RESUMO: A presente dissertação visa a analisar o instituto da usucapião e a sua finalidade social e jurídica no mundo moderno, destacando-se, principalmente, os seus elementos e as suas características à luz do Código Civil de 2002 e da Constituição Federal de 1988. Além disso, destacam-se as principais jurisprudências e teses doutrinárias sobre o assunto, a fim de analisar corretamente esse importante instituto civil.
Palavras-chave: Usucapião, Código Civil de 2002, Constituição Federal de 1988.
1 INTRODUÇÃO
A usucapião é um instituto jurídico clássico, presente desde o Império Romano até os dias atuais. No Corpus Iuris Civilis, a palavra “usucapião” aparece ligada às palavras capio ou capionis, que significam “tomada”, “ocupação” ou “aquisição”, sendo, pois, essas palavras antecedidas do termo usu, formando, portanto, a palavra usucapio, cujo significado perdura até hoje como sendo a aquisição da propriedade através da posse.
A Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que instituiu o Código Civil, distingue a usucapião em duas grandes vertentes: a de bens imóveis e a de bens móveis. Esta última, embora tenha sido reconhecida expressamente pelo legislador, não possui tanta importância e utilidade quanto a primeira, haja vista que os bens imóveis são, em regra, economicamente mais valiosos do que os bens móveis, além de serem essenciais no que tange à aquisição de outros direitos, como o direito à moradia, por exemplo.
Assim, o Código Civil destina, dos artigos 1.238 até o 1.244, uma seção específica apenas para tratar sobre a usucapião de bens imóveis. Além disso, devido sua importância, esse instituto também está previsto na própria Constituição Federal, em seu artigo 183, que dispõe sobre a usucapião urbana em caráter especial, e no artigo 191, que retrata a usucapião rural. Ademais, há outras espécies de usucapião, tais como a usucapião familiar, a indígena e a imobiliária administrativa (atualmente revogada), que serão detalhadas ao longo deste artigo.
Dessa forma, a usucapião é um instituto importante no ordenamento jurídico atual e na própria sociedade, uma vez que garante o direito à propriedade para aqueles que possuem os requisitos legais, assegurando, pois, a função social da propriedade. Entretanto, para que se possa compreender a finalidade social e jurídica da usucapião, é necessário, primeiramente, definir os conceitos e as características essenciais desse instituto, bem como analisar as mais diversas classificações existentes na doutrina brasileira.
2 CONCEITO DE USUCAPIÃO
A usucapião, em uma definição simples, é um instituto civil criado com o objetivo de assegurar a propriedade para aqueles que possuem a posse de um bem, seja ele móvel ou imóvel, devido a um decurso de tempo, desde que sejam atendidos os requisitos previstos na legislação. Conforme a precisa definição de Caio Mário da Silva Pereira, a usucapião é “[...] a aquisição da propriedade ou outro direito real pelo decurso do tempo estabelecido e com a observância dos requisitos instituídos em lei” (PEREIRA, 2004, v. 4, p. 138).
De fato, esse é o mesmo entendimento de Benedito Silvério Ribeiro, que reafirma a definição clássica de usucapião:
Desse modo, a usucapião constitui uma situação de aquisição do domínio, ou mesmo de outro direito real (caso do usufruto ou da servidão), pela posse prolongada, permitindo a lei que uma determinada situação de fato alongada por certo intervalo de tempo se transforme em uma situação jurídica: a aquisição originária da propriedade. (RIBEIRO, Benedito Silvério, 2006, p. 169 - 172).
Logo, a usucapião só poderá ser exercida se a posse for prolongada no tempo e se o possuidor preencher os requisitos necessários que estão estabelecidos no Código Civil atual. Assim, o legislador presume que, se o proprietário original não tem interesse em reaver o bem do possuidor dado um longo período de tempo, ele teria renunciado, ainda que tacitamente, a esse direito, consolidando, pois, uma situação jurídica, no caso, a de usucapião.
É o que afirma Cunha Gonçalves:
[...] a propriedade, embora seja perpétua, não pode conservar este caráter senão enquanto o proprietário manifestar a sua intenção de manter o seu domínio, exercendo uma permanente atividade sobre a coisa possuída; a sua inação perante a usurpação feita por outrem, durante 10, 20 ou 30 anos, constitui uma aparente e tácita renúncia ao seu direito. De outro lado, à sociedade interessa muito que as terras sejam cultivadas, que as casas sejam habitadas, que os móveis sejam utilizados; mas um indivíduo que, durante largos anos, exerceu esses direitos numa coisa alheia, pelo seu dono deixada ao abandono, é também digno de proteção. (CUNHA GONÇALVES, Luiz da, 1952, p. 207 – 208).
