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Feminicídio: uma análise crítica da nova qualificadora introduzida pela Lei 13.104/2015

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Não há equidade na valoração do gênero para fins penais desprovida do exame de real vulnerabilidade da vítima.

INTRODUÇÃO   

No sistema de justiça criminal, compreende-se a criminologia feminista a partir de três grandes momentos históricos e epistemológicos[5]. O primeiro quando, nos idos de 1960, consolidou-se uma transição da criminologia do crime e do criminoso, isto é, do positivismo para o sistema de justiça criminal e da violência institucional (de corte construtivista interacionista). O segundo, deu-se com a passagem, na década de 70, pelas criminologias Radical, Nova e Crítica no âmbito das quais o sistema de justiça criminal passa a receber uma interpretação macrossociológica no marco das categorias capitalismo e classes sociais (Criminologia da Violência Estrutural). O último ocorreu a partir dos anos 80, quando o desenvolvimento feminista da criminologia crítica marcou a passagem para a criminologia de correspondente nomenclatura, compreendendo-se o sistema de justiça penal também nos termos das categorias do gênero e do patriarcado, passando-se a indagar se estaria correto o tratamento dispensado à mulher até então, momento em que uma vitimologia crítica assume o lugar central[6].

Nesse passo, a criação de um delito de feminicídio demonstra um claro movimento do Direito Penal em razão do gênero, tal como ocorreu em 2006 com a promulgação da Lei 11.340 (Lei Maria da Penha). Para se compreender esse movimento, é importante levar em conta o pensamento de Michel Foucault, para quem a sexualidade é o resultado de um complexo processo de construção social[7] e não uma mera constatação ontológica. Isso leva à compreensão dos séculos de opressão à mulher e à sua inferiorização em relação ao sexo masculino do ponto de vista axiológico. No entanto, um setor doutrinário destaca que, apesar de a Lei Maria da Penha representar importante avanço em matéria de proteção das mulheres contra a violência doméstica, acabou revelando uma distorção, qual seja, a disciplina focada nas lesões corporais, não abarcando necessariamente a morte decorrente deste mesmo tipo de violência[8].

Feminicídio é termo que, inicialmente, não se ostenta como o mais adequado para a tutela referida (isto é, a morte de mulheres em razão da sua condição do sexo ou do gênero feminino, a depender a redação que dê o legislador). Isso porque, assim nominado, o fenômeno remete a uma subcategoria do genocídio, isto é, o homicídio em que há intuito de destruição do gênero feminino. Assim, o nome que melhor designaria este instituto seria, para alguns, femicídio[9], já que se trata de assassinatos produzidos em menor escala em relação ao genocídio, ainda que igualmente identificado como um crime de ódio, preconceito ou discriminação[10].

Destarte, em 9 de março de 2015, foi sancionada a Lei 13.104, que altera o Código Penal brasileiro para incluir o feminicídio entre as hipóteses de homicídio qualificado. A proposta de criminalização do feminicídio teve origem nos trabalhos da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) de Violência Doméstica contra a mulher, cujos trabalhos se encerraram em julho de 2013, mas que por mais de um ano realizou audiências públicas, ouviu autoridades, especialistas e representantes dos movimentos feministas, bem como conheceu os serviços públicos que compõem a rede de atendimento a mulheres em situação de violência em 15 Estados do País[11], dando origem ao Projeto de Lei do Senado Federal nº 292/2013[12].

Isso significa que o texto legislativo aprovado foi resultado de um intenso processo de discussão e negociação envolvendo diversos grupos institucionais e não institucionais[13]. No entanto, a redação final sofreu duas alterações que terminaram comprometendo a interpretação do texto: a primeira delas diz respeito à supressão da expressão “gênero” e sua substituição por “condição do sexo feminino”. A segunda alteração refere-se à inclusão de três causas de aumento de pena através do novel §7º do art. 121, que não constavam do projeto inicial.

