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Loterias. Decreto-Lei n.º 204/1967. Não recepção

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Agenda 31/08/2017 às 11:23

3. Decreto-lei n. 204/1967 - arts. 1° e 32. Constrangimentos aos Estados-membros. Não recepcionados pela Constituição Federal de 1988.

25. Em 1967, em plena Ditadura Militar, período de regime de exceção ao Estado de Direito, com concentração exacerbada à União, núcleo militar do governo, onde os Estados-membros sequer tinham competência política plena, democrática, o chamado autogoverno, pois eram nomeados Governadores Biônicos22, foi editado o polêmico Decreto-lei n. 204, de 27.02.1967, dispondo sobre a exploração de Loterias, o qual se encontra, formalmente, em vigor.

26. O Decreto-lei n. 204/1967 impôs indevidos constrangimentos aos Estados-membros enquanto exploradores do serviço público de Loterias, ao:

a) estabelecer a exclusividade à União (art. 1º);

b) proibir o aumento de emissões de loterias, ficando limitadas às quantidades de bilhetes e séries em vigor na data da promulgação (art. 32, § 1º),

c) proibir a criação de novas loterias estaduais, após a sua edição (art. 32, caput);

27. Para melhor ilustração, vejamos os respectivos dispositivos citados, in verbis:

Art 1º A exploração de loteria, como derrogação excepcional das normas do Direito Penal, constitui serviço público exclusivo da União não suscetível de concessão e só será permitida nos termos do presente Decreto-lei.

Art 32. Mantida a situação atual, na forma do disposto no presente Decreto-lei, não mais será permitida a criação de loterias estaduais.

§ 1º As loterias estaduais atualmente existentes não poderão aumentar as suas emissões ficando limitadas às quantidades de bilhetes e séries em vigor na data da publicação dêste Decreto-lei. (Grifos nossos)

28. Essas prescrições confrontam a vigente Constituição da República - CR, especialmente à forma federativa, constitucionalizada, e, por conseguinte, não foram por ela recepcionadas e, consequentemente, se encontram, respectivamente, revogadas.

29. Em se tratando de normas pré-constitucionais, o Supremo Tribunal Federal - STF já decidiu que o exame da compatibilidade delas com posterior Constituição Federal não se confunde com a declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade, pois se traduz em juízo de recepção ou não-recepção, vejamos:

DIREITO TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. LEI 6.830/1980. JUIZO DE RECEPÇÃO. ARTIGO 97 DA LEI MAIOR. RESERVA DE PLENÁRIO. VIOLAÇÃO INOCORRENTE. ACÓRDÃO RECORRIDO PUBLICADO EM 10.03.2011. Esta Corte, no julgamento da ADI 2/DF, Rel. Min. Paulo Brossard, Tribunal Pleno, DJ 21.11.1997, decidiu que o exame da compatibilidade de legislação pré-constitucional com a nova Carta não se confunde com a declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade, pois se traduz em juízo de recepção ou não-recepção, razão pela qual não se vislumbra a alegada ofensa ao art. 97. da CF/88 ou à Súmula Vinculante 10/STF. As razões do agravo regimental não se mostram aptas a infirmar os fundamentos que lastrearam a decisão agravada. Agravo regimental conhecido e não provido.

(ARE 651448 AgR, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 03/03/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-056 DIVULG 20-03-2015 PUBLIC 23-03-2015)

CONSTITUIÇÃO. LEI ANTERIOR QUE A CONTRARIE. REVOGAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE. IMPOSSIBILIDADE. 1. A lei ou é constitucional ou não é lei. Lei inconstitucional é uma contradição em si. A lei é constitucional quando fiel à Constituição; inconstitucional na medida em que a desrespeita, dispondo sobre o que lhe era vedado. O vício da inconstitucionalidade é congênito à lei e há de ser apurado em face da Constituição vigente ao tempo de sua elaboração. Lei anterior não pode ser inconstitucional em relação à Constituição superveniente; nem o legislador poderia infringir Constituição futura. A Constituição sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes: revoga-as. Pelo fato de ser superior, a Constituição não deixa de produzir efeitos revogatórios. Seria ilógico que a lei fundamental, por ser suprema, não revogasse, ao ser promulgada, leis ordinárias. A lei maior valeria menos que a lei ordinária. 2. Reafirmação da antiga jurisprudência do STF, mais que cinqüentenária. 3. Ação direta de que se não conhece por impossibilidade jurídica do pedido.

