DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Historicamente, o homem busca adquirir suas propriedades imóveis em regiões férteis e com água abundante. O aumento populacional, juntamente com o desenvolvimento industrial, vem impondo cada vez mais, maior necessidade de recursos naturais.
Para Aristóteles, o precursor da função social da propriedade, o que é comum ao maior número de indivíduos, constitui objeto de menor cuidado e interesse, pois o homem tem maiores cuidados com o que lhe é próprio e tende a negligenciar o que lhe é comum (OST, 1995, p. 150).
No entanto, a propriedade não possui apenas um lado positivo, dispõe também de um lado negativo, onde há exclusão dos demais indivíduos, não proprietários, do gozo daquele determinado bem.
De acordo com o ordenamento jurídico vigente, a função social e ambiental não se limita apenas ao exercício do direito da propriedade permitindo ao proprietário, no exercício do seu direito, tudo aquilo que não prejudique a coletividade e o meio ambiente. Hoje, pode-se impor comportamentos positivos ao proprietário enquanto exercente de seu direito, a fim de que sua propriedade, adeque-se aos interesses da coletividade, de fato, contribuindo para a preservação do meio ambiente e dos recursos naturais.
A tutela do direito de propriedade só é contemplada quando não fica constatado mal uso. Assim, a função social nasce para resguardar a liberdade e garantir o direito dos não proprietários. Desta forma, busca-se a igualdade perante a relativização das liberdades individuais (GOULART e FERNANDES, 2012, p. 130).
O cumprimento da função social da propriedade está ligado às ideias de proteção do ambiente natural e valorização da pessoa humana. Deve promover o reconhecimento do homem como ser constituinte de um ecossistema, que deve ser equilibrado, fazendo assim uso racional dos recursos naturais, visando sempre a utilização de modelos sustentáveis de desenvolvimento.
Assim, a função social da propriedade mostra-se como como um poderoso instrumento com vistas a equilibrar a atividade econômica, bem como para sancionar o proprietário que a utiliza sem cuidar do interesse social.
Para a efetivação da função social da propriedade, a Constituição relaciona maneiras de restringir o direito de propriedade, a exemplo da desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou ainda por interesse social, entre outros casos.
DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO
As unidades de conservação são espaços territoriais com limites definidos, incluídos seus componentes e águas jurisdicionais, que possuem características naturais importantes, legalmente instituídas pelo poder público, que possuem o objetivo de preservar ou conservar o meio ambiente, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção.
São espaços naturais que merecem proteção jurídica especial em virtude das características do seu bioma. Pode-se citar como exemplos a Mata Atlântica, a Floresta Amazônica, o Pantanal Mato-Grossense, a zona costeira, as dunas , os manguezais, as várzeas, as restingas e as florestas que são consideradas como reservas legais e de preservação permanente.
Nada obstante, espaços territoriais especialmente protegidos não são sinônimos de unidades de conservação. Como reverbera o constitucionalista José Afonso da Silva (1994), um espaço territorial se converte em uma unidade de conservação quando assim é declarado expressamente pelo poder público, em obediência a uma metodologia prevista em lei, para que lhe seja atribuído um regime jurídico diferenciado, mais restritivo e determinado.
O processo de criação de uma unidade de conservação deve ser precedido da realização de estudos técnicos, que deverão ser apresentados à população quando da realização de uma consulta pública, o que permite que a sociedade possa identificar a localização, a dimensão e os limites do espaço territorial a ser protegido.
Definidas pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação, as unidades de conservação podem ser de uso direto quando envolvem o uso comercial ou não dos recursos naturais ou de uso indireto quando não envolvem coleta, consumo, destruição ou dano ou dos recursos naturais.
LEGISLAÇÃO AMBIENTAL PERTINENTE
A Constituição da República Federativa do Brasil, de outubro de 1988, em seu art. 225, garantiu expressamente o direito ao meio ambiente equilibrado, e no inciso III, do § 1º do mesmo dispositivo, como meio de assegurar a efetivação do direito definiu que em todos os entes federativos deverão ser criados, por lei, “Espaços Territoriais Especialmente Protegidos”, gênero onde estão inseridas as unidades de conservação.