Não resta dúvida de que o feminicídio constitui uma das formas de violência de gênero exercida contra mulheres, a qual, nos termos da Convenção do Conselho da Europa para Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, cuja assinatura foi aberta em Istambul em 11 de maio de 2011, “abrange toda violência dirigida contra a mulher por ser mulher ou que afeta desproporcionalmente as mulheres”[14]. Dados do Mapa da Violência mostram um aumento desproporcional entre as mortes violentas de homens e mulheres no Brasil. A taxa de homicídios de mulheres cresceu 17,2% na última década, o dobro da elevação da taxa de homicídio masculinos, que no mesmo período cresceu 8,1%[15]. Há indicativos de que cerca de 5.000 mulheres são vítimas de homicídio por ano no Brasil, sendo que por volta de 40% são mortas em ambiente doméstico ou familiar, demonstrando que, enquanto os homens são mortos fora de casa, as mulheres são assassinadas no interior de seus lares[16]. Por outro lado, dados da Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República reportam que, no ano de 2014, dos 52.957 relatos de violência recebidos mediante comunicações ao Disque 180 no Brasil, 27.369 são de mulheres agredidas fisicamente, isto é, com tapas, mordidas, pontapés e queimaduras, entre outros[17].

Mas pouco se conhece sobre as causas do aumento dessa criminalidade, se se trata de mulheres vítimas da chamada criminalidade “comum”, ou se o fato de serem mulheres foi determinante para este trágico desfecho de suas vidas[18]. Em geral, constata-se que se trata de homicídios perpetrados por autores conhecidos pelas vítimas, geralmente maridos, companheiros, namorados, pais ou irmãos, e que ocorrem à medida que estas mulheres conquistam mais autonomia na sociedade, buscando romper seu papel de submissão ou outras características tradicionais que o patriarcalismo lhes impõe.

Daí porque muitos autores advogam pela criação de um instituto ou categoria jurídica – o feminicídio – que traga visibilidade a esse fenômeno e provoque a ação de políticas públicas adequadas para enfrentá-lo[19]. A desigualdade atuaria, portanto, como um instrumento de produção da igualdade, pois a igualdade enseja o tratamento desigual para situações desiguais[20].

Constata-se ainda que o próprio sistema de justiça criminal incrementa a desigualdade entre homens e mulheres no Brasil. A sistemática dos julgamentos nos Tribunais do Júri é pautada pelo machismo, sendo recorrentes argumentos que reforçam a naturalização da violência e a culpabilização da mulher em muitos casos de homicídio em que elas são vítimas: destarte, “constroem-se nos processos ora a imagem da boa mãe e esposa, que foi vítima da ação de um homem que é patologizado, agressivo, e, não raro,  faz uso abusivo de álcool e drogas, ora a imagem da mulher indócil, cujo comportamento (em muitos casos a manifestação da vontade de terminar o relacionamento) provocou a ação do bom marido e trabalhador”[21].

Propor-se-á assim, uma reflexão objetiva sobre uma das principais discussões doutrinárias da atualidade. Para tanto, desenvolveu-se breve pesquisa, orientada pelos métodos lógico-dedutivo e indutivo-argumentativo, através de análises fundamentais e qualitativas, tendo como recursos bibliografias, literaturas e documentos.


1 ASPECTOS DOGMÁTICOS DA LEI 13.104/2015

 Ao iniciarmos a análise da Parte Especial do Código Penal brasileiro, imprescindível se faz destacar a preocupação do legislador ordinário com a exclusiva proteção dos bens jurídicos mais importantes, uma vez que o delito constitui lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico[22]. Bens estes considerados pressupostos imprescindíveis para a existência em comum[23], são os bens vitais da comunidade ou do indivíduo, protegidos jurídico-penalmente em razão de sua relevante significação social. Sendo assim, a missão do Direito Penal vem a ser a tutela de bens jurídicos mediante a proteção dos valores ético-sociais da ação mais elementares[24], e que se caracterizam numa série de situações valiosas, como por exemplo, a vida, a integridade física, a honra, a liberdade de atuação, a propriedade. Para tanto, o Estado, valendo-se da ingerência penal, cria normas que proíbem determinadas condutas, tidas como lesivas ou perigosas aos bens jurídico-penais[25].

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A Parte Especial do Código Penal foi dividida em onze Títulos, que traduzem os bens objetos dessa proteção, títulos estes que por sua vez foram subdivididos em capítulos, individualizando, ainda mais, os valores tutelados. Neste passo, o Título I elenca crimes contra a pessoa. Verifica-se que tem o bem jurídico uma função sistemática ou sistematizadora, da qual valeu-se o legislador ao utilizá-lo como elemento classificatório decisivo na formação dos grupos de tipos da parte especial do Código Penal, uma vez que os próprios títulos e capítulos da parte especial são estruturados com lastro no critério do bem jurídico, na medida em que este situa-se no ponto central dos diferentes tipos penais da parte especial do Código, consistindo em verdadeira exigência para o legislador orientar sua atividade na proteção de bens[26]. O bem jurídico é “o orifício da agulha pelo qual têm que passar os valores da ação[27]”.