(ADI 2, Relator(a): Min. PAULO BROSSARD, Tribunal Pleno, julgado em 06/02/1992, DJ 21-11-1997 PP-60585 EMENT VOL-01892-01 PP-00001)

30. A exclusividade do serviço público de Loterias conferida, indevidamente, à União (art. 1º do Dl n. 204/67), em detrimento dos Estados-membros, confronta preceitos constitucionais vigentes, especialmente, por:

a) violar a competência residual à exploração pelos entes-federativos estaduais e distrito-federal (art. 25, § 1º), considerando, em modo contrário,

b) inexistir previsão constitucional atribuindo, a exclusividade à União, a exemplo do art. 177, cujo rol é taxativo, numerus clausus, não passível, inclusive, de sua criação por legislação infraconstitucional, e, assim,

c) violar a regra do princípio constitucional da isonomia entre os Estados (art. 4º, inc. V), não excepcionada, no caso, pela Constituição.

31. O Procurador do Estado do Rio de Janeiro – PGE-RJ, Alexandre Santos Aragão, leciona que as hipóteses de monopólio, sempre em favor da União, são previstas, apenas, em sede constitucional, cujo rol é taxativo, senão vejamos:

“Uma importante diferença formal dos monopólios públicos em relação a outras atividades econômicas exploradas pelo Estado é o fato de eles não poderem ser criados por lei, existindo apenas os monopólios públicos já previstos na CF. Os monopólios não têm dispositivo genérico, nem delegação do Constituinte para que o Legislador possa criar outros além dos já previstos na própria Constituição. Os monopólios já são exaustivamente estabelecidos na Constituição, e todos nela foram instituídos apenas em favor da União Federal, inexistindo monopólios públicos estaduais ou municipais.”23

32. O Ministro do STF, Luís Roberto Barroso, quando à época, igualmente, Procurador do Estado do Rio de Janeiro, ao analisar especialmente a exclusividade prevista no Decreto-lei n. 204/1967, chamava à atenção de que não poderia uma lei ordinária (como o decreto-lei) alterar a repartição constitucional de competências, já que não prevista na Constituição Federal, senão vejamos:

“39. Até porque, o contrário seria admitir que a União pode, por lei ordinária, alterar a repartição constitucional de competências, invertendo a lógica da supremacia da Constituição e do federalismo. Não estando o serviço público de loterias previsto entre aqueles reservados expressamente à União pela Constituição da República (art. 21, XI e XII), não há que se cogitar de regime de exclusividade em favor da União. Portanto, ainda que se admita, para argumentar, que os arts. 1° e 32 do Decreto-lei nº 204/67 tenham resistido ao contraste com as Constituições anteriores, é certo que tais dispositivos legais não foram recepcionados pela Carta de 1988, naquilo em que manietavam a autonomia dos Estados federados para explorar a atividade lotérica”. (Grifo nosso)

33. O Ministro do STF, Carlos Ayres Britto, analisando essa exclusividade à vista da Súmula Vinculante n. 02/2007, quando do leading case desta, Adin 2.847-2 – DF, assevera que “se é correto ajuizar que apenas a União pode originariamente legislar sobre essa ou aquela espécie de sorteio (e assim excluí-lo da ilicitude contravencional), não parece verdadeiro, contudo, afirmar que somente ela pode explorá-lo”, senão vejamos:

"34. No uso, porém, de sua competência legislativa na matéria, a União Federal não foi autorizada a reservar para si a exclusividade da exploração de sorteios, de modo a excluir a co-participação dos Estados e do Distrito Federal. E porque não se acha habilitada a monopolizar o setor (todo monopólio é matéria de reserva normativa de tomo constitucional), proibida está de impedir que essas duas tipologias de pessoa governamental façam uso da competência residual que se extrai da leitura do art. 25. da Carta de Outubro(..).