Apenas 12 anos após a promulgação da Constituição, entrou em vigor a Lei Federal no 9.985, de 18 de julho de 2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, e estabeleceu critérios e normas para a criação, implantação e gestão das unidades de conservação. A lei define como sendo unidades de conservação aquele espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, que tem definidos objetivos de conservação e limites, sob especial regime de administração, ao qual se aplicam adequadas garantias de proteção.
ALGUNS ASPECTOS INERENTES ÀS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO
As unidades de conservação integrantes do SNUC estão dividias em grupos e categorias que variam de acordo com as formas de manejo. Dividem-se inicialmente em dois grandes grupos: a) as Unidades de Proteção Integral, que tem como objetivo preservarem a natureza, admitindo apenas o uso indireto dos seus recursos naturais; e b) as Unidades de Uso Sustentável, que objetiva compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela de seus recursos naturais.
As Unidades de Proteção Integral se subdividem em Estação Ecológica, Reserva Ecológica, Parque Nacional, Monumento Natural e Refúgio da Vida Silvestre. Já as Unidades de Uso Sustentável contêm as seguintes subespécies: Área de Proteção Ambiental, Área de Relevante Interesse Ecológico, Floresta Nacional, Reserva Extrativista, Reserva de Fauna, Reserva de Desenvolvimento Sustentável, e Reserva Particular do Patrimônio Natural.
As unidades de conservação são criadas por ato do Poder Público, não sendo exigido a criação por lei, no entanto, nos termos da norma constitucional, a alteração ou supressão de áreas protegidas deve ser feita somente através de lei em sentido formal e específica, sendo vedada qualquer utilização que coloque em risco a integridade dos atributos ambientais que justificam a sua proteção. Além da desafetação e da redução de limites, qualquer alteração das finalidades da unidade em proteção também só poderá ser feita através de lei específica.
Vale destacar que não há proibição de utilização e exploração econômica em todas áreas merecedoras de proteção legal, mas sim o uso ou desenvolvimento de atividades nesses territórios que alterem suas características e atributos responsáveis pelo fundamento à proteção. Ou seja, de acordo com o fim desejado e estabelecido pelo estudo prévio, a lei prevê a continuidade equilibrada dos recursos naturais existentes naquele espaço se assim for possível a manutenção e preservação ambiental desejada.
A criação de uma unidade de conservação deve ser antecedida pela realização de estudos técnicos, assim como de consulta pública, que possibilitem identificar sua localização, dimensão e os seus limites mais adequados, sendo o Poder Público obrigado a fornecer informações adequadas e cognoscíveis à população e a outras partes que por ventura sejam interessadas.
Além do mais, toda unidade de conservação deve ter um plano de manejo, que é um documento técnico com fundamento nos objetivos gerais, estabelecendo o seu zoneamento e as normas que devem presidir o uso e manejo dos recursos naturais, inclusive a implantação de estruturas físicas e necessárias à sua gestão. É através dele que o Poder Público restringe o uso da propriedade pública, limitado pelo fato de que o meio ambiente é bem de uso comum do povo.
Algumas áreas de conservação devem ter zonas de amortecimento e corredores ecológicos, que são áreas de domínio privado e que tem o objetivo de separar o meio em que está o ser humano e o meio ambiente natural.
Paulo Bessa Antunes (2010), doutrina que de acordo com a determinação constitucional expressa, não é possível ao administrador público deixar de criar, em todas os entes da Federação, espaços territoriais a serem especialmente protegidos. Afirma que não há margem para discricionariedade, sendo de sua competência, tem o dever-poder de instituir tais unidades, uma vez identificados os espaços merecedores de proteção especial, devendo estebelecer a unidade de conservação que seja capaz de dar a melhor proteção possível àquele determinado ambiente.