Dessa forma, temos que a pessoa humana é um bem jurídico categorial do qual decorrem outros bens específicos descritos nos respectivos capítulos do Título I, tais como a vida, a integridade corporal, a saúde, a honra, e a liberdade individual e pessoal[28].

Inaugurando a Parte Especial do Código Penal, com o nomen iuris ho homicídio, o delito tem origem etimológica no termo latim homicidium, e consiste na supressão da vida humana alheia por outrem[29]. Podendo ser cometido nas modalidades dolosa-simples (caput), dolosa-qualificada (§2.º) e culposa (§3.º).

Como é por todos conhecido, o bem jurídico tutelado pelo art. 121, do Código Penal é vida humana, indubitavelmente o maior valor ético-social juridicamente assegurado, que pode ser compreendido sob duas óticas: uma física-biológica e outra valorativa. Para a primeira, de ordem naturalista, aferir-se-á a presença de sinais vitais através de critérios de ordem científico-naturalísticos, de cunho biológico e fisiológico. De acordo com esse entendimento, ressoa inconcebível qualquer manifestação favorável à descriminalização do aborto (arts. 124 a 128, do Código Penal) ou do induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio (art. 122, do Código Penal), bem com a legalização de algumas das formas de eutanásia (art. 121, §1.º, do Código Penal)[30].. Por isso, faz-se imprescindível uma compreensão da vida humana para além de critérios puramente naturalistas, adicionando-se a estes ideais valorativos, axiológicos, matizados pelas concepções filosóficas personalistas, nos ideais sociais e normativos de dignificação da pessoa humana[31]. E foi justamente sob esse prisma que o legislador constituinte enunciou ao inaugurar o Título II da Lei Maior quando dispôs que todos são iguais perante a lei, garantindo-se a inviolabilidade do direito à vida[32],

Autor do delito de homicídio pode ser qualquer pessoa. Fala-se, portanto, em crime comum, já que pode ser cometido por qualquer pessoa, não se exigindo qualquer qualificação especial do agente. O sujeito passivo, por sua vez, é o ser humano com vida. Fala-se em vida extrauterina, podendo ser cometido o delito de homicídio somente após o nascimento com vida. Antes disso, falar-se-á em aborto (arts. 124 a 128, CP), pois tem-se ainda, vida intrauterina. De outro lado, é possível que se realize o tipo penal de homicídio enquanto a pessoa estiver viva, ou seja, até a sua morte, que ocorre, segundo o art. 3.º, da Lei n.º 9.434/1997[33], com a morte encefálica, ou seja, com a cessação irreversível das atividades cerebrais. Se este é o limite, não há como falar-se em homicídio de pessoa morta, restando configurado crime impossível pela absoluta impropriedade do objeto material (art. 17, CP)[34].

A conduta típica consiste em matar alguém, tendo como núcleo da realização delitiva o verbo matar, que refere-se à conduta de dar cabo à vida alheia, de suprimir o existir de outrem, pondo fim à existência da pessoa humana. Fala-se ainda, em alguém, como alvo da figura delituosa, fazendo-se referência somente à pessoa. Verifica-se grande amplitude de possibilidades de realização típica, por preferir não descrever, o legislador, todos meios que poderia o agente valer-se para executar o crime, podendo fazê-lo por meios diretos (disparos de arma de fogo, esganadura) ou indiretos (ataque de animal açulado pelo dono), materiais (meios mecânicos, químicos) ou morais (susto, medo, emoção violenta)[35].

O objeto material da figura delitiva é a pessoa contra a qual recai a conduta do agente, é o ser humano com vida, diferente do bem jurídico que é a própria vida. O elemento subjetivo constante do caput do art. 121, do CP, é o dolo (direto ou eventual) consubstanciado na vontade livre e consciente de se realizar os elementos objetivos do tipo penal, ou seja, de produzir a morte de alguém. Fala-se aqui em animus necandi, em vontade de matar outra pessoa.