(Grifo nosso)

34. Gustavo Henrique Justino de Oliveira comunga de não terem sido recepcionados pela Carta de 1988 tanto o monopólio da União, quanto à vedação da criação, e quando já criadas, a ampliação das loterias estaduais, porque seriam restrições ou mesmo aniquilamento delas, como previsto, respectivamente, no art. 1º e art. 32, do Dl n. 204/67, vigendo, todavia, os demais dispositivos, ainda que defasados, senão vejamos:

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“(...) No entanto, é preciso asseverar que tanto o Decreto-lei n° 6.259/44, na parte em que exige o denominado "decreto de ratificação", como principalmente o Decreto-lei n° 204/67, quando institui, como monopólio exclusivo da União Federal, o serviço de loterias, vedando a criação e, quando já criadas, a ampliação das loterias estaduais, não foram recepcionados pela Carta de 1988.

Defendendo inclusive a revogação desses textos e a ausência de recepção até mesmo pela Carta de 1967, encontram-se (i) o ex-Ministro do STF Oswaldo Trigueiro (RDP n. 76, p. 37-42), (ii) Caio Tácito (RDP n. 77, p. 75-79) e Diogo de Figueiredo Moreira Neto (RDPGERJ, n. 40, p.236-242).

A não recepção dos textos indicados cingir-se-ia às partes em que restrigem ou mesmo aniquilam a exploração do serviços de loterias pelos Estados, em seus respectivos territórios. Os diplomas continuariam vigentes no que tange a disciplina das loterias relacionada com a esfera federal, embora com previsões bastante defasadas.”24 (Grifos nossos)

35. Gustavo Henrique Justino de Oliveira, destaca, ainda, que esse Decreto-lei n. 204/1967, sob à égide da Constituição Federal de 1967, já era criticado e considerado inconstitucional por ilustres juristas do quilate de Caio Tácito, Oswaldo Trigueiro, Geraldo Ataliba, e Diogo de Figueiredo Moreira Neto, cujos fundamentos, inclusive, se mantêm em voga até os dias atuais, como apontado pelo Ministro do STF, Luis Roberto Barroso25.

36. Neste sentido, o Procurador do Estado do Rio de Janeiro, Caio Tácito, aponta que o Decreto-lei n. 204/1967, ao prever essa exclusividade (art. 1º), como um monopólio virtual, ofende o sistema constitucional no tocante à forma federativa, em detrimento dos Estados-membros, comprometendo suas autonomias e à possibilidade de serem providos dos necessários alimentos financeiros. Estender-se-ia, inclusive, a inconstitucionalidade, por arrastamento, quanto à imposição de imobilização no status material da exploração pelos Estados-Membros (art. 32, § 1º), senão vejamos:

"Dispondo por essa forma, o Dec-lei nº 204/67 gera um virtual monopólio, pela União, do serviço público de loterias, dele excluindo os Estados até então admitidos a exercer, no âmbito de seus territórios, equivalente prestação de serviço público.

A norma de exclusividade duplamente ofende o sistema constitucional, tal como configurado na Lei Suprema da Federação.

Primeiramente, viola o princípio da autonomia estadual que se inscreve na estrutura da República Federativa.

Entre os princípios obrigatórios para os estados, prescritos na Constituição para sua organização - os chamados princípios sensíveis da Federação - em nenhum deles, seja na enumeração do art. 13, seja em outro preceito, se encontra apoio para a exclusão imposta aos estados, como limitação à sua criatividade.

A regra básica de que aos Estados são conferidos todos os poderes que, explícita ou implicitamente, não lhes sejam vedados (art. 13, § 1°) não permite à lei federal a interdição que se lhes impõe de prover ao custeio de serviços assistenciais, culturais ou equivalentes, por meio de captação de receita própria da criação nova de loterias em seu território.

O regime federativo tem como um de seus pressupostos a convivência, constitucionalmente ordenada, entre o Poder Central e os poderes locais. Sempre que a harmonia do sistema federativo torna necessária a prevalência ou a exclusividade da competência federal, em contraste com a dos Estados, a Constituição emite o adequado comando. (...)

Aos Estados a Constituição da República assegura a administração de seus próprios serviços e a fortiori a competência de criá-los, conforme a sua conveniência, bem como de prover-lhes os necessários alimentos financeiros.