Dessa forma, a usucapião seria uma prescrição aquisitiva, haja vista que o bem em questão seria adquirido pelo decorrer do tempo, sendo, pois, um modo originário de aquisição da propriedade. Para Fábio Ulhoa, a prescrição aquisitiva possui uma natureza parecida com a prescrição extintiva, sendo que:
Na usucapião, o possuidor adquire o direito de propriedade sobre a coisa possuída, enquanto o seu antigo titular o perde. O objeto da prescrição, contudo, varia segundo seja extintiva ou aquisitiva: naquela, extingue-se a pretensão do sujeito prejudicado pelo passar do tempo; nesta última, o sujeito beneficiado pelo transcurso do tempo adquire o direito de propriedade. (COELHO, Fábio Ulhoa, 2012, p. 204 - 205).
Por fim, cumpre destacar que há três elementos comuns a todas as hipóteses legais de usucapião, quais sejam, a continuidade, inexistência de oposição e a intenção de se tornar dono por parte do possuidor. São elementos essenciais que, aliados aos requisitos próprios de cada espécie, caracterizam a posse que dá ensejo à aquisição do imóvel por usucapião.
O primeiro requisito, a continuidade, exige que a posse seja ininterrupta, sem que haja nenhum intervalo temporal que descaracterize a posse. Contudo, o tempo necessário para que ocorra o instituto da usucapião não é, necessariamente, igual ao da posse do adquirente, uma vez que se permite a chamada acessio possessionis (ou acessio temporis), isto é, a soma de tempos de posses sucessivas, desde que sejam revestidas das mesmas características, de acordo com o artigo 1.243 do Código Civil.
O segundo requisito, a inexistência de oposição, possui como objetivo preservar o interesse daquele que, legitimamente, possui a propriedade do bem em questão. Se em algum momento houver a contestação dessa posse pelo proprietário legítimo, perde-se a mansidão e o caráter pacífico da posse. Conforme preleciona Fábio Ulhoa:
A posse contestada não dá ensejo a usucapião. A origem da oposição é irrelevante — proveniente do proprietário ou de terceiros, perde o possuidor o direito de usucapir o imóvel, se sua posse é objeto de contestação. Assim, se o possuidor tem ou teve de defender sua posse, diretamente (autotutela) ou por meio judicial (interditos possessórios), de esbulhos ou turbações praticadas contra ela, ou mesmo se o proprietário do imóvel a reivindica, não poderá adquirir-lhe a propriedade por usucapião. (COELHO, Fábio Ulhoa, 2012, p. 197).
Por último, o terceiro requisito é a intenção de se tornar dono (animus domini), que está diretamente ligado ao conceito de posse de Savigny. Somente aquele que possui essa intenção é que poderá adquirir o bem por usucapião. É por isso que atos contratuais, como a locação, o comodato e o depósito, ou de mera permissão não ensejam usucapião, uma vez que o possuidor não possui esse elemento subjetivo essencial. Assim, se o sujeito não possuir essa intenção, ele não terá direito à usucapião, sendo, portanto, apenas um mero possuidor do bem em questão.
Nesse sentido, foi o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que negou a existência de usucapião, pois não havia a presença de animus domini por parte do possuidor. A ementa do acórdão é transcrita a seguir:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. AUSÊNCIA DE ANIMUS DOMINI. Para adquirir-se um imóvel por usucapião não basta a fluência, apenas, do prazo estabelecido em lei. É necessário que a posse sobre o bem usucapiendo seja exercida com o ânimo de usucapir e de modo contínuo, manso e pacífico. Caso em apreço que a posse decorreu de atos de mera permissão, tolerância ou ocupação consentida pelo proprietário, que tinha relação de parentesco com o autor. Ademais o demandante trabalhava para o proprietário, em uma padaria, em relação de subordinação. Alegada promessa de doação que teria sido feita pelo pai do réu que não é suficiente para a obtenção do título dominial, porquanto tal figura não existe no ordenamento jurídico. Posse não revestida de animus domini, elemento anímico indispensável ao reconhecimento da prescrição aquisitiva visada. Sentença confirmada. NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO. UNANIME. (TJ-RS, Apelação Cível nº 70058864315, Relator: Nelson José Gonzaga, 18ª Câmara Cível, Julgado em: 08/05/2014).