A consumação do crime ocorre com o resultado morte, caso em que o sujeito ativo realiza plenamente a descrição típica. Fala-se em crime instantâneo e de efeitos permanentes. Ainda que outro seja o momento da morte, para fins de aplicação da lei penal, levar-se-á em conta o dia da conduta típica, nos termos do art. 4.º, do CP, por ter o legislador adotado a teoria da atividade. É perfeitamente possível a tentativa, que poderá ocorrer sempre que, após iniciados os atos executórios, o delito não se consumar por circunstâncias alheias à vontade do agente (art. 14, CP), não se alcançando o desejado resultado morte[36]. Por exemplo, quando efetuados disparos de armas de fogo, todavia sem lograr êxito em relação ao resultado morte. Havendo dolo de matar e resultado lesão corporal, falar-se-á em homicídio tentado e não no delito descrito no art. 129, CP.


2. HOMICÍDIO QUALIFICADO E FEMINICÍDIO

Tem-se como qualificado o homicídio quando a sua prática resulta de motivação indigna ou desproporcional (I e II), ou quando o agente vale-se de meios ou modos de execução que denotem maior reprovabilidade pelo legislador (III e IV), ou ainda, se perpetrado o crime com o escopo de alcançar outros fins especialmente reprováveis (V)[37], ou até mesmo, se praticado contra a mulher (VI) ou contra autoridades e agentes de autoridade das carreiras policiais lato sensu ou seus parentes (VII). Nesse passo, o § 2.º, do art. 121, do CP, prevê como qualificado o homicídio cometido:

Introduzida pela Lei 13.104, de 9 de março de 2015, a qualificadora do feminicídio diz respeito, segundo linguagem textual da lei, ao homicídio perpetrado contra mulher “por razões da condição do sexo feminino”. Busca Desta feita, busca o legislador, de algum modo, compensar a discriminação e a opressão à mulher, o que supostamente legitimaria o acionamento do Direito Penal para conferir direitos diferenciados de proteção ostensiva à mulher no cenário jurídico-penal[38].

Impõe esclarecer que a redação original do preceito previa o preconceito em razão do gênero feminino, o que certamente teria abarcado toda e qualquer vítima que manifestasse a condição feminina, incluídas aí as transexuais deste gênero[39]. No entanto, a alteração da redação para “sexo” feminino terminou por obstaculizar tal interpretação, possibilitando apenas que a qualificadora incida quando o sujeito passivo de fato seja biologicamente identificado como sendo do sexo feminino, acrescentando-se ainda a maior reprovabilidade do autor por ter cometido o delito “em razão da condição” do sexo feminino[40]. A doutrina majoritária lamenta este fato, destacando que “gêneros diversos e demais situações de vulnerabilidade permanecerão na luta pela proteção penal até que a história opressiva se demonstre de tamanha magnitude a reclamar atuação diferenciada pelo Direito Penal”[41].

Trata-se, ademais, de qualificadora que incide sobre a culpabilidade, não se comunicando aos coautores do injusto fato típico e ilícito. Somente o autor que aja comprovadamente imbuído desta motivação terá sua pena qualificada em razão do novo dispositivo. Isso espelha o caráter pessoal ou subjetivo da qualificadora, que não atua sobre a medida do injusto, já que não se trata aqui simples e objetivamente de um homicídio perpetrado contra uma mulher, pelo mero fato de sê-lo[42].

Diante das dúvidas que suscita a interpretação do novel inciso VI, explicita então o legislador, no recém-incluído §2º-A do art. 121, o que venham as ser as “razões da condição do sexo feminino”: em primeiro lugar, as situações de violência doméstica e familiar (inciso I) ou, alternativamente, o menosprezo ou discriminação à condição da mulher (inciso II). O inciso I utiliza expressões que são facilmente dedutíveis da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), que no combate à violência de gênero já salientava, em seu âmbito de aplicação (art. 5º), que esse tipo de violência poderia ter lugar tanto no contexto das relações domésticas, familiares ou íntimas de afeto. Assim, por relação doméstica deve-se entender aquela que se desenvolve em um espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas, e por relações familiares a que se dão em uma comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa.

Já o inciso II do §2º-A, ao referir-se ao “menosprezo” ou “discriminação” à condição de mulher refere-se diretamente ao preconceito contra o sexo feminino, a cujas razões históricas já se aludiu inicialmente, e que muitas vezes é de fato o motor das agressões e mortes perpetradas por maridos e companheiros dentro ou fora do seio familiar.

É bem provável que, ante as dificuldades interpretativas suscitadas, se enfraqueça o objetivo inicial de evitar as desclassificações de homicídio qualificado para homicídio simples, de modo que a polícia e o Ministério Público prefiram enquadrar o fato de imediato nas demais hipóteses de homicídio qualificado por entenderem mais difícil demonstrar as “razões do sexo feminino”[43].