Não fica, porém, nesse ângulo, a inconstitucionalidade do ditame proibitivo que se contém na disposição de exclusividade do serviço federal de loterias.

A norma que prescreve como serviço exclusivo da União a exploração de loterias produz o monopólio virtual dessa atividade.

Com a ressalva tão-somente de situações preexistentes (e, mesmo assim, imobilizadas em seu status material), fica, de modo absoluto, eliminada a concorrência de loterias estaduais diante do privilégio exclusivo da União.

Também sob este ângulo de apreciação, o critério de exclusividade, acolhido no Dec-lei nº 204 discrepa do sistema e se contamina da eiva de inconstitucionalidade.

A existência de monopólio, pela União, de determinada atividade, somente a tolera a Constituição, como norma de exceção, nos estreitos e específicos limites que enuncia no art. 163, a saber: a) quando indispensável por motivo de segurança nacional, ou b) para organizar setor que não possa ser desenvolvido com eficácia no regime de competição e de liberdade de iniciativa.

Em nenhum desses dois parâmetros – únicos em que se pode inspirar lei federal para instituir monopólio – cabe, à toda evidência, incluir-se a emissão de bilhetes de loteria para captar recursos especiais ao Erário Federal.

Um e outro são conceitos dotados de conteúdo próprio, ainda que indeterminado. Não oferecem uma latitude plenamente discricionária, mas se subordinam a fatores objetivos de avaliação e ajuizamento.

Ao intérprete é possível determinar a ocorrência dos pressupostos constitucionais quando se defronta com a lei federal que, expressa ou implicitamente, institui o monopólio.

Também sob este ângulo de apreciação, o critério de exclusividade, acolhido no Dec.-lei 204 discrepa do sistema e se contamina de eiva de inconstitucionalidade.”26

37. O Ministro do STF, Oswaldo Trigueiro de Albuquerque Melo, asseverava ser inequívoco o serviço de loteria pelos Estados-membros, uma vez que não previsto de forma diferente na Constituição Federal, à época, sob pena de ferir a autonomia dos mesmos, senão vejamos:

"A Constituição não impede o funcionamento da loteria estadual. Primeiro, porque não atribui esse serviço à União, com exclusividade. Segundo, porque não proíbe de forma expressa ou simplesmente implícita a existência das loterias estaduais. (...) Se a União pudesse, por lei ordinária, tornar exclusivo um serviço público que a Constituição não proíbe aos Estados, a autonomia destes estaria reduzida a letra morta; a legislação comum poderia aumentar desmedidamente a área de competência federal, estabelecendo a exclusividade da maioria dos serviços públicos concorrentes ou de exclusividade estadual."27 (Grifos nossos)

38. Geraldo Ataliba sacramentava ser o serviço de loteria comum à União e aos Estados, ou seja, concorrencial, não podendo, inclusive, a detentora da competência legislativa, privativa, a pretexto de legislar sobre direito penal, proibi-los, sob pena de, também, tolhê-los financeiramente, vejamos:

"Só são exclusivas da União as competências arroladas no art. 8° da Constituição Federal. Estas o Estado federado não pode desempenhar, sem acordo com a União. As demais possíveis atividades públicas - ex vi do preceito do § 1º do art. 13. - podem ser exercidas pelos Estados, concorrentemente ou não com a União.

Na verdade, a exploração de loterias e similares é atividade subsumível no conceito lato de serviço público. Por isto é constitucional a lei federal que - fundada na competência da União para legislar sobre direito penal - proíbe o seu exercício aos particulares.

Não pode, porém, a União - pretexto de legislar sobre direito penal - proibir aos Estados o exercício de uma atividade que, no próprio texto normativo (que estabelece a proibição) - o Dec-lei 204 - é qualificada como el”serviço público.

Em suma, se de serviço público se cuida, o Estado “reger-se-á pelas leis que adotar' (art. 13, CF); se de atividade pública ou publicizável, terá a mesma liberdade jurídica de que desfruta a União (cada qual agindo na forma da própria lei). Se, por fim, tratar-se de exploração de fontes de recursos financeiros não tributários, a competência é, mais do que concorrente, comum.

