mão de obra.

A família tinha uma formação extensiva, verdadeira comunidade rural, integrada por todos os parentes, formando unidade de produção, com amplo incentivo à procriação. Era uma entidade patrimonializada, cujos membros representavam força de trabalho. O crescimento da família ensejava melhores condições de sobrevivência a todos. O núcleo familiar dispunha de perfil hierarquizado e patriarcal (DIAS, 2015, p. 30).

A partir de uma análise das famílias romanas e gregas, podemos averiguar mais um aspecto patriarcal em sua essência. Tais famílias possuíam uma formação a ser baseada em “organização política cujo princípio básico era a autoridade, e esta abrangia todos quantos a ela estavam submetidos.

O pater familias era, ao mesmo tempo, chefe político, sacerdote e juiz” (NOGUEIRA, 2006, p. 73). Sendo o pater considerado um Deus, a que se incumbia a função de proteção do lar. Havia um culto secreto e obrigatório onde os mortos da sua genealogia deviam ser adorados. “O primeiro filho era encarregado de continuar o culto aos ancestrais; se deixasse de fazê-lo, traria, com sua conduta, infelicidade e morte para a família” (NOGUEIRA, 2006, p. 78).

O que caracterizava essas famílias não era o laço vindo da consanguinidade, mas sim uma subordinação ao mesmo pater famílias. “O que unia os membros da família antiga não era o nascimento ou o sentimento, mas a religião do fogo sagrado e dos antepassados; assim, só fazia parte da mesma família aquele que fosse iniciado no seu culto” (NOGUEIRA, 2006, p. 79).

Hodiernamente, essa concepção pretérita de traços obrigatórios e doméstico passa a ser substituída por um direito individual, cidadão, a partir de uma realidade construída no seio da sociedade, que estabelece uma descentralização do modelo familiar, uma democratização igualitária independente do matrimônio, impulsionada pelo afeto como núcleo familiar (FARIAS; ROSENVALD, 2014, p.36).

Hoje, a sociedade não tem mais na procriação para produção no campo e o culto aos deuses ancestrais os núcleos basilares da formação das famílias. A modernização social, libertou os homens e mulheres da prisão do patriarcalismo e de sua consequente hierarquia, e na busca de cada indivíduo pela felicidade e de seu desenvolvimento pessoal o afeto começa a tomar lugar na sociedade.

A transição da família como unidade econômica para uma compreensão igualitária, tendente a promover o desenvolvimento da personalidade de seus membros, reafirma uma nova feição, agora fundada no afeto. Seu novo balizamento evidencia um espaço privilegiado para que os seres humanos se complementem e se completem. Abandona-se, assim, uma visão institucionalizada, pela qual a família era, apenas, uma célula social fundamental, para que seja compreendida como núcleo privilegiado para o desenvolvimento da personalidade humana (FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 38).

Vejamos que, para Farias e Rosenvald (2014, p. 43), a família moderna é um conjunto democrático, descentralizado e não patriarcal, com proteção essencial do seu núcleo familiar, de forma a tutelar o próprio indivíduo. Assim, a família passa a existir em função daqueles que a compõem, o que para os autores, ajusta-se chamar de família eudemonista, cuja característica principal é a busca pela felicidade de forma pessoal e solidária dos componentes familiares.

Hodiernamente, podemos encontrar, na carta magna, modelos de famílias que são independentes do casamento, como a união estável e a comunidade a ser formada por qualquer dos seus pais e seus descendentes, denominada “família monoparental”. Conforme Ministro Ayres Britto (2011, p.3):

Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil, bem como a Inexistência e hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico (ADI 4277, Relator (a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, p. 3)

Para fortalecer esse pensamento, Lôbo (2011, p. 20) diz que a realização pessoal da afetividade, no ambiente de convivência e solidariedade, é função básica da família de nossa época. Temos então, que a antiga noção da família foi superada, uma vez que à prevalência do afeto na família moderna modificou a função que a mulher tinha no seio da família patriarcal.

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Começam a surgir às relações familiares afetivas, onde afeto externa uma relação parental que vai além da existência ou não de genes que liguem os indivíduos. Passam a existir pais afetivos e biológicos, presentes de formas e momentos distintos, mas não menos importantes, passa a existir a coexistência de paternidades, socioafetiva e biológica, a multiparentalidade, harmonizando-se com a realidade social hodierna, fundamentando-se na carta magna que no artigo 270, caput, de seu escopo jurídico aduz que é dever do Estado proteger a família, base de nossa sociedade. Podemos destacar aqui, a valiosa conclusão de Maria Berenice Dias (2010, s.p).