Cumpre destacar que, de acordo com a mesma Lei 13.104/15, o feminicídio, como não poderia deixar de ser, é também crime hediondo, nos termos do recém alterado art. 1º, I, da Lei 8.072/90. No entanto, tal fato já era assim independentemente desta previsão, sendo o motivo de discriminação contra a mulher um homicídio qualificado por motivo torpe (art. 121, §2º, I), de modo que “não é apropriado dizer que ‘agora, matar uma mulher é crime hediondo’...”[44].

Desta feita, o legislador buscou, de alguma forma, compensar a discriminação e a opressão à mulher, o que supostamente legitimaria a intervenção penal para conferir direitos diferenciados de proteção ostensiva à mulher no cenário jurídico-penal[45].

A conduta homicida deve ser perpetrada contra mulher, cuja definição deve atender, a nosso sentir, ao critério jurídico, considerando-se mulher toda pessoa que possua documento de identificação pessoal (v.g. certidão de nascimento, documento de identidade) em que figure como sendo do sexo feminino. Exigindo-se, portanto, uma qualidade especial do sujeito passivo do crime, que é próprio, e seu alcance fica restrito em razão de tratar-se de norma penal incriminadora, que deve ser sempre interpretada sob o manto do princípio da legalidade[46].

 Não se admite aqui, a ampliação do conceito de mulher, tal como na Lei n.º 11.340/2006[47], onde estende-se o alcance da expressão com o fim de alcançar outras vítimas de violência, o que configuraria analogia in malam partem.

Ademais disso, a figura delitiva também requer a presença de um elemento normativo do tipo[48], pois exige que o homicídio seja cometido contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, elencando, no §2.º-A, do art. 121, do Código Penal, tais motivos. Assim, o diploma repressivo prevê que o móvel do feminicídio são as razões de condição de sexo feminino, que ocorrerão quando o crime envolver violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher[49].

O art. 5.º, da Lei n.º 11.343/2006 (Lei Maria da Penha) define violência doméstica contra a mulher como qualquer ação ou omissão baseada no gênero e que ocorra no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; ao passo que, por violência familiar tem-se àquela recorrente no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; ou ainda, em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Em relação ao feminicídio cometido por menosprezo ou discriminação à condição de mulher, tomar-se-á como menosprezo o sentimento de aversão, repulsa, repugnância, desprezo, ou desdém a pessoa do sexo feminino, ao passo que a discriminação refere-se a injustificada diferenciação no tratamento dado a mulher pelo simples fato de sê-la. Convém notar que o Brasil é signatário da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW, 1979), ratificada em 1984, que define, em seu art. 1.º,  discriminação contra a mulher como toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.

Assim sendo, ao perpetrar a ação homiciida contra a mulher no âmbito doméstico ou familiar, ou ainda, por menosprezo ou discriminação à sua condição de mulher, aonde quer que esteja, restará configurado, em tese, o feminicídio (v.g., marido que mata a esposa dentro de casa; o cônjuge que mata a mulher por ter pedido o divórcio). Não estando presente a elementar relativa ao gênero, não haverá o feminicídio, podendo, entretanto, restar configurada outra modalidade de homicídio qualificado (v.g., filho que mata a mãe por não lhe ter dado dinheiro para adquirir drogas configura, em tese, homicídio qualificado pelo motivo torpefútil, insculpido no art. 121, §2.º, II, do CP).

Insta salientar, por derradeiro, que a inovação legislativa advinda com a Lei n.º 13.104/2015, trouxe em seu bojo a possibilidade de aumento de pena de 1/3 até a metade (art. 121, §7.º, CP) para o feminicídio, quando praticado durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto; contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência; na presença de descendente ou de ascendente da vítima, causas de aumento estas, que serão analisadas mais adiante. Aumento este      

O aumento de pena de um terço até a metade no feminicídio que enseja possíveis críticas quanto à sua constitucionalidade. Para alguns, é justificável o aumento relativo à condição de gravidez ou período pós-parto, dada a maior reprovabilidade do injusto e à própria condição de maior vulnerabilidade biológica da mulher em tais momentos. Assim, destaca-se que a mulher gestante encontra-se sensível fisicamente em condição que denota maior fragilidade, seja por carregar em seu ventre outro corpo, seja porque padece com modificações hormonais significativas, que acaba por fazer abarcar no dispositivo mesmo as vítimas até três meses após o parto, utilizando-se o legislador do critério médico predominante para consideração do estado puerperal[50].

