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Prisão processual e a execução provisória

Agenda 24/08/2017 às 16:48

Se a intenção com a prisão após condenação em segunda instância era oferecer alguma satisfação à sociedade, o STF não precisava passar por cima da Constituição. Bastaria que os ministros olhassem para a superpopulação carcerária brasileira.

Desde 2009, quando julgou o Habeas Corpus (HC) de número 84.078, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu que que a execução provisória de decisão condenatória criminal é inconstitucional, à luz do art. 5º LVII da Constituição Federal, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Na prática, isso significa reconhecer que ninguém pode ser preso simplesmente porque houve uma decisão condenatória recorrível, seja de 1ª ou se 2ª instância.

Há alguns meses, porém, durante o julgamento do HC 126.292, o STF mudou seu entendimento e passou a admitir a prisão como consequência de uma decisão condenatória proferida ou confirmada em 2ª instância, ainda que recorrível.

A Constituição é clara em seu artigo 5º, LVII. Não havia, e não há, uma questão jurídica e constitucional a ser solucionada pelo HC 126.292. Esse dispositivo não precisava de nova interpretação. Não gera dúvida nenhuma. O problema era de conveniência, em razão de uma nova e pequena freguesia do nosso sistema prisional. De repente, o que está escancarado na Constituição, e valia desde o julgamento do HC 84.078, em 2009, tornou-se inconveniente.

Se a intenção do STF era oferecer alguma satisfação à sociedade, não precisava passar por cima da Constituição. Bastaria que os ministros olhassem para a superpopulação carcerária brasileira.

Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) há no Brasil, hoje, 660 mil presos. Desses, 243 mil, ou 36,8%, são provisórios, ou seja, cidadãos e cidadãs que ainda não foram condenados em primeira instância. E essa informação é incompleta. Falta saber quantos foram condenados e ainda estão recorrendo. E falta saber quantos têm condenação transitada em julgado e estão realmente cumprindo pena.  

Certamente, o número de presos em flagrante ou que estão cumprindo prisão preventiva – antes, portanto, do julgamento em primeira instância – supera os 243 mil encarcerados provisórios. Frequentemente, esses cidadãos ficam presos até o trânsito em julgado da condenação e passam direto para o cumprimento da pena. Muitos cumprem pena antes do trânsito em julgado da condenação.

Ainda que seja possível e adequado rever nosso sistema de recursos, o problema não está nas leis. Os problemas são a lentidão e a ineficiência com que o Poder Judiciário conduz e gerencia seus processos.

É comum ouvir dos leigos que a demora nos processos é culpa dos advogados. Não é verdade. O advogado sempre cumpre os prazos processuais. A causa da lentidão é a má gestão judicial e cartorária. O que atrasa a tramitação é o tempo que o processo fica parado, seja no cartório, seja com os demais sujeitos da relação processual. A condução dos processos no Brasil segue a norma dos serviços públicos. Com raras exceções, a gestão pública é desestruturada e ineficiente.  

As cadeias brasileiras sempre estiveram – e continuam – lotadas de presos processuais, aqueles que estão encarcerados antes de haver trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Foram presos em flagrante, tiveram prisão preventiva decretada, e a decisão foi mantida na sentença condenatória. Esses cidadãos estão presos indevidamente. Deveriam ser soltos imediatamente, e assim permanecerem até a decisão em 2ª instância. Ou então, o STF e os demais Tribunais deveriam conceder aos demais réus o mesmo tratamento dispensado aos tradicionais clientes da Justiça Criminal.

Quem conhece o sistema penitenciário e atua na execução penal sabe que a discussão sobre ser ou não cabível execução provisória é inócua. Está escrito no parágrafo único do art. 2º da Lei de Execução Penal (Lei n°7210/84) que o preso provisório tem os mesmos direitos do preso condenado. Na prática, considerando que a esmagadora maioria dos réus responde preso ao processo inteiro, são os próprios réus e seus defensores que pedem pela execução provisória, para poder progredir de regime, para ganhar livramento condicional. Do contrário, dada a morosidade da Justiça brasileira, cumprem toda a pena ou boa parte dela em regime fechado, em violação ao direito, em excesso em execução.

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Podemos discutir se nossas leis penais e processuais penais são boas ou ruins, se nossa lei de execução penal é adequada ou não, em termos de política criminal. Podemos discutir se a Constituição está certa ou errada ao definir que as pessoas só podem cumprir pena depois do trânsito em julgado da sentença condenatória. Mas não é possível aceitar a violação do sistema jurídico posto; não é possível aceitar esse afrouxar, apertar, torcer e contorcer das regras do jogo, conforme os humores da opinião pública e as convicções de cada julgador.

Se houver motivo processual, o cidadão pode ser preso em várias fases. Em flagrante, na fase de inquérito, em 1ª ou em 2ª instância, enquanto recorre aos tribunais superiores. Sem motivo processual (e estes motivos estão previstos no Código de Processo Penal), o cidadão brasileiro só pode ser preso após o trânsito em julgado de decisão condenatória.

Se houver motivo para prisão processual, e se essa se prolongar, como em geral se prolongam as prisões neste País, o preso tem direito a gozar dos institutos da Lei de Execução Penal. Ele tem direito à execução provisória; que é cumprir provisoriamente a pena fixada na 1ª ou na 2ª instância, e até o desfecho dos recursos nos tribunais superiores, para que não se agrave ainda mais o abuso decorrente da morosidade judiciária.

Dada a ordem jurídica vigente e considerando que cerca de 25% dos recursos criminais que chegam ao STF são acolhidos em favor dos réus, como afirmou o Ministro Celso de Mello, Decano do STF, durante o julgamento do HC 126.292, é inadmissível pensar que as pessoas possam ser presas automaticamente, simplesmente porque sobreveio decisão de 2ª instância. Isso é execução provisória ilegítima. Quem esteve livre durante todo o processo, sem um motivo legal que justifique a prisão processual, livre deve permanecer até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

É também inadmissível deixar centenas de milhares de pessoas presas durante todo o processo e achar que o problema apareceu agora, com a prisão dos réus mais favorecidos e que em geral respondem soltos ao processo.

A Justiça criminal é tendencialmente seletiva. É o espelho mais incômodo da sociedade. Quanto mais conflitiva e menos igualitária a sociedade, mais seletivos são a Justiça Criminal e o sistema prisional a ela atrelado. As cadeias brasileiras, adequadamente descritas como medievais por um ex-ministro da Justiça, estão abarrotadas de pessoas pobres. Ainda que sejam culpadas, ou que assim venham a ser declaradas, elas sofrem constrangimento ilegal decorrente do prolongado encarceramento cautelar, preventivo, processual.

A pretensão de lotar ainda mais o sistema penitenciário brasileiro, que já têm um déficit de 260.000 vagas, é uma escolha no mínimo ingênua, em termos de política criminal. E é também inconstitucional.

Sobre a autora
Beatriz Dias Rizzo

Advogada Criminal; Ex-Procuradora do Estado; Coordenadora da Assistência Judiciária no Centro de Observação Criminológica; no presídio de Parelheiros; na Coordenadoria dos Distritos Policiais da Capital; e Mestre em Ciências Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIZZO, Beatriz Dias. Prisão processual e a execução provisória. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5167, 24 ago. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60003. Acesso em: 22 dez. 2024.

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