A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E AS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO
Segundo doutrina Bobbio (1992, p. 44), ao rememorar a experiência dos estados socialistas, que “ao priorizarem a igualdade, suprimiram a liberdade, e a experiência de uma ordem mundial capitalista e liberal, que ao priorizar a liberdade, acabou por dar causa a uma brutal desigualdade entre os povos e entre as nações”. Desta forma, aos poucos, este sentido de propriedade levou a um instrumento de exclusão social, com a consequente devastação do meio ambiente vez que a propriedade se tornou meio de ascensão social e acúmulo de riquezas a qualquer preço.
Ao longo dos tempos, a percepção da relação de necessidade entre o meio ambiente equilibrado e a manutenção da qualidade de vida, bem como a garantia de vida das próximas gerações, disseminou mundo afora uma sensibilização ecológica positiva, o que proporcionou o desenvolvimento da legislação ambiental. Afirmam Martins e Farhat (2012, p. 3), que essa mudança paradigmática inverteu a lógica tradicional do direito de propriedade – que era dotado de contornos que não contemplavam a necessidade da coletividade, podendo ser estabelecida uma nova conformação sobre a exploração deste direito, gerando a construção de um caráter socioambiental à função social da propriedade.
Após a Constituição de 1988, pode-se afirmar que a dicotomia entre propriedade privada e propriedade pública perde sentido, pois a norma maior que incide diretamente sobre o tema, melhor define a propriedade como sendo constitucional, podendo, então, apresentar aspectos públicos ou privados. O conceito de propriedade constitucional transcede a relação jurídica entre a pessoa e o seu bem, gera “importância social e coletiva envolvendo direitos não só patrimoniais sobre bens materiais, mas também sobre direitos subjetivos do cidadão e direitos imateriais” (STOEBERL, 2012, p. 166).
Nesse contexto, fica evidenciada a colisão entre dois direitos fundamentais, situação do conflito entre o direito de propriedade e o direito ao meio ambiente equilibrado e preservado. Observa-se que a propriedade, direito fundamental de primeira geração, deixa de cumprir sua função social, quesito essencial para sua garantia constitucional, quando se sobrepõe ao direito ao meio ambiente – direito fundamental de terceira geração.
Paulo Bonavides (2010, p. 560) ensina que os direitos fundamentais são os direitos responsáveis por criar e manter os pressupostos elementares de uma vida na liberdade e dignidade humana. No estudo em questão, em verdade, a propriedade é uma exteriorização da liberdade, e o meio ambiente uma extensão ao direito a uma vida digna.
O direito de propriedade passou a ter como pressuposto e condição de seu exercício a função social, com isso, o direito só se legitima quando existir respeito aos direitos da coletividade e aos limites impostos pelas leis. Já está entranhado na essência do nosso sistema que o direito de propriedade apenas pode ser reconhecido pela ordem jurídica estatal, se for atingida a função social da propriedade, paralelamente com o interesse individual do proprietário. Desta forma, a propriedade apenas existe enquanto direito se tiver a sua função social respeitada.
Há o equilíbrio entre os direitos fundamentais em questão, quando a propriedade - direito real individual, estiver em sintonia com o interesse coletivo, visando o bem estar social, a preservação do meio ambiente e os interesses sociais e econômicos da coletividade.
Com a expansão da proteção legal à preservação do meio ambiente, deparamo-nos com a necessidade de revisão de muitos direitos individuais, a fim de se acomodarem às novas exigências. O direito de propriedade é exatamente um desses institutos que mais é afetado pelas inovações na legislação ambiental.
A concepção individualista que protesta que a preservação do meio ambiente ocasiona ofensa ao direito de propriedade deve ser superada.
Nessa perspectiva, orienta Luiz Édson Fachin (1998) que o direito de propriedade privada clássico atribuía ao seu titular a faculdade de agir ou não de acordo com as suas conveniências. Com a função social da propriedade amenizando esse poder impõe-se ao proprietário o uso do bem para fins sociais. Assim, os dispositivos constitucionais que regulam o meio ambiente introduzem uma nova perspectiva e determinam a abstenção do uso econômico do bem quando em risco o direito ao meio equilibrado.