Efetivamente, se uma atividade é produtiva de recursos financeiros, sem revestirem o caráter de tributo, parece - à vista do panorama sistemático constitucional brasileiro - que se está diante de caso de competência comum da União ou dos Estados. Ambos podem desempenhá-la livremente.

É que as fontes de recursos não tributários não são explicitamente discriminadas no Texto Constitucional, como o fazem os arts. 18, 21, 23 e 24, quanto aos tributos. Implicitamente também não o são, o que deixa no campo da exploração comum as demais atividades (salvo as reservadas à iniciativa privada).

De outro lado, todo serviço público que não seja nitidamente, por força de preceito constitucional, exclusivo de uma entidade, será de ambas. Isto é elementar e está em todos os tratadistas e comentaristas da Constituição."28

39. O Procurador do Estado do Rio de Janeiro, Diogo de Figueiredo Moreira Neto, recentemente falecido, chamava à atenção de que sempre foi pacífico os Estados-membros poderem explorar suas respectivas Loterias em seus territórios.

40. O ilustre Procurador reconhecia, tanto no tocante à exclusividade (art. 1º), quanto ao congelamento do “status quo” fático das loterias estaduais (art. 32), a inconstitucionalidade, por flagrante violação ao princípio isonômico que sustenta a federação, senão vejamos seu respectivo pronunciamento:

“Não obstante essa exigência, sempre foi pacífico que os Estados poderiam explorar suas respectivas loterias, em seus territórios, até o advento do Decreto-Lei nº 204, de 27 de fevereiro de 1967, que ino­vou um monopólio lotérico em favor da União, abrindo urna tolerância em caráter excepcional, para manter as loterias estaduais existentes (verbis):

(...)

Mas não apenas por este motivo é inconstitucional o referido Decreto-Lei nº 204, de 27 de fevereiro de 1967: por ele estabeleceu-se um monopólio irregular.

Com a entrada em vigor da Constituição de 1967 e, depois, da de 1969, restringiu-se a criação de monopólios estatais a duas hipóteses: segurança nacional ou debilidade de setor incapaz de desenvolver-se com eficácia no regime de economia de mercado (art. 163, da Consti­tuição de 1969).

Como "em nenhum dos dois parâmetros - únicos em que se pode inspirar a lei federal para instituir monopólio - cabe, a toda evi­dência, incluir-se a emissão de bilhete de loteria para captar recursos especiais ao erário federal" (CAIO TACITO, in RDA, art. 61, p. 298), re­sulta claro que a cláusula que estabelece as loterias como "serviço público exclusivo da União" (art. 1º do Decreto-Lei nº 204/67) é in­constitucional.

Finalmente, também é inconstitucional o Decreto-lei nº 204167, no que toca aos dispositivos relacionados com as loterias estaduais, não só por invasão da competência dos estados e pela criação de um monopólio irregular, como por estabelecê-lo em flagrante violação do princípio isonômico que sustenta a federação, expresso no art. 9°, 1, da Constituição Federal:

'Art. 9° - À União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Territórios e Municípios é vedado:

I - criar distinções entre brasileiros ou preferências em favor de uma dessas pessoas de direito público interno contra outra.

Ora, inegavelmente, o 'congelamento' do status quo fáctico das loterias estaduais, decidido por uma lei da União, fere esta basilar isonomia, como se pode deduzir da leitura do art. 32, acima transcrito, e do seu parágrafo primeiro, que proíbe o aumento das 'emissões', limitando­ as 'às quantidades de bilhetes e séries em vigor na data da publicação deste Decreto-lei', configurando-se como uma intervenção desestabilizadora, pelo seu sentido discriminatório e parcial, incompatível com os princípios federativos constitucionalmente adotados. "29

41. Especificamente no que tange aos limites de emissão de bilhetes (art. 32. do Dl n. 204/67), instado a se manifestar de quão prejudicial estava sendo economicamente à Loterj, lá em 1987, o Procurador do Estado do Rio de Janeiro, Caio TÁCITO, ratificando os ensinamentos de seu anterior Parecer30, já por nós exposto, apresenta mais argumentos, para asseverar a igualmente inconstitucionalidade dos mesmos frente à constituição passada, por ferir, em suma, o regime federativo que assegura a autonomia dos Estados-membros, senão vejamos:

Nenhuma norma ou princípio constitucional possibilita ao legislador federal, fora das órbitas estritas em que a tanto o habilita, vedar ou interditar aos Estados esta ou aquela atividade que, pela inexistência de norma proibitiva, se torna acessível ao exercício de sua autonomia.