Portanto, para que se possa exercer qualquer espécie de usucapião, é preciso que o possuidor detenha ao menos três requisitos essenciais: a continuidade da posse, a ausência de oposição e a intenção de se tornar dono (animus domini). Não havendo pelo menos um desses elementos, não há que se falar em usucapião.
3 ESPÉCIES DE USUCAPIÃO DE BENS IMÓVEIS
De acordo com a legislação atual, a usucapião pode ser dividida em quatro grupos: a usucapião ordinária (que está prevista no Código Civil atual e que se subdivide em geral e abreviada), a usucapião extraordinária (que também está prevista no Código Civil e que se subdivide em geral e abreviada), a usucapião especial ou constitucional (que está prevista na Constituição Federal de 1988 e que se subdivide em urbana ou rural) e a usucapião específica ou estritamente legal (que está prevista em leis específicas, tais como a usucapião imobiliária administrativa – atualmente revogada, a usucapião familiar e a usucapião indígena).
Assim, a usucapião possui um grande alcance em diversas áreas jurídicas, devendo, pois, ser analisada cada uma dessas divisões para que se possa compreender a real importância e utilidade desse instituto no ordenamento jurídico e na própria sociedade brasileira.
3.1 A usucapião ordinária
3.1.1 A usucapião ordinária geral
A usucapião ordinária geral exige, principalmente, duas características específicas, além das características comuns as espécies de usucapião: a boa-fé e o justo título. A boa-fé é necessária para comprovar que o possuidor não possui conhecimento dos obstáculos presentes na aquisição da propriedade, sendo, pois, uma boa-fé subjetiva, conforme a previsão do artigo 1.201 do Código Civil. Já o justo título consiste na demonstração da existência de um negócio jurídico na origem da posse, como um contrato de compra e venda, uma doação ou até mesmo um testamento.
O prazo mínimo para que haja a usucapião ordinária geral é de 10 anos, conforme está disposto no artigo 1.242 do Código Civil. Além disso, é necessário que o sujeito detenha a posse contínua e incontestadamente, a fim de que ela tenha um caráter manso e pacífico. Portanto, em regra, a usucapião ordinária ocorrerá se a posse for fundada em boa-fé e em justo título, depois de decorrido o prazo legal de 10 anos previsto no Código Civil.
Para exemplificar, é possível citar a ementa do seguinte acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na qual se concedeu a usucapião ordinária devido à presença do justo título por meio de um contrato de compra e venda:
USUCAPIÃO ORDINÁRIA. Compradora que comprovou, por meio da prova oral, posse mansa e pacífica por si e seus antecessores desde 2001. Compromissos de compra e venda que retroagem a 1995. Posse mansa e pacífica com animus domini por mais de 10 anos. Contrato de compra e venda celebrado que serve como justo título para fins de usucapião. Requisitos para prescrição aquisitiva cumpridos. Aplicabilidade do artigo 1.242 do Código Civil. Sentença reformada. Recurso provido. (TJ-SP – Apelação nº 0000259-26.2013.8.26.0200, Relatora: Ana Lucia Romanhole Martucci, Data de Julgamento: 22/10/2015, 6ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 23/10/2015).
3.1.2 A usucapião ordinária abreviada
O Código Civil prevê, no parágrafo único do artigo 1.242, a hipótese de usucapião ordinária abreviada, também chamada de “posse-trabalho”, que possui certos elementos que a distingue da usucapião ordinária geral, como a aquisição onerosa do bem e a destinação dada ao imóvel em questão.
O primeiro elemento consiste em o possuidor adquirir o bem, de forma onerosa, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelado posteriormente. Dessa forma, exige-se dos possuidores que o bem, adquirido onerosamente, seja registrado no cartório de Registro de Imóveis, e que esse registro seja depois cancelado. Nas palavras de Fábio Ulhoa (2012, p. 200), “[...] para atender a essa condição, o possuidor deve ter pago pela coisa a quem parecia ser, pelo constante do Registro de Imóveis, o verdadeiro proprietário do bem”.