Não mais se pode dizer que alguém só pode ter um pai e uma mãe. Agora é possível que pessoas tenham vários pais. Identificada a pluriparentalidade, é necessário reconhecer a existência de múltiplos vínculos de filiação. Todos os pais devem assumir os encargos decorrentes do poder familiar, sendo que o filho desfruta de direitos com relação a todos. Não só no âmbito do direito das famílias, mas também em sede sucessória. (...) Tanto é este o caminho que já há a possibilidade da inclusão do sobrenome do padrasto no registro do enteado

Isto posto, verifica-se que, no início, o modelo familiar era da união entre homem e mulher de uma forma obrigatória a formar uma instituição com fulcro em uma sociedade conservadora, moralista e patriarcal, onde havia uma necessidade de procriação para desenvolvimento da economia predominante agrícola e geração de mão de obra a partir dos filhos. Ainda assim, no entanto, a evolução social modificou toda essa noção familiar, com as conquistas dos direitos das mulheres e o fim de uma sociedade patriarcal e a busca pela felicidade dos indivíduos e de seu desenvolvimento pessoal com o surgimento do núcleo basilar familiar do afeto.

O modelo familiar tradicional sofreu mutações profundas e as mais diversas alterações no transcurso do tempo. Para comprovar isso, temos hodiernamente novos arranjos familiares. Dessa forma, surgem as famílias monoparentais, recompostas, avoengas, anaparentais, decorrentes de uniões estáveis, homoafetivas e poliafetivas, dentre outras configurações possíveis.

Nesse cenário social, diante de toda essa evolução de conceitos e valores, onde as famílias estão estruturando-se nesses mais diversificados formatos e padrões, temos cada vez mais afastado a noção de família sendo apenas ligada por traços genéticos, biológicos ou decorrentes dos efeitos matrimoniais, passando o afeto a ser o núcleo definidor da entidade familiar.

Dentro desse contexto, temo a multiparentalidade, uma nova espécie de ligação entre nos indivíduos, ligados por vários vínculos, tanto biológico quanto afetivo. Conforme Pereira (apud Buchmann, 2013, p. 51) temos que a multiparentalidade é “o parentesco constituído por múltiplos pais, ou seja, quando um filho tem mais de um pai e/ou mais de uma mãe”.

Trata-se a multiparentalidade de uma relação harmônica entre uma multiplicidade de pais ou mães, afetivos e biológicos, com o afeto como essência em busca da felicidade, e do melhor para a criança ou o adolescente envolvido. Vejamos o que aponta Kirch e Copatti (2013, p.339):

A multiparentalidade significa a legitimação da paternidade/maternidade do padrasto ou madrasta que ama, cria e cuida de seu enteado (a) como se seu filho fosse, enquanto que ao mesmo tempo o enteado (a) o ama e o(a) tem como pai/mãe, sem que para isso, se desconsidere o pai ou mãe biológicos. A proposta é a inclusão no registro de nascimento do pai ou mãe socioafetivo permanecendo o nome de ambos os pais biológicos.

Dias (2010, p.49) nos mostra ainda que a multiparentalidade “decorre da peculiar organização do núcleo, reconstruído por casais onde um ou ambos são egressos de casamentos ou uniões anteriores. Eles trazem para a nova família seus filhos e, muitas vezes, têm filhos em comum”. A autora aponta ainda que “as famílias pluriparentais são caracterizadas pela estrutura complexa decorrente da multiplicidade de vínculos, ambiguidade das funções dos novos casais e forte grau de interdependência”.

Ocorre que a multiparentalidade passa a ser uma forma de compreensão no plano jurídico daquilo que ocorre na realidade fática de nossa sociedade. Nos traz segurança de coexistência de paternidade afetiva e biológica como direito no instituo da família (KIRCH & COPATTI, 2013).

Assim, uma hipótese jurídica para que o genitor biológico ou afetivo, fundados nos princípios da afetividade e dignidade da pessoa humana, estabelecerem seus vínculos familiares, surgindo assim a multiparentalidade, admitindo no mundo jurídico a realidade fática.

Constituição Federal

Art. 226, § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. (BRASIL, 1988)

Podemos constatar, conforme Maurício Cavallaazi Póvoas (2012, p.79), que a multiparentalidade

Trata-se da possibilidade jurídica conferida ao genitor biológico e/ou do genitor afetivo de invocarem os princípios da dignidade humana e da afetividade para ver garantida a manutenção ou o estabelecimento de vínculos parentais (2012, p. 79)

Com esse contexto familiar hodierno, aflora o fenômeno da multiparentalidade, resultante do reconhecimento da socioafetividade e do surgimento das diversas formas de famílias advindas da liberdade de formação e desconstituição das entidades familiares. Não obstante a pluripaternidade também pode resultar ainda de adoção que não destrua o passado, das chamadas técnicas de reprodução assistida e das famílias poliamoristas.

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