Portanto, a reserva ou exclusividade que o Decreto-Lei nº 204, de 1967, atribui à União para que somente a ela fosse facultada a exploração de loteria (com apenas a ressalva de sobrevivência das loterias estaduais preexistentes, no entanto, congeladas no estado em que se encontravam) discrepa, por inteiro, da regra maior, permissiva do paralelismo, ou da simultaneidade dos serviços públicos de diverso nível federativo.

Tal norma ofende, diretamente, a essência descentralizadora da Federal e o princípio de autonomia dos Estados Federados, tanto quando proíbe, de forma extrema, a criação de novas loterias estaduais, como quando veda a expansão das então existentes, condenadas ao confinamento.

Num ou noutro caso, igualmente a autonomia estadual e a liberdade de auto-organização, que dela provém, estão violentadas. Tanto importa aos Estados, a imposição de nada ter como a de nada fazer. A criação de serviços novos, como a expansão de serviços existentes, têm a mesma fonte inspiradora, a saber, o poder e a competência de dispor sobre a organização administrativa pela via de sua conveniência.

Não fica, porém, neste ângulo apenas, a inconstitucionalidade do ditame proibitivo que se contém na disposição de exclusividade do serviço federal de loteria.

A norma que prescreve como serviço exclusivo da União a exploração de loterias- e expulsa os Estados de igual atividade- tem como consequência natural a instituição do monopólio virtual dessa espécie de serviço público.

Com a ressalva, tão somente de situações existentes (e, mesmo assim, imobilizados em seu status material na data da vigência da norma exclusivista) fica, de modo absoluto e categórico, eliminada a concorrência de loterias estaduais diante do privilégio exclusivo da União.

Contudo, o monopólio, pela União, de determinada atividade, ou serviço, somente a tolera a Constituição como norma excepcional, nos específicos limites descritos no artigo 163, a saber:

a) quando indispensável por motivo de segurança nacional, ou

b) para organizar setor que não possa ser desenvolvido com eficácia no regime de competição e de liberdade de iniciativa.

Em nenhum desses dois parâmetro- únicos em que se pode inspirar a lei federal para instituir monopólio- cabe, a toda evidência, incluir-se a emissão e bilhetes de loteria com a finalidade de capitar recursos para o custeio de serviços públicos de natureza social.

Uma e outra daquelas hipóteses são conceitos dotados de conteúdo próprio, ainda que indeterminado. Não são conceitos de discricionariedade plena, mas se subordinam a fatores objetivos de avaliação e de ajuizamento.

Também, portanto, sob este prisma a interpretação, o critério de exclusividade, em benefício da União, acolhido no Decreto-Lei nº 204/67, se contamina de eiva de inconstitucionalidade.31

42. Essa limitação imposta aos Estados-membros ofende, inquestionavelmente, o princípio da isonomia entre os Estados (art. 4°, V), pois só ocorre com eles. Ou se estenderia, também, à União, ou não se exigiria de qualquer um ente federativo!!!

43. Portanto, o Decreto-lei n. 204/1967, antes da CF-88, já era considerado inconstitucional no tocante aos dois aspectos, ora questionados, quais sejam, exclusividade à União, e limitações à exploração do serviço público de Loterias pelos Estados-membros, e, por arrastamento, à vedação de criação de novas loterias (caput do art. 32).

