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A proibição da comercialização de órgãos humanos à luz da bioética e dos direitos da personalidade

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3 REFLEXÃO BIOÉTICA

A cirúrgia de transplante de órgão gera reflexões sobre o limite da vida, pois com tecnologias médicas, esta é prolongada. Busca-se por meio do transplante fazer o bem ao paciente e evitar seu sofrimento, desse modo, o que se quer é garantir a dignidade.

Isso está abarcado por um viés bioético, que pode ser entendido como um estudo das ciências da vida e dos valores humanos, incluindo neste, dimensões morais, éticas e políticas em um contexto interdisciplinar, visto que engloba diversas áreas do conhecimento, como ciências humanas e biomédicas. Van Potter[16] conceitua o termo Bioética como “forma de enfatizar os dois componentes mais importantes para se atingir uma nova sabedoria, que é tão desesperadamente necessária: conhecimento biológico e valores humanos”. 

A bioética está vinculada a princípios denominados trindade bioética[17], que são: beneficência, autonomia e justiça. O primeiro princípio que deve ser considerado é o da beneficência ou também chamado não maleficência, que significa fazer o bem e evitar o mal, respectivamente; assim busca-se a dignidade da pessoa que, para tanto, deve ser considerada na sua totalidade, ou seja, em todas as suas dimensões, quais sejam física, social, psicológica e espiritual. A autonomia é a capacidade de autodeterminação, ou seja, a liberdade sobre os desejos para sua própria vida. E por fim, o princípio da justiça refere-se à equidade de tratamento, deve-se buscar a igualdade material, observando as diferentes necessidades dos indivíduos.

Quanto à autonomia, está não é ilimitada. Para a pessoa ter liberdade para se expressar, precisa estar desprendida de subordinação ou pressão externa. No âmbito do comércio de órgão, constata-se que o paciente está sofrendo pressão do contexto que vivencia, quanto ao medo e insegurança da espera por um órgão. Do mesmo modo, há o vendedor que é vulnerável financeiramente nesta relação, sofrendo pressão econômica.

Ademais, se pensar isoladamente na autonomia do indivíduo que decide dispor e vender ou do indivíduo que decide comprar um órgão, tal prática seria lícita. No entanto, primeiramente deve-se pensar na beneficência. Caso um órgão seja vendido para uma pessoa determinada, isso prejudicará quem está na fila, em especial quem não possui a mesma condição econômica de comprá-lo.

Dessa forma, a proibição da mercantilização de partes do corpo humano fere a autonomia dos sujeitos que optariam por esse meio em benefício da sociedade, que tem direito igual ao transplante. Não obstante, em relação ao princípio de justiça, não seria ético autorizar um meio de obter o transplante que prejudicasse uma pessoa envolvida.

Na discussão da bioética, deve ser pensada a questão dos marginalizados e excluído. Neste ponto encontram-se os que trocam seus órgãos por dinheiro, ou seja, oprimidos economicamente, ou os que não têm acesso à saúde, que acabam morrendo prematuramente, em razão das circunstâncias sub humanas de vida. Assim, nessa conjuntura é essencial aplicar o princípio de justiça, observando as necessidades dos indivíduos na sociedade atendendo o maior número possível de pessoas tanto em relação ao tratamento, quanto em relação às verbas do Estado.

Ademais, deve-se atentar para não interpretar a comercialização de órgãos pela lógica utilitarista, limitada a uma avaliação de “custo e benefício”. Essa problemática não pode ser determinada pelo mercado, caso contrário, seria legal o comércio de órgãos, pois cairia na falácia de entendê-la como benéfica e eficiente para a sociedade. Nesta lógica, desconsideraria os vulneráveis dessa relação, sugerindo que não devem ser amparados pelo Estado.

Outrossim, quadra registrar que, segundo Guttmann[18], "com um sistema de mercado, poderiam manipular financeiramente o campo da alocação de órgãos e tratar com menosprezo ou descaso os indispensáveis fatores genéticos, médicos, psicossociais e outros da mesma importância”. Isso porque o objetivo operacional de uma empresa de captação, manuteção ou distribuição de órgãos seria o lucro, portanto, os custos seriam altos, o que consequentemente poderia trazer distorções que iriam corromper os parâmetros éticos.

Sobre tais consequêcia, Volnei Garrafa[19] afirma:

A responsabilidade de quem defende a introdução de "incentivos" financeiros para a doação de órgãos talvez não esteja sendo medida e compreendida na sua essência nem pelos próprios proponentes que, de criativos promotores de acusação do atual momento, talvez transformem-se em réus de um novo Nuremberg do século 21. Poderão resultar desastrosas as conseqüências de modificações que venham a ser introduzidas com relação a novas formas biológicas legais de controle sobre o nascimento, sobre a vida e sobre a morte do ser humano. O discurso aqui defendido, ao contrário de propor um freio para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, refere-se fundamentalmente à transfommação da ética da liberdade científica em uma nova ética da responsabilidade científica.

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Referido autor traz o resultado danoso que a mercantilização de partes do corpo e sua manipulação podem gerar para a sociedade. A ciência e tecnologia devem se desenvolver, no entanto, com responsabilidade e ética.


4 COMÉRCIO DE ÓRGÃOS X DIREITO DA PERSONALIDADE

O comércio de órgão é proibido. Essa prática, de compra e venda de partes do corpo humano, desrespeita os direitos personalíssimos, em especial o direito ao próprio corpo. Essa questão será analisada aqui.