Contudo, esse primeiro elemento não é considerado essencial por uma parcela dos doutrinadores brasileiros. Flávio Tartuce, por exemplo, cita que:
[...] a existência do título registrado e cancelado é até dispensável, pois o elemento é acidental, formal. A posse-trabalho, em realidade, é o que basta para presumir a existência da boa-fé (aqui é a boa-fé objetiva, que está no plano da conduta) e do justo título. Essa parece ser a melhor interpretação, fundada no princípio da função social da posse. (TARTUCE, 2014, p. 147).
Já o segundo elemento consiste basicamente em que os possuidores do imóvel devem estabelecer moradia ou realizar investimentos de interesse social e econômico. Desse modo, o Código Civil atual reconhece a importância da função social da propriedade, já que estabelece requisitos especiais para a aquisição da usucapião ordinária em caráter abreviado, privilegiando aqueles que valorizam e contribuem para a sociedade.
Portanto, desde que sejam respeitados esses dois requisitos especiais, quais sejam, o requisito formal (o registro do imóvel, cancelado posteriormente) e o requisito material (a destinação social e econômica dada ao imóvel), a propriedade poderá ser usucapida em cinco anos, facilitando, pois, a aquisição do bem imóvel que possua uma finalidade especial, seja de moradia, seja de relevante interesse socioeconômico.
3.2 A usucapião extraordinária
3.2.1 A usucapião extraordinária geral
A usucapião extraordinária geral, prevista no artigo 1.238 do Código Civil, exige, basicamente, que o possuidor detenha o bem imóvel em seu poder durante quinze anos, e que este exerça a posse com intenção de dono (animus domini), exigindo-se, pois, que ela detenha um caráter manso, pacífico e contínuo. Para muitos doutrinadores, essa espécie de usucapião é considerada a mais ampla, uma vez que ela não exige a boa-fé e o justo título, nem que exista qualquer destinação específica para o bem.
Assim, privilegia-se o prazo temporal da posse (quinze anos), havendo, pois, uma usucapião que abrange toda e qualquer tipo de posse. De acordo com Fábio Ulhoa (2012, p. 199), “[...] essa é a hipótese mais ampla de usucapião, destinada a consolidar em direito de propriedade a situação de fato surgida com qualquer tipo de posse”. Dessa forma, garante-se a propriedade àquele que mantenha o bem imóvel em sua posse durante quinze anos, de forma mansa, pacífica e contínua, conforme o caput do artigo 1.238 do Código Civil.
3.2.2 A usucapião extraordinária abreviada
A usucapião extraordinária abreviada, prevista no parágrafo único do artigo 1.238 do Código Civil, novamente prestigia aquele que exerce alguma finalidade específica no bem imóvel, semelhante à hipótese de usucapião ordinária abreviada. Nessa hipótese, é preciso que o possuidor tenha destinado o imóvel à sua moradia habitual, ou que tenha realizado obras ou serviços de caráter produtivo na propriedade. Dessa forma, valoriza-se a função social do bem imóvel, facilitando a sua usucapião ao reduzir o prazo legal para dez anos.
Nessa espécie de usucapião, também não é necessário que se demonstre a boa-fé e o justo título da posse, bastando que ela seja mansa, pacífica e contínua, assim como ocorre na usucapião extraordinária geral. Para Flávio Tartuce:
O que se percebe é que nos dois casos não há necessidade de se provar a boa-fé ou o justo título, havendo uma presunção absoluta ou iure et de iure da presença desses elementos. O requisito, portanto, é único: a presença da posse que apresente os requisitos exigidos em lei. (TARTUCE, 2014, p. 148).
Logo, é necessário apenas cumprir os requisitos legais, quais sejam, a destinação especial dada ao imóvel, seja como moradia habitual, seja para a realização de obras ou serviços de caráter produtivo na propriedade; e o caráter manso, pacífico e contínuo da posse para que se possa conceder a usucapião extraordinária abreviada. Assim, o atual Código Civil prestigia, mais uma vez, a função social da propriedade, reduzindo o prazo legal em dez anos, a fim de facilitar a usucapião do imóvel.
