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Fraude à execução e os negócios jurídicos imobiliários: a prova da boa-fé do terceiro adquirente no Código de Processo Civil de 2015

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Agenda 06/09/2017 às 14:22

A PROVA DA BOA-FÉ DO TERCEIRO ADQUIRENTE NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS IMOBILIÁRIOS

O Código de Processo Civil de 2015 autorizou o juiz a, presentes determinados pressupostos, redistribuir o ônus da prova[72], diante das peculiaridades de cada caso, adotando a chamada teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova[73]. Seu fundamento está na impossibilidade de se atribuir o ônus da prova a quem não poderá dele se desincumbir, por ser a sua produção de difícil ou impossível realização[74]. O onus probandi deve recair sobre quem tem melhor acesso ao acervo fático probatório, estando mais apta a participar da instrução, sem onerar a parte adversa[75].

A inovação é positiva, pois a possibilidade genérica de inversão do ônus da prova em consonância com as particularidades do caso concreto potencializa o descobrimento dos fatos evitando decisões com base em critérios meramente formais de julgamento[76]. Ao se atribuir o ônus da prova sobre aquele que tem melhores condições econômicas, técnicas e jurídicas para dele se desincumbir, realiza-se os valores da igualdade entre as partes, do dever de cooperação (art. 6º do CPC de 2015) e da proibição do abuso de direitos processuais[77].

O ônus da prova, sob o aspecto objetivo, é regra de julgamento aplicável subsidiariamente quando as provas constantes dos autos são insuficientes para o esclarecimento das questões de fato[78]. Orientam as partes quanto à sua atividade probatória e o juiz quanto ao julgamento quando não há provas suficientes[79].

A redistribuição do ônus da prova prevista no Código de 2015 depende de três requisitos formais: decisão motivada; existência de decisão anterior à decisão final estabelecendo a redistribuição da carga probatória[80] e que não implique prova diabólica reversa[81]. Há ainda dois pressupostos materiais: impossibilidade ou excessiva dificuldade de cumprir o encargo; e maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário[82].

Para se enfrentar a questão proposta nesse artigo, é preciso averiguar se estes pressupostos estão presentes quando se está diante de um caso de fraude à execução.

É impossível ou excessivamente difícil para o credor comprovar a ciência pelo terceiro adquirente da existência de litispendência processual em face do alienante devedor. Adentrar o foro íntimo do terceiro é missão árdua e as provas em sua maioria dependeriam da colaboração do terceiro ou seriam intuídas pela sua omissão em apresentar documentos eventualmente requisitados pelo juiz ou pelo credor.

O credor poderia comprovar, sim, a má-fé do terceiro adquirente demonstrando que não retirou as certidões negativas nos distribuidores do local aonde localizado o imóvel, que ele pagou valor irrisório pelo bem ou que o pagamento não foi efetivamente transferido. Mas, observe que a comprovação de todos esses fatos dependeria de prova a ser trazida a juízo pelo terceiro ou decorreriam da sua omissão a qual se imputaria a penalidade de reputar que o fato ocorreu como alegado pelo credor.

Por outro lado, o terceiro adquirente tem plena condição de comprovar que tomou todas as cautelas cabíveis para a compra do imóvel obtendo as certidões dos cartórios de protestos e dos distribuidores dos fóruns do local do bem e do domicílio do vendedor, que efetivamente pagou pelo imóvel e o fez a preço condizente com os valores de mercado, que manteve tratativas com o vendedor para discutir preço e condições de pagamento por mensagens através do correio eletrônico ou pelo celular. A prova – que se mostra extremamente difícil ou impossível para o credor – é assaz viável para o adquirente, não se defendendo aqui, de modo algum, o afastamento do requisito da ciência do terceiro ou a adoção de uma prova absoluta.

A experiência cotidiana tem demonstrado, portanto, que a prática de atos processuais e materiais para elucidação dos fatos que denotem a boa ou má-fé do adquirente de bem imóvel competirão invariavelmente a ele, pois a má-fé só se prova com a demonstração de que o adquirente não se cercou dos cuidados mínimos necessários à realização do negócio[83]. Se nenhuma das partes produzir provas, se o adquirente não comprovar minimamente a adoção de qualquer cautela para aquisição do bem, as consequências pela não produção da prova devem lhe ser imputadas.

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Exatamente nessa linha, a Ministra Fátima Nancy Andrighi defende a interpretação dos dispositivos que tratam da fraude à execução no sentido de se imputar ao terceiro adquirente o ônus da prova da não ocorrência dos pressupostos da fraude de execução. Segundo a Ministra, cabe ao terceiro adquirente o ônus de comprovar que: i) com a alienação, o devedor não ficou reduzido à insolvência; ou ii) demonstrar qualquer outra causa  passível de ilidir a presunção de fraude, inclusive a impossibilidade de ter conhecimento da demanda.[84] Para fundamentar a tese, socorria a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova antes mesmo de ter sido adotada pelo CPC.

A Ministra aponta ainda outras razões pelas quais reputa ser mais fácil para o terceiro adquirente produzir a prova de que agiu de boa-fé do que para o credor provar que o terceiro tinha conhecimento da fraude[85]. Primeiro, o processo torna-se público a partir do registro e distribuição da petição inicial, podendo-se obter tais informações, em sua maioria, pela internet. Segundo, a modalidade de negócio imobiliário encontra-se sujeito a averbação do cartório de Registro de Imóveis[86], nos termos do art. 167 da Lei 6.015/73, que envolve a apresentação de uma série de documentos, inclusive documentos pessoais do devedor[87] [88].