O atual Código Civil Brasileiro diz o seguinte: “Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar bons costumes”. Isso significa que é proibido dispor de parte do corpo, no caso de transplante de órgão, quando causar danos à integridade física de quem está dispondo, ou seja, danos ao seu corpo, e quando contrariar a bons costumes, ou seja, for de desencontro com o que a nossa sociedade considera como bom ou justo.

Quanto a isso, fica evidente que[20]:

No Direito brasileiro é vedada a disponibilidade total sobre o próprio corpo com relação à pessoa viva. Ressalte-se que, no que se refere a essa matéria, permitem-se os transplantes de órgãos e de partes separadas do corpo, com a observância de determinador requisitos, como o que exige a condição dúplice do órgão a ser transplantado ou o que veda o transplante de mulheres grávidas e de menores (arts. 9°, §§ 3°; 6° e 7° da Lei n° 9.434/97), entre outros requisitos.

Pelo exposto, é permitido a uma pessoa viva dispor de seu corpo, porém não de forma absoluta, mas sim relativa, que não prejudique sua saúde. Assim, deve respeitar alguns requisitos, como os citados.

Na situação de comércio de órgãos, por não ser permitido, é feito escondido do Estado, isso propicia ser feito em clínicas sem muita estrutura, pois não tem a supervisão do governo. Pode, desse modo, causar danos á saúde corporal do sujeito que dispõe de parte do seu corpo.

Além disso, em caso de venda de rim, por exemplo, muito vendem um de seus rins para ganhar dinheiro, já que é possível viver com apenas um rim, porém, caso a pessoa passe por algum problema de saúde que necessite do seu outro rim, não o terá mais. Quanto a isso, quadra registrar que em geral as pessoas que têm apenas um rim vivem uma vida normal, no entanto, segundo o instituto americano de pesquisa National Kidney Foundation, é possível que com o tempo sofram uma perda da função renal, há também possibilidadede terem pressão alta quando estiverem com a idade avançada ou apresentarem um excesso de proteína na urina[21].

O caso acima indica uma banalização do próprio corpo e demonstra claramente o dano à integridade física. Ademais, o bom costume também é perturbado, já que o fato de participar de um comércio negro e desprender de seu órgão por dinheiro é muito mal visto.

O Art. 14 do CC/02 também regula esse assunto ao dizer que “É válida, com objetivo científico e altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte”, ou seja, a pessoa pode manifestar enquanto viva o interesse de doar seu corpo ou parte dele quando morrer ou a família do ente que morreu pode doar o corpo ou os órgãos deste. Entretanto, a condição é que o fim seja para estudos ou para a ajuda ao próximo que necessita de transplante, desde que não tenha ganhos financeiros aquele que doar. Assim sendo, mais uma vez é demonstrada a ilegalidade da venda de órgão, já que apresenta finalidade econômica.

Esses artigos do Código Civil referem-se ao direito a personalidade, que como diz Caio Mário da Silva Pereira[22]: “Hoje o direito reconhece os atributos da personalidade com um sentido de universalidade”, ou seja, no nosso Código diz que todos que nascem vivos adquirem personalidade, o que representa a teoria natalista, na verdade, a personalidade é algo inerente ao ser humano, e dessa forma, “pode ser definida como aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações ou deveres na ordem civil”[23], que pretende dizer que todos que possuem personalidade jurídicas, que são todos os seres humanos, possuem direitos e devem cumprir deveres e obrigações.

A proibição do comércio de órgão se enquadra no direito á personalidade, mais especificamente no direito ao próprio corpo. Sendo assim, ninguém deveria o praticar, pois é proibido pelo Código Civil, que, como todos têm personalidade e o direito personalíssimo é absoluto, todos devem respeitar o dever de não comercializar.

Além disso, a pessoa que compra um órgão está “furando” a fila de espera, já que o órgão que foi vendido a ela deveria ser destinado a outra pessoa que estava esperando há mais tempo. Por mais que a pessoa que comprou necessitava e por mais que seja muito triste e desesperador ficar na fila, posto que muitos morrem antes de conseguir, o comércio é proibido.

Ademais, as pessoas mais humildes, que não têm condição econômica e estão na lista de espera, sempre iriam ser as mais prejudicadas, pois não têm condições de comprar um órgão e o órgão, que deveria ser dela, será vendido para outra pessoa, o que não é justo. Isso gera um grande problema jurídico, pois fere o princípio da isonomia, que diz que todos são iguais e têm os mesmos direitos.

De acordo com reportagem da revista Istoé[24], há um esquema de preços no comércio ilegal de órgãos, em que, por exemplo, um coração, custa por volta de 100.000 reais, um rim por volta de 80.000 reais e o fígado por volta de 30.000 reais. Sendo assim, essa venda não pode ser legal, pois só os ricos teriam condições de comprar e os mais pobres sempre seriam os vendedores.

Além do mais, os direitos da personalidade são irrenunciáveis, inalienáveis, intransmissíveis e extrapatrimoniais, ou seja, não podem ser abandonados, vendidos, passados para outra pessoa e não tem valor monetário. A comercialização de órgãos humanos lesa, claramente, todas essas características.

Sobre as autoras
Mariana Ferrão Bittencourt

Advogada. Bacharel em Direito pela FDV.

Cristina Grobério Pazó

Doutora em Direito pela UGF. Mestre em Direito pela UFSC. Advogada. Professora da graduação e do PPGD da FDV.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BITTENCOURT, Mariana Ferrão; PAZÓ, Cristina Grobério. A proibição da comercialização de órgãos humanos à luz da bioética e dos direitos da personalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5153, 10 ago. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59578. Acesso em: 22 dez. 2024.

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