4. A FINALIDADE SOCIAL E JURÍDICA DA USUCAPIÃO NO MUNDO MODERNO
Diante do que foi exposto, percebe-se que a usucapião possui, no mundo moderno, uma importância inegável no que tange à aquisição de direitos fundamentais, como o direito à propriedade, à moradia e ao mínimo existencial. Ademais, a sua importância jurídica também é reconhecida pelo Código Civil de 2002 e pela Constituição Federal de 1988, uma vez que se veda a subutilização e o uso ilícito da propriedade, estimulando, pois, a sua função social.
Portanto, será demonstrado a seguir alguns desdobramentos da finalidade social e jurídica do instituto da usucapião, destacando-se os assuntos que possuem maior relevância na sociedade e no próprio ordenamento jurídico brasileiro.
4.1 A finalidade social da usucapião
4.1.1 O direito à propriedade
O conceito de propriedade não possui uma definição precisa no Código Civil, uma vez que o legislador se limitou apenas a descrever os poderes do proprietário no artigo 1.228 do referido Código, quais sejam, o uso, o gozo e a disposição da coisa. Dessa forma, embora não esteja definida com exatidão, a propriedade é um instituto muito importante, uma vez que garante acesso a outros direitos inerentes à natureza humana.
Carlos Roberto Gonçalves (2013, p. 487) define, pois, esse instituto como sendo “o poder jurídico atribuído a uma pessoa de usar, gozar e dispor de um bem, corpóreo ou incorpóreo, em sua plenitude e dentro dos limites estabelecidos na lei, bem como de reivindica-lo de quem injustamente o detenha”. Assim, o renomado autor destaca que somente é possível exercer a propriedade dentro dos limites legais, não podendo, pois, ser sobrelevado em detrimento de outros direitos fundamentais.
Desse modo, a usucapião assegura o acesso à propriedade àqueles que preencham os requisitos legais, desde que respeitem a sua função social. Nesse sentido, a Constituição atual privilegia a coletividade ao invés dos interesses individuais, colocando, pois, o interesse público em uma situação de superioridade perante o interesse particular. Portanto, a usucapião exerce um importante papel social, pois retira a propriedade daquele que não está exercendo a sua função social e a transmite ao possuidor de fato, que destina o bem para uma finalidade específica, seja para sua própria moradia, seja para o sustento seu ou de sua família.
4.1.2 O direito à moradia, à privacidade e à intimidade
O direito à moradia está presente no caput do artigo 6º da Constituição, que elenca diversos outros direitos sociais, tais como a saúde e a educação, dentre outros. O Código Civil também protege esse direito por intermédio de diversos instrumentos jurídicos, como o bem de família e a usucapião.
Esta última, conforme foi demonstrado ao longo desse artigo, possui uma função social inegável, especialmente no que tange à aquisição de bens imóveis, uma vez que garante ao possuidor a propriedade do imóvel, permitindo, pois, que ele o constitua como a sua moradia habitual, caso assim deseje.
Dessa forma, é a moradia que garante ao indivíduo o seu direito à intimidade e à privacidade, conforme a previsão expressa do artigo 5º, incisos X e XI da Constituição. Assim, sem ela, o indivíduo fica exposto a situações degradantes e subumanas, não podendo, portanto, exercer a sua vida com dignidade.
Desse modo, o instituto da usucapião procura, antes de tudo, garantir ao possuidor as condições necessárias para que consiga adquirir a propriedade do imóvel que possui, a fim de atender às suas necessidades básicas como pessoa humana e de ter acesso a direitos fundamentais, como o direito à moradia, à privacidade e à intimidade.
4.1.3 A proteção às minorias e aos economicamente desfavorecidos
Além das funções sociais citadas, a usucapião também é utilizada para proteger os direitos pertencentes às minorias e aos economicamente desfavorecidos, que atualmente estão amparados em leis específicas e na própria Constituição Federal.