3.3 A usucapião especial ou constitucional
3.3.1 A usucapião especial rural
A usucapião rural está prevista no artigo 191 da Constituição e no artigo 1.239 do Código Civil. Para que o possuidor tenha direito a essa espécie de usucapião, é necessário que ele preencha alguns requisitos, tais como: não ser proprietário de imóvel urbano ou rural; que tenha em sua posse o bem imóvel durante cinco anos ininterruptos; que o bem seja uma área de terra, localizada em zona rural, não superior a cinquenta hectares; e que o possuidor torne a área de terra produtiva para o seu trabalho ou para o sustento de sua família, exercendo nela a sua moradia habitual.
Desse modo, percebe-se que tanto a Constituição quanto o Código Civil valorizam o trabalhador rural, ao garantir a propriedade da terra que esteja exercendo a sua função social. Essa espécie de usucapião tenta estimular a chamada agricultura familiar, evitando-se o êxodo rural. Nas palavras de Washington de Barros Monteiro:
A usucapião especial rural não se contenta com a simples posse. O seu objetivo é a fixação do homem no campo, exigindo ocupação produtiva do imóvel, devendo neste morar e trabalhar o usucapiente. Constitui a consagração do princípio ruralista de que deve ser dono da terra rural quem a tiver frutificado com o seu suor, tendo nela a sua morada e a de sua família. (MONTEIRO, v. 3, p. 128).
O conceito de família, no caso da usucapião especial rural, é bastante amplo, pois a própria Constituição a define, ao longo do artigo 226, como sendo aquela constituída pelo casamento, pela união estável ou pela família monoparental. De acordo com Carlos Roberto Gonçalves (2013, p. 515), “[...] a morte de um dos cônjuges, de um dos conviventes ou do pai ou da mãe que dirige a família monoparental não prejudica o direito dos demais integrantes”.
Cumpre ressaltar, também, que a moradia não precisa ser ininterrupta, exigindo-se apenas que o possuidor detenha a intenção de ser dono e que explore o bem com a intenção de sustentar a si mesmo e à sua família. Esse é o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, que concedeu a usucapião para o possuidor, apesar de ele ter morado em uma residência urbana por um certo período de tempo. A ementa do acórdão é transcrita a seguir:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO ESPECIAL RURAL. COMPROVAÇÃO DE TODOS OS REQUESITOS. RECURSO JULGADO PROCEDENTE. DECISÃO UNÂNIME. Aquisição do bem com o ânimo definitivo de estabelecer residência no sítio objeto da lide. O fato de se passar muito tempo na capital para tratamento de saúde da esposa é transitório, não desvirtuando o local de seu domicílio. Intenção dos apelantes de possuírem o bem como se proprietários fossem decorre dos investimentos efetuados no imóvel. É evidente que quem explora o bem por meio de cultivos e plantações, construindo casa para moradia age com intenção de dono. Quanto aos demais requisitos necessários para a configuração da usucapião especial, verifica-se que não há controvérsia a respeito da posse ininterrupta, do tamanho do imóvel usucapiendo e do transcurso do prazo de 5 (cinco) anos, pelo que se devem presumir verdadeiros tais fatos (art. 302, caput, do CPC). Recurso provido. (TJ-PE - APL: 2959619 PE, Relator: Eurico de Barros Correia Filho, Data de Julgamento: 18/07/2013, 4ª Câmara Cível, Data de Publicação: 24/07/2013).
Ademais, a usucapião rural é vedada às pessoas jurídicas, pois estas entidades não podem constituir família ou moradia. Além disso, a Constituição veda, no parágrafo único do artigo 191, a usucapião rural de bens públicos, seguindo, portanto, o entendimento de que os bens públicos são impossíveis de serem usucapidos. Por fim, o artigo 3º da lei nº 6.969, de 1981, estabelece algumas vedações específicas, proibindo, pois, que haja a usucapião rural em áreas indispensáveis à segurança nacional, em terras habitadas pelos silvícolas (os atuais indígenas) e em áreas de interesse ecológico, como reservas biológicas e parques florestais.
A doutrina também estabelece uma vedação à chamada accessio possessionis, que permite a soma de tempos de posses sucessivas, pois, na usucapião rural, seria impossível que o sucessor detenha as mesmas características que o seu antecessor. Assim, de acordo com o ensinamento de Carlos Roberto Gonçalves,
[...] não pode, assim, o possuidor acrescentar à sua posse a dos seus antecessores, uma vez que teriam de estar presentes as mesmas qualidades das posses adicionadas, o que seria difícil de ocorrer, visto que há requisitos personalíssimos incompatíveis com a aludida soma, como produtividade do trabalho do possuidor ou de sua família e morada no local. (GONÇALVES, 2013, p. 515).