No entanto, advoga-se pela inutilidade do citado preceito por estimar-se que, matando o agente mulher grávida (que ele necessariamente deverá saber grávida, para evitar a responsabilidade penal objetiva), responderá o agressor em concurso formal imperfeito pelos crimes de homicídio e aborto sem o consentimento da gestante (art. 125, CP), o que poderia tornar o aumento de pena do feminicídio questionável por implicar eventual bis in idem[51].

O feminicídio na presença de descendente ou de ascendente da vítima tem aumentada sua pena com vistas a proteger os familiares das mulheres vítimas de homicídio que presenciam o crime. Quem considera o aumento razoável justifica que o novel dispositivo “demonstra mais uma vez a polissemia do conceito existente acerca dos vulneráveis, estendendo a compreensão de vulnerabilidade para alguns familiares das vítimas pelo fato de terem presenciado o crime de homicídio perpetrado em face de sua ascendente ou descendente”[52]. No entanto, como bem se atesta, tal trauma familiar é comum a homens e mulheres assassinados, de modo que “tais circunstâncias não poderiam se limitar ao feminicídio”[53]. Demais disso, o aumento considerável da pena nesses casos – de um terço até a metade – poderia ensejar um acréscimo de até dez anos de reclusão ao agressor pelo mero fato de um parente da vítima presenciar o feminicídio, de modo que enquanto a lesão ao bem jurídico primariamente tutelado – a vida da mulher – justificaria uma pena de cerca de 20 anos de reclusão, a ofensa a esse bem jurídico secundário pertencente aos ascendentes e descendentes (qual seria ele?) poderia acarretar até dez anos a mais de prisão ao autor.

Acertadas críticas, ademais, são feitas no sentido de que estes aumentos comportam circunstâncias que podem perfeitamente ser consideradas inerentes ao contexto da violência doméstica e familiar, além do fato de que as causas de aumento tradicionalmente previstas para o homicídio, em relação à idade da vítima (art. 121, §4º), terem um patamar fixo de um terço, enquanto, no tipo penal em apreço, poderão alcançar até a metade – uma incoerência que revela a falta de visão sistêmica do legislador[54]. Nesse aspecto, mesmo os defensores da criação da figura do feminicídio atestam que o dispositivo revela-se inconstitucional por violação ao princípio da igualdade, pois a mesma reprovação deveria existir sendo o homem vítima[55].

Sobre os autores
Gerson Faustino Rosa

Doutor em Direito. Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo-SP. Mestre em Ciências Jurídicas. Centro Universitário de Maringá-PR. Especialista em Ciências Penais. Universidade Estadual de Maringá-PR. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Gama Filho-RJ. Graduado em Direito. Centro Universitário Toledo de Presidente Prudente-SP. Professor de Direito Penal e Coordenador dos cursos da área jurídico-penal da Uniasselvi. Professor de Direito Penal nos cursos de pós-graduação da Universidade Estadual de Maringá, da Escola Superior da Advocacia, da Escola Superior da Polícia Civil e da Escola Superior em Direitos Humanos do Estado do Paraná, da Unoeste, do Cesumar, da Univel-FGV, da Fadisp, da Unipar, do Integrado e da Faculdade Maringá. Professor de Direito Penal nos cursos de graduação da Universidade Estadual de Maringá-PR (2014-2019). Professor de Direito Penal e coordenador da pós-graduação em Ciências Penais da Universidade do Oeste Paulista (2016-2019). Professor de Direito Penal na Uniesp de Presidente Prudente-SP (2013-2016). Tem experiência na área do Direito, com ênfase em Direito Penal e Segurança Pública, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito Penal e Direito Penal Constitucional.

Gisele Mendes de Carvalho

Pós-doutora e Doutora em Direito pela Universidade de Zaragoza (Espanha). Mestre em Direito Penal pela Universidade Estadual de Maringá (PR). Professora Adjunta de Direito Penal na Universidade Estadual de Maringá (PR) e no Mestrado do CESUMAR - Maringá (PR).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSA, Gerson Faustino; CARVALHO, Gisele Mendes. Feminicídio: uma análise crítica da nova qualificadora introduzida pela Lei 13.104/2015. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5325, 29 jan. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60265. Acesso em: 26 dez. 2024.

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