Na primeira situação, é possível citar a usucapião especial rural, que assegura a propriedade ao possuidor de terra, localizada em zona rural, não superior a cinquenta hectares, desde que a detenha por ao menos cinco anos ininterruptos e que a torne produtiva para o trabalho ou para o sustento seu ou de sua família, com o intuito de nela exercer a sua moradia habitual. Dessa forma, protege-se o trabalhador rural, já que assegura a propriedade do imóvel àquele que exerce a sua função social, evitando-se, pois, o êxodo rural.
Além disso, é possível citar, também, a usucapião indígena, que assegura ao índio, integrado ou não, a propriedade de trecho de terra inferior a cinquenta hectares, desde que não seja terras pertencentes à União ou terras de propriedade coletiva de grupo tribal. Desse modo, protege-se o direito dos silvícolas face às ameaças existentes no meio rural, garantindo, assim, o acesso à propriedade e a outros direitos fundamentais.
Já no segundo caso, destaca-se a usucapião especial urbana coletiva, prevista no artigo 10º do Estatuto da Cidade. Essa espécie de usucapião busca regularizar as favelas ou cortiços, comunidades aglomeradas e desordenadas, nas quais não se sabe, de fato, os limites físicos da propriedade, sendo impossível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor. Portanto, o legislador procurou estabelecer uma nova hipótese de usucapião urbana, a fim de facilitar a aquisição da propriedade àqueles que se encontram em situação de pobreza e que não possuem os recursos necessários para obter uma moradia individual e decente.
Portanto, a usucapião protege, também, os direitos pertencentes às minorias e aos economicamente desfavorecidos, estabelecendo prazos de aquisição diferenciados e condições especiais para cada caso, a fim de favorecer uma parcela da população brasileira, muitas vezes marginalizada e esquecida pelo Estado. Assim, garante-se o acesso à propriedade àqueles que preencherem os requisitos presentes em cada modalidade especial de usucapião, facilitando, dessa forma, o exercício da função social da propriedade.
4.2 A finalidade jurídica da usucapião
4.2.1 A garantia de eficácia da política urbana nos munícipios
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 182, descreve a chamada política de desenvolvimento urbano, que deve ser executada pelo poder público municipal conforme as diretrizes gerais fixadas em lei, tendo como objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. Assim, a usucapião, como meio de aquisição da propriedade, exerce um papel importante no que tange à política urbana dos munícipios, uma vez que garante a regularização de situações precárias, nas quais é difícil delimitar, com precisão, a extensão da propriedade de cada possuidor, como ocorre no caso da usucapião especial urbana de caráter coletivo, prevista no Estatuto da Cidade.
Dessa forma, a usucapião age como um instrumento de vedação à subutilização da propriedade, garantindo que esta cumpra a sua função social. Portanto, a Constituição procura assegurar o cumprimento da política urbana dos municípios, a fim de obter o desenvolvimento das funções sociais da cidade e de garantir uma vida digna aos seus habitantes, seja através de instrumentos administrativos, como no caso da desapropriação, seja através de instrumentos legais, como no caso da usucapião, por exemplo.
4.2.2 O cumprimento da função social da propriedade
A função social da propriedade é um princípio jurídico que ganhou força a partir da Constituição Federal de 1988 e do Código Civil de 2002, estabelecendo, pois, uma série de obrigações ao proprietário de um bem, que deve utilizá-lo dentro dos limites impostos pela lei e pela Constituição, a fim de não prejudicar o interesse da coletividade. Assim, como exemplo, é possível citar o artigo 5º, inciso XXIII, e o artigo 182, parágrafo 2°, da Constituição Federal, e o artigo 1.228, parágrafo 1º, do Código Civil, que define a função social da propriedade.
Nesse sentido, a usucapião não serve apenas para garantir o acesso à propriedade; serve, também, para assegurar o cumprimento da sua função social, uma vez que se privilegia o possuidor, que exerce uma destinação específica para o imóvel ocupado, em detrimento ao proprietário de direito, que subutiliza ou mesmo abandona o seu imóvel. Logo, o Código Civil e a Constituição Federal procuram, por meio da usucapião, transferir a propriedade do imóvel para aquele que possa exercer a sua função social, desde que sejam respeitados os requisitos e os prazos especiais estabelecidos na lei e na própria Constituição.