Dessa forma, a usucapião rural é destinada àquele que não possui qualquer tipo de imóvel, seja ele urbano ou rural, e que detenha, durante cinco anos ininterruptos, uma área rural produtiva não superior a cinquenta hectares, com o intuito de sustentar a si mesmo e a sua família, utilizando-a, também, como sua moradia habitual.
3.3.2 A usucapião especial urbana
A usucapião especial urbana foi uma novidade introduzida pela Constituição que, posteriormente, foi incorporada pelo Código Civil em seu artigo 1.240, caput. Tal espécie de usucapião possui uma série de requisitos necessários à sua obtenção, tais como: a área da propriedade, que não pode superar duzentos e cinquenta metros quadrados (250 m2); a posse da propriedade, durante cinco anos, ininterruptos e sem oposição; a finalidade do imóvel, que deve ser utilizada para a moradia do possuidor ou da sua família. Além disso, o possuidor não deve ter nenhuma outra propriedade imóvel, seja ela urbana ou rural.
Conforme citado anteriormente, o ordenamento jurídico brasileiro atual adota uma interpretação ampla de família. No caso da usucapião especial urbana, tanto a Constituição, em seu artigo 183, parágrafo primeiro, quanto o Código Civil, em seu artigo 1.240, parágrafo primeiro, prescrevem que o título de domínio e a concessão de uso serão conferidos tanto ao homem, quanto à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. Assim, o legislador decidiu favorecer as mais diversas formas de família, seja aquelas formadas pela união estável, seja aquelas formadas pelo casamento, dentre outros exemplos.
Ademais, a Constituição e o Código Civil também estabelecem algumas vedações no que diz respeito à posse, proibindo que o novo possuidor detenha esse direito mais de uma vez e que haja a usucapião de bens públicos, conforme os parágrafos segundo e terceiro dos artigos 183, da Constituição, e 1.240, do Código Civil.
Quanto à área do imóvel, entende-se que os 250 m² sejam o limite máximo, fixado pelo legislador como sendo o ideal para a moradia do possuidor e de sua família, abrangendo, pois, tanto a área do terreno quanto a da construção, sendo vedado que uma ou outra supere o limite legal. Assim, garante-se uma maior liberdade para o possuidor, desde que este cumpra a função social da propriedade e que respeite os limites impostos pela lei e pela Constituição.
3.3.3 A usucapião especial urbana no Estatuto da Cidade
3.3.3.1 A usucapião especial urbana individual
A lei nº 10.257, de 2001, também chamada de “Estatuto da Cidade”, prescreve e disciplina a usucapião especial urbana individual e coletiva, ambas de importantíssima função social e que garantem a eficácia da política urbana nos municípios brasileiros.
A usucapião especial urbana individual, prevista no artigo 9º da referida lei, prevê que, aquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, irá adquirir o domínio do bem, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural e desde que a utilize para sua moradia ou de sua família.
Como se percebe, o Estatuto da Cidade estabelece praticamente o mesmo preceito artigo 1.240 do Código Civil, com a diferença que este último apenas cita “área urbana”, já o Estatuto da Cidade fala em “área urbana ou edificação urbana”, valorizando-se não somente a usucapião da área, do terreno, mas sim da moradia, objeto de proteção pela Constituição. Isso demonstra a preocupação do legislador em assegurar um mínimo existencial ao possuidor, que, contudo, deve respeitar os limites legais, sobretudo quanto à extensão do terreno e do edifício, que não podem ultrapassar os duzentos e cinquenta metros quadrados, para ambos os casos.
Além disso, cumpre ressaltar que, embora a acessio possessionis seja vedada na usucapião rural, o Estatuto das Cidades prevê essa hipótese com relação à usucapião especial urbana, ao citar, em seu artigo 9º, parágrafo terceiro, que “o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, a posse de seu antecessor, desde que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão”. Dessa forma, o Estatuto das Cidades prestigia aquele que, legitimamente, detém a posse do seu antecessor, exigindo-se apenas que a sua residência seja concomitante à data de abertura da sucessão. Contudo, é importante ressaltar que somente o herdeiro legítimo poderá se beneficiar, uma vez que a lei não fala em herdeiro testamentário. De acordo com Carlos Roberto Gonçalves, “ao falar em herdeiro legítimo, o dispositivo em tela afasta o herdeiro testamentário e também outros que não estejam residindo no imóvel usucapiendo na data da abertura da sucessão. ” (GONÇALVES, 2013, p. 518).