Ademais, diante do valor envolvido na transação, é dever do adquirente de bem imóvel acautelar-se obtendo certidões dos cartórios distribuidores judiciais para constatar a existência de ações contra o comprador, bem como certidão negativa de dívida tributária junto à receita federal.  Seu descumprimento viola a boa-fé objetiva, a qual se impõe em toda relação negocial nos termos do art. 422 do CC/2002[89].

A boa fé objetiva, longe de perquirir o desejo íntimo e adentrar o pensamento das partes, impõe um padrão ético de conduta a ser adotado na relação negocial. Apurar a convicção de agir do ser humano é um desafio para o juiz já que a verdade fica restrita ao domínio do pensamento da parte[90]. Adotar posicionamento contrário, como fez o Superior Tribunal de Justiça na súmula 375 e ao julgar o Recurso especial sob o regime dos recursos repetitivos sobre o tema[91], legitima a conduta irresponsável e até fraudulenta daquele que compra imóvel sem adotar as cautelas necessárias para sua aquisição, não pesquisando a situação do vendedor[92].

Em sentido contrário, Fredie Didier Jr., Leonardo Carneiro da Cunha, Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira sustentam que, se a pendência da ação real imobiliária não tiver sido averbada na matrícula do imóvel, é preciso proteger a boa-fé do terceiro adquirente, sob pena de ser ignorada a necessária proteção da confiança no comércio jurídico.[93].  Para os autores, a demonstração do conhecimento pelo terceiro é corolário da aplicação do princípio da boa-fé, cabendo ao credor o ônus da prova da fraude.

Não se nega que a boa-fé do terceiro adquirente deva ser protegida, mas cabe a ele adotar as cautelas impostas igualmente pelos ditames da boa-fé. Apesar de a confiança no comércio jurídico merecer tutela, os deveres de cautela exigíveis do terceiro também não podem ser ignorados, sobretudo diante de uma cultura que já se estabeleceu de consulta às certidões do imóvel e a facilidade de acesso a informações por meio da internet[94].

A interpretação sistemática do art. 792 do Código de Processo Civil de 2015 concilia as normas relativas à teoria geral da prova com aquelas concernentes à fraude a execução[95]. Com base nessa interpretação, atribui-se ao art. 792 sentido de que, na alienação de imóveis em fraude de execução, recai sobre o terceiro adquirente o ônus da prova da sua boa-fé, do qual poderá se desincumbir comprovando a adoção das cautelas mínimas à negociação imobiliária[96]. Trata-se de entendimento que observa a proteção da boa-fé do terceiro adquirente e o direito fundamental à tutela executiva.


CONCLUSÃO

A fraude a execução não compromete apenas a esfera de interesses particulares do credor, mas atenta contra o Estado, interferindo diretamente na efetividade da prestação jurisdicional. O tema assume importância institucional de preservação da eficácia e autoridade das decisões do Poder Judiciário[97].

Para ser atingido pelo reconhecimento da fraude à execução, o terceiro adquirente deve ter – ou, pelas circunstâncias, poderia ter – ciência da propositura da demanda contra o alienante e do seu estado de insolvência. Há presunção absoluta desse conhecimento quando a demanda ou a penhora são averbadas nas repartições registrais competentes. Caso não haja averbação ou registro, a interpretação proposta é de que caberá ao terceiro adquirente o ônus de comprovar sua boa-fé, apresentando as certidões do local do bem e do domicílio do devedor para demonstrar que adotou as cautelas necessárias à aquisição do imóvel. 

A opção do Código de Processo Civil de 2015, quando interpretado sistematicamente com as normas acerca da teoria geral da prova e da boa-fé objetiva, é pela proteção do direito fundamental à tutela executiva e atribuição do ônus da prova ao terceiro adquirente, quem pode – sem muita dificuldade - dele se desincumbir.

A previsão no Código de Processo Civil de 2015 da averbação de informações no registro de imóveis visou apenas auxiliar o exequente na empreitada de garantir que o bem não seja alienado em prejuízo a execução. O registro não é uma condição imprescindível à configuração da fraude. Trata-se de mecanismo criado para facilitar ao credor a comprovação da má-fé do terceiro adquirente, se valendo de presunção absoluta de conhecimento da existência da litispendência.

A própria exposição de motivos do projeto de lei que resultou no Código de Processo Civil ratifica a conclusão alcançada: um sistema processual civil que não proporcione à sociedade o reconhecimento e a realização dos direitos não se harmoniza com as garantias constitucionais de um Estado Democrático de Direito[98]. É para a realização do direito e da autoridade das decisões do Poder Judiciário que este artigo volta o seu olhar.


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Sobre a autora
Gabriela Macedo Ferreira

Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia, especialista em Direito Processual Civil pelo Jus Podivm, Juíza Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Gabriela Macedo. Fraude à execução e os negócios jurídicos imobiliários: a prova da boa-fé do terceiro adquirente no Código de Processo Civil de 2015. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5180, 6 set. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60189. Acesso em: 22 nov. 2024.

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