4.2.3 A vedação à subutilização e ao uso ilícito da propriedade
Por fim, cumpre ressaltar que a usucapião estabelece uma proibição implícita à subutilização e ao uso ilícito da propriedade, uma vez que o ordenamento jurídico privilegia a sua função social em prol dos interesses da coletividade. Dessa forma, o mero fato de deter a posse de um imóvel por um tempo prolongado não garante o acesso à propriedade, uma vez que se exige, em certos casos, que o possuidor destine uma finalidade específica ao imóvel, seja para sua moradia, seja para obter o sustento seu ou de sua família, a fim de cumprir a sua função social.
Portanto, caso o possuidor esteja subutilizando a propriedade, ou a utilizando, mas para fins ilícitos, não terá direito à usucapião, pois esta só poderá ser concedida àquele que, de fato, esteja cumprindo a função social da propriedade. Assim, o possuidor deve respeitar tanto os requisitos legais e constitucionais, como as exigências sociais impostas pela ordem jurídica, a fim de garantir o acesso à propriedade, sem, contudo, prejudicar os interesses pertencentes à coletividade.
5 CONCLUSÃO
A usucapião é um instituto de suma importância para a sociedade, compreendendo questões que vão além do mero direito à propriedade, como o direito à moradia, à privacidade, à intimidade, que, em conjunto, asseguram o direito a uma vida digna para aqueles que vivem em situações precárias, sem acesso a um mínimo existencial. Ademais, por meio da usucapião, garante-se a proteção às minorias e aos economicamente desfavorecidos, além de servir como meio de implementação das políticas urbanas nos municípios brasileiros, valorizando, pois, a função social da propriedade.
Nas hipóteses mais abrangentes de usucapião, isto é, na usucapião ordinária e extraordinária, procura-se apenas garantir a propriedade àqueles que preencham os requisitos legais, previstos ao longo dos artigos 1.238 a 1.244 do Código Civil, não importando, pois, a situação social ou econômica em que se encontra o possuidor do imóvel.
Em sentido contrário, nas hipóteses de usucapião especial, seja ela rural, seja ela urbana, procura-se analisar as circunstâncias em que se encontra o possuidor, havendo, pois, uma finalidade específica em cada hipótese. A usucapião rural tenta evitar o chamado êxodo rural, favorecendo aqueles que trabalham no campo e que tornam a área do terreno produtiva para o seu trabalho ou para o sustento de sua família. Já a usucapião urbana busca, por sua vez, legalizar a situação precária em que vivem milhares de pessoas, auxiliando aqueles que não possuem os meios necessários para adquirir o seu próprio imóvel, favorecendo, portanto, a política urbana dos municípios brasileiros e, consequentemente, a função social da propriedade.
Por fim, a usucapião protege as minorias que, muitas vezes, não possuem o devido amparo do Estado e da própria sociedade. Assim, tentando reparar os danos causados por essa omissão, o legislador criou três outras hipóteses de usucapião, como a indígena, a familiar e a imobiliária administrativa, sendo esta última revogada recentemente pela Medida Provisória nº 759, não sendo, pois, mais aplicada na prática.
Embora seja inegável o avanço legal dessas hipóteses de usucapião, ainda há muito a se fazer para que se possa implementar, de fato, os direitos dessas minorias, na realidade atual em que vive boa parte da população brasileira.
Assim, a usucapião busca assegurar não só o acesso à propriedade, mas também o acesso a outros direitos fundamentais, a fim de garantir uma vida digna àqueles que vivem em situações precárias, tendo como princípio norteador a função social da propriedade. Portanto, resta saber se esse instituto civil será capaz de cumprir, na prática, a sua finalidade social e jurídica em face dos novos desafios existentes no mundo moderno.