Com a expansão da fronteira agrícola, associada à valorização desta economia e ao fortalecimento dos órgãos públicos de meio ambiente, especialmente a uma maior vigilância da sociedade, foi necessária a imposição de mudanças na maneira displicente com que o Poder Público criava e administrava as unidades de conservação, de maneira que a criação e implantação de uma unidade de conservação é capaz de gerar conflitos que podem chegar à esfera jurídica.
Quando esta criação e implantação de unidades de conservação de uso indireto se dá em terras particulares, tais como reservas biológicas e parques, o problema pode originar tensões de dimensões fenomenais.
As organizações ambientalistas exigem que esses espaços sejam ampliados, ao passo que os ruralistas não aceitam a intervenção estatal em propriedades privadas sem prévia e justa indenização.
Para a implementação de direitos constitucionalmente assegurados, especialmente quando se busca a harmonia entre direitos individuais e coletivos, a atuação do Estado deve ser na medida do legalmente necessário. De fato, a criação de uma unidade de conservação é um ato vinculado, que submete-se ao controle de legalidade, devendo obedecer aos pressupostos ambientais previstos para qualificação em determinada categoria.
Diante do exposto, Paulo Bessa Antunes (2010) faz menção ao princípio da proibição do excesso e questiona:
Afinal, o que caracterizaria o excesso em ralação à instituição de unidades de conservação? A matéria pode ser examinada por duas vertentes principais (i) a primeira delas seria o excesso no que diz respeito à criação de unidades do grupo de proteção integral em espaços territoriais submetidos ao regime de direito privado. Tal excesso pode ser subdividido em (a) criação de unidades de conservação sem observância de todos os requisitos legais que justificassem a medida e (b) em especial a não indenização prévia do particular e o consequente desapossamento administrativo, ainda que de forma “branca”. A segunda vertente (ii), um pouco mais sutil e, portanto, de difícil caracterização e a criação de unidades de conservação do grupo de proteção integral em terras públicas, com a violação dos direitos da coletividade em usufruir bem público de uso comum do povo de forma mais plena. Aqui, a instituição de um regime de utilização indireta, pode ter consequências graves para populações que legitimamente buscam em tais áreas sua sobrevivência.
A criação e ampliação de uma unidade de conservação é um poder-dever atribuído ao administrador público pela Lei Maior da República. Se estiverem presentes os requisitos qualificadores em determinado território, capazes de atribuir àquele espaço uma delimitação de área de proteção especial, assim o deve ser feito. O poder da Administração Pública, nesse caso, deve ser interpretado como uma obrigação de fazer.
Ou seja, sempre que for possível, observando-se as diretrizes do SNUC, criar-se uma unidade de conservação com vistas a preservar uma área representativa de um ecossistema, haverá de ser criada, ainda que esteja localizada em área de propriedade particular.
Quanto ao direito de propriedade, deverão ser analisadas, em cada caso, as limitações que a ele restaram impostas pela criação ou ampliação da unidade de conservação, considerando também os fins sociais e econômicos a que estava vocacionada até a implantação da unidade.
Resguardado o direito à indenização, que deverá ter sua necessidade e dimensão dosada conforme a maior ou menor limitação do direito de propriedade daquela área específica.
Em consonância, a declaração de utilidade pública das unidades de conservação para fins de desapropriação encontra fundamento no fato de que o interesse de toda coletividade deve sobrepor-se aos interesses individuais, e, desta forma, cabe ao Poder Público o dever de preservar o meio ambiente para a sobrevivência digna das presentes e futuras gerações.
Do exposto, observa-se que a criação de unidades de conservação em áreas de domínio particular, fundamentada pelo cumprimento do direito constitucional ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, acaba gerando restrições ao direito também constitucional de propriedade. Neste conflito, também devem ser observados outros princípios, como o da proporcionalidade, o da legalidade, o da razoabilidade, entre outros, para a melhor satisfação dos interesses da coletividade.