A respeito da temática em apreço, inicialmente, imperiosa a reflexão que um dos alicerces estruturantes da existência em sociedade é, de fato, definido pelas nuances da criação e interpretação da ciência jurídica, por sua vez, imbricada pelas ciências sociais, dentre elas, a Sociologia, e o produto desta coexistência.
Isto porque, ao se pautar na análise científica do comportamento humano em sociedade, observando-se, inclusive, a demonstração de poder (seja simbólico, como assevera Pierre Bourdieu, ou real, originário da legitimação, no viés de Max Weber), também se pressupõe a compreensão da essencialidade da normatividade de condutas, contextualizada pelas condições sociais que foram e são palco de sua origem material (culturais, econômicas, religiosas, intelectuais etc.).
Entretanto, o cerne da discussão se ilustra como complexo e multidisciplinar, pois não há como dissociar uma ciência da outra, até mesmo pelo prisma aplicável pelos operadores de Direito e a primordialidade da compreensão dos fenômenos sociais proposta pela Sociologia, o que evidencia, de fato, o elo essencial das ciências.
Ressalte-se que, segundo Bourdieu e sua criticidade tão ilustrada, o que predomina sobre o campo jurídico consiste na pretensão de Hans Kelsen, qual seja, a tentativa de construção de um aparato teórico apto a distanciar a norma jurídica (pura) da realidade social, como se o Direito fosse capaz de se fundamentar em si mesmo, porém, o dinamismo científico exige a ingerência sociológica para a sua execução.
Ao conceituar e contextualizar as relações culturais humanas como inerentes aos sistemas simbólicos, Bourdieu evidencia sua tese quanto às generalizações e inferências universalizantes, inclusive com a abordagem da subalternização entre os indivíduos, as lutas de classes na ingerência econômica (com hierarquia, imposição).
Pontualmente, no capítulo VIII de "O Poder Simbólico", Bourdieu preleciona que a “ciência jurídica” envolve, em geral, notáveis formalismos e fomenta uma instrumentalidade do direito, a utilização do direito como “utensílio ao serviço dos dominantes”. Quanto à importância da intervenção sociológica no campo jurídico, Bourdieu elucida:
[...] Para romper com a ideologia da independência do direito e do corpo judicial, sem se cair na visão oposta, é preciso levar em linha de conta aquilo que as duas visões antagonistas, internalista e externalista, ignoram uma e outra, quer dizer, a existência de um universo social relativamente independente em relação às pressões externas [...] (BOURDIEU, 1989, p. 211).
Por outro lado, em conformidade com o prefácio de Karl Marx, foi possível aferir que o modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política, econômica e espiritual em geral, o que também reflete na produção legiferante e a tratativa das relações sociais em grupo, quando subordinadas à ciência jurídica e seus efeitos.
Nesse sentido, oportuno colacionar o seguinte excerto do prefácio de “O Capital” do autor retrocitado:
[...] A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. [...] Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência. [...] (MARX, 1859, p. 129-130).
No que lhe concerne, no capítulo "Os três tipos puros de dominação legítima", Weber pondera que, dentro da dominação legal, portanto, atinente ao Direito, "obedece-se não à pessoa em virtude de seu direito próprio, mas à regra estatuída, que estabelece ao mesmo tempo a quem e em que medida se deve obedecer" (WEBER, 1956, p. 129), ou seja, a obediência está umbilicalmente confrontada à sociedade e seus valores estruturantes/coercitivos.
Por derradeiro, insta mencionar as lições extraídas de Émile Durkheim, organizadas por José Albertino Rodrigues, que denotam cirúrgica similitude entre Direito e Sociologia:
[...] No cruzamento das linhas de sincronia e diacronia se situa a sociedade como organização central, que pode ser apreendida pelos fatos sociais e de onde emanam tantos efeitos coercitivos sobre indivíduos e grupos como fenômenos abstratos de consciência coletiva e suas manifestações concretas que são as representações coletivas [...] (RODRIGUES, 2000, p. 32).
Nestas assertivas, se sobressai a relevância da Sociologia (sobretudo, de especialidade jurídica), enquanto aliada diuturna do Direito, haja vista que o objeto primevo da citada ciência é composto, em síntese, pelo estudo e escrutínio minucioso da influência dos fatores externos ao Direito (sociais, econômicos, políticos, religiosos, culturais etc.).
Outrossim, se infere esta correlação científica na organização do Estado, a atenção aos anseios dos indivíduos que o compõe (e são subjugados pelo poder) e as funções das instituições na proteção contra os excessos decorrentes dos fenômenos jurídicos, de forma a assegurar os direitos fundamentais (regulação existencial mínima).
Referências bibliográficas
1. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico; tradução de Fernando Tomaz. Memória e Sociedade. - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 5. ed., 2002.
2. MARX, Karl. Karl Marx: sociologia / organizador da coletânea Octavio Ianni; tradução de Maria Elia Mascarenhas, Ione de Andrade e Fausto N. Pellegrini. - São Paulo: Ática, 2. ed., 1980.
3. WEBER, Max. “Os três tipos puros de dominação legítima”. In: COHN, Gabriel (Org.) Max Weber: Sociologia. - São Paulo: Ática, 7. ed., 1999.
4. RODRIGUES, José Albertino. A sociologia de Émile Durkheim. - São Paulo: Ática, 6. ed., 2000.