44. No ensejo, esclarece-se que o fato de a União deter a competência privativa sobre Loterias, inclusive, em arrimo à Súmula Vinculante n. 02, não a faz poder legislar em prejuízo aos Estados-membros, como bem destaca o Ministro do STF, Luís Roberto Barroso, ao exemplificar o caso das desapropriações públicas, vejamos:

10. Pois bem. Apenas a União pode legislar sobredesapropriação, de modo que Estados e Municípios estarão vinculados ao regime por ela instituído na matéria. Talvez seja até possível que esse regime não seja rigorosamente igual para os três níveis federativos, mas é certo que não poderá interditar a atuação dos outros entes, tampouco esvaziá-la por meio de limitações injustificadas. Nas situações descritas, a legislação federal não poderia inviabilizar ou tomar excessivamente dificil a desapropriação para fins de ordenação do solo urbano ou para fins de proteção do patrimônio histórico. Essa mesma lógica será aplicável a todos os casos em que competências político-administrativas de determinado ente devam ser exercidas nos termos de legislação editada privativamente por ente diverso'º. E aqui se chega à segunda parte desse registro teórico inicial.

45. Neste sentido, mesmo a União detendo a competência legislativa privativa, não a confere exclusividade dos serviços públicos de Loteria, tão pouco que a exerça de forma a prejudicar os Estados-membros.

46. Ainda que se reconhecesse como recepcionadas as limitações impostas aos Estados-membros (art. 32, § 1º, do Dl. n. 204/1967), mesmo assim, elas seriam consideradas inexequíveis, por irrazoáveis e desproporcionais, ao importarem, perversamente e sem cabimento, em verdadeira e efetiva extinção da exploração do serviço público estadual de Loterias.

47. Com efeito, se se levar a efeito essas limitações, com a exploração nos mesmos moldes de 50 anos atrás, desacompanhada de todas as mudanças política, social, econômica, cultural, tecnológica, populacional..., é, por vias oblíquas, decretar o fechamento das instituições Lotéricas estaduais, com todos os efeitos dele decorrentes, especialmente o orçamentário, e o fomento social a todas as pessoas, com grave risco ou vulnerabilidade social, assistidas com a receita delas.

48. Ademais, essas limitações ferem o princípio constitucional da eficiência (art. 37), em que se prega, em regra, a maximização dos resultados.

49. Em confronto entre dois princípios constitucionais, quais sejam, no caso, o da legalidade, extrema, e o da eficiência, ambas de mesma matriz (art. 37, caput), pela chamada Técnica da Ponderação32, capitaneada pelo Ministro do STF, Luís Roberto Barroso, prevaleceria, inexoravelmente, o último, por total razoabilidade e proporcionalidade.

50. Corrobora-se a essa conclusão a grave crise financeira que assola o país, de forma que se espera, ainda mais, a maximização de resultados, financeiros, e não limitações administrativas, operacionais.

51. Por enorme esforço de manter, ainda, o art. 32, § 1° do Dl n. 204/67, em voga, no tocante as limitações, interpretar-se-ia sob a ótica evolutiva, dentro de uma exegese apropriada, reconhecendo no seu extenso decurso de tempo as naturais evoluções: homem, tecnologias, cultural, populacional, ambientais, sociais, políticas, econômicas.(seria tudo no plural?)

52. Essa construção interpretativa é devidamente tratada na peça exordial da ação de Arguição Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF, proposta pelo Estado do Piauí, ADPF n. 455- PI, onde se questionam justamente as limitações impostas aos Estados-membros, em comento.

53. Ressalta-se, ainda, que toda norma proibitiva tem uma razão de ser, ou seja, seu propósito, em geral, a proteção e prevenção a um determinado bem, jurídico.

54. No caso em comento do Decreto-lei n. 204/1967, não vislumbramos qualquer razão a assistir tais proibições, vedações, e/ou limitações, inclusive sob o ponto de vista operacional, ou mesmo consumerista.

55. Não há qualquer bem a ser protegido!!! Vislumbra-se só a pretensão inconstitucional do enriquecimento sozinho, ilícito, da União, em quebra da harmonia e isonomia federativa, logo, insustentável.

Sobre o autor
Marcos Octávio Doria de Araujo

Assessor-Chefe Jurídico da Loterj - Loteria do Estado do Rio de Janeiro, Diretor Jurídico do Sindicato dos Servidores do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, Auditor do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, Advogado associado ao Escritório FCS Advogados Associados - RJ, Graduado pela Faculdade Nacional de Direito - FND, integrante da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Mestrado em Administração Pública pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro - EBAPE/FGV-RJ. https://www.linkedin.com/in/marcos-araujo-a00361161/

Informações sobre o texto

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