Por fim, percebe-se que a lei veda o uso do imóvel para outros fins que não o residencial. Contudo, uma parcela da doutrina defende que se possa utilizar parte do imóvel para a prática de pequeno comércio, desde que no imóvel residam o possuidor do imóvel ou a sua família. Assim, defendem esse posicionamento tanto Carlos Roberto Gonçalves (2013, p. 518) quanto Benedito Silvério Ribeiro (2006, v. 2, p. 947).
3.3.3.2 A usucapião especial urbana coletiva
A usucapião especial urbana coletiva, prevista no artigo 10º do Estatuto da Cidade, prevê que as áreas urbanas com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas de forma coletiva, exigindo-se, no entanto, que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
Esse dispositivo visa, principalmente, regulamentar as favelas, presentes nas mais diversas cidades brasileiras, cujos habitantes vivem em situações precárias, sem o domínio da propriedade. Assim, um dos principais requisitos para que se possa usufruir dessa espécie de usucapião é a renda do possuidor, que deve ser tão baixa à ponto de impossibilitar a aquisição, por meio de um negócio oneroso, de uma simples propriedade imóvel para a sua moradia ou de sua família. Entretanto, nem sempre é possível delimitar, com precisão, a renda de uma pessoa, sendo, pois, uma questão que deva ser avaliada diante do caso concreto.
Outro requisito essencial para a concessão da usucapião urbana coletiva é quanto à impossibilidade de identificação dos terrenos de cada possuidor. Embora, no mundo fático, a situação possa ser semelhante à composse, no mundo jurídico, elas são distintas. Quando há a composse, a propriedade é ocupada por várias pessoas, que detém a sua posse em comum.
No entanto, no caso em questão, há, na verdade, uma posse desordenada, sendo, pois, impossível delimitar as parcelas individuais de cada possuidor, embora seja possível dividi-las através de frações ideais, conforme o artigo 10º, parágrafo 3º do Estatuto da Cidade. Assim, exige-se que os terrenos sejam impassíveis de delimitação física, não havendo, portanto, aplicabilidade do instituto da composse nessa espécie de usucapião.
Por último, cumpre destacar os outros requisitos previstos no artigo 10º, que são o tempo da posse (cinco anos), de caráter contínuo e pacífico, bem como a área do terreno, que não pode ser inferior a duzentos e cinquenta metros quadrados e que não pode ser delimitada materialmente por cada um dos possuidores. Logo, o Estatuto da Cidade procura regularizar a situação precária em que vivem milhares de pessoas nas favelas ao redor do Brasil, garantindo àqueles que preencherem os requisitos legais o direito à moradia e à propriedade, inerentes ao princípio da dignidade da pessoa humana.
3.4 A usucapião específica ou estritamente legal
3.4.1 A usucapião imobiliária administrativa
A usucapião imobiliária administrativa, que estava prevista inicialmente no artigo 59 da lei nº 11.977, de 2009, foi revogada pela medida provisória nº 759, de 2016. Assim, não iremos nos aprofundar muito nessa espécie de usucapião, uma vez que, por enquanto, ela não possui mais aplicação prática em virtude da sua revogação.
Originalmente, a lei previa que o Poder Público poderia legitimar a posse dos ocupantes de imóvel particular devidamente cadastrado, desde que os ocupantes não fossem concessionários, foreiros ou proprietários de outro imóvel urbano ou rural e que não fossem beneficiários de legitimação de posse concedida anteriormente.
A legitimação de posse seria concedida, também, ao coproprietário da gleba, titular de cotas ou frações ideais, devidamente cadastrado pelo Poder Público, desde que exercesse o seu direito de propriedade em um lote individualizado e identificado no parcelamento registrado. Após 5 (cinco) anos de seu registro, o detentor do título de legitimação de posse poderia requerer ao oficial de registro de imóveis a conversão desse título em registro de propriedade, garantindo, pois, a propriedade do imóvel por meio de um procedimento extrajudicial.
Assim, esse instituto visava a facilitar a aquisição da propriedade, evitando-se, pois, um processo judicial, muitas vezes custoso e demorado para ambas as partes, sendo, portanto, defendido por diversos doutrinadores, tais como Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2012, v. 5, p. 450 - 456), Flávio Tartuce (2014, v. 4, p. 156) e Carlos Roberto Gonçalves (2013, p. 521 – 522). Melhim Namen Chalhub destacava, na época, a importância dessa modalidade de usucapião, afirmando que:
A extrajudicialidade do procedimento se justifica, dentre outros fundamentos, pela necessidade de simplificar e desburocratizar os meios de realização da função social da propriedade e das cidades, e contribui decisivamente para consecução dessas funções, não havendo afronta alguma aos requisitos da aquisição da propriedade por usucapião, nem às garantias constitucionais do direito de propriedade, desde que cumprida sua função social, e, ainda, aos requisitos do contraditório. (CHALHUB, Melhim Namen. Usucapião Administrativa, 2014. Acesso em: 30 de abril de 2017).
Portanto, resta saber se a medida provisória nº 759 será convertida em lei ou não. De qualquer forma, por enquanto essa modalidade de usucapião não se aplica mais na prática, embora seja inegável a sua importância social, ao conceder a propriedade para o possuidor por meio de um procedimento extrajudicial, evitando-se uma solução judicial lenta e onerosa, que, na prática, prejudicava ambas as partes envolvidas no processo.
3.4.2 A usucapião familiar
A usucapião familiar surgiu com o advento da lei nº 12.424, de 2011, que inseriu no Código Civil o artigo 1.240-A e seu parágrafo primeiro. Dessa forma, a usucapião familiar consiste basicamente em conceder a propriedade para aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250 m2 cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, desde que o utilize para sua moradia ou de sua família, que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural e que não tenha exercido esse direito anteriormente.
Assim, essa espécie de usucapião se distingue da usucapião especial urbana, uma vez que se exige da usucapião familiar dois requisitos extras, quais sejam, que o usucapiente seja coproprietário do imóvel, e que o seu ex-cônjuge ou ex-companheiro tenha abandonado o imóvel de forma voluntária e injustificada. Além disso, a usucapião familiar exige apenas um prazo de dois anos, tendo, portanto, um prazo inferior à da usucapião especial urbana.
Uma questão controversa é com relação ao início do prazo. O Código Civil, em seu artigo 197, inciso I, estabelece que o prazo prescricional não corre entre os cônjuges, na constância da sociedade conjugal. Dessa forma, poderia se inferir que apenas quando houver a dissolução do vínculo entre os cônjuges (ou companheiros) é que se poderia iniciar o prazo na hipótese de usucapião familiar.
Contudo, uma parcela da doutrina defende que a separação de fato caracterizaria, também, o início do prazo, desde que se comprovasse o abandono do outro cônjuge ou companheiro. Dessa forma, entende Carlos Roberto Gonçalves (2013, p. 524) que “a separação de fato poderá ser o marco inicial da contagem do prazo da usucapião familiar, uma vez caracterizado o abandono voluntário do lar por um dos cônjuges ou companheiros”.
Por fim, ressalta-se que a usucapião familiar é destinada às pessoas que perderam o apoio de um cônjuge ou companheiro, por uma separação fática ou de direito, mas que não possuem a propriedade do bem em que residem. Assim, o Código Civil busca amparar aqueles que estão em situação vulnerável, concedendo um prazo diferenciado devido à situação que se encontram, garantindo, assim, um mínimo existencial para o possuidor do bem em questão.
3.4.3 A usucapião indígena
A usucapião indígena está prevista na lei nº 6.001, de 1973, também chamada de “Estatuto do Índio”. De acordo com a previsão do artigo 33, caput, o índio, integrado ou não, que ocupe como próprio, por dez (10) anos consecutivos, trecho de terra inferior a cinquenta hectares, adquirir-lhe-á a propriedade plena, não se aplicando, contudo, às terras do domínio da União, ocupadas por grupos tribais, nem às terras de propriedade coletiva de grupo tribal, conforme o parágrafo único do referido artigo.
Logo, percebe-se que a lei buscou garantir tanto ao índio integrado quanto ao não integrado o acesso à propriedade, inferior a cinquenta hectares, desde que a ocupe pelo tempo mínimo de dez anos consecutivos. Portanto, o Estatuto do Índio assiste o silvícola em face das diversas ameaças existentes no meio rural, auxiliando-o na aquisição da propriedade por meio de uma modalidade especial de usucapião.