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Trabalho infantil: notas sobre a realidade de crianças e adolescentes negligenciada pelo Estado à luz das diretrizes dos tratados e convenções internacionais

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No papel, existem inúmeras políticas públicas para promoção da manutenção da sadia infância das crianças e adolescentes. No papel.

Resumo: A realidade do trabalho infantil no Brasil está sendo negligenciada pelo Estado permanentemente. Não se pode olvidar a existência de políticas públicas para promoção dos direitos e garantias fundamentais às crianças e aos adolescentes. Contudo, seria ingenuidade não reconhecer que não são efetivas, prejudicando gravemente a infância dessas crianças. Além das disposições normativas internas que visam proteger a criança, o Brasil é país signatário de inúmeras Convenções e Tratados Internacionais sobre Direitos e Garantias às crianças e adolescentes, dentre elas a Convenção Sobre os Direitos das Crianças, Convenção Americana de Direitos Humanos, e a Convenção 182 e a Recomendação 190 da Organização Internacional do Trabalho. Essas Convenções possuem valia normativa com status supralegal, ou seja, estão acima da legislação ordinária, equiparando-se às normas Magnas. A história do trabalho infantil no Brasil se repete, e isso só traz consequências socioculturais que desestruturam a organização do Estado, tendo em vista a legitimação por diversos institutos do trabalho infantil, fazendo com que tal trabalho subsista de maneira escancarada tanto em famílias menos favorecidas economicamente, quanto por extremas exigências de crianças em famílias mais ricas. A erradicação do trabalho infantil no Brasil só ocorrerá quando as políticas públicas estatuídas forem cumpridas, sendo necessário para tanto que sejam fiscalizadas efetivamente.

Palavras-chave: Infância Digna. Constituição Federal. Convenções Internacionais. Fatores Condicionantes. Exploração. Erradicação.

 


CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS 

O trabalho infantil é realidade sociocultural de crianças e adolescente em todo o Brasil e é negligenciada pelo Estado, que apesar de estatuir inúmeras políticas públicas para promoção dos direitos e garantias fundamentais das crianças e dos adolescentes, não são efetivas e a infância delas que deveria ser usufruída com dignidade é afrontada gravemente.

Além das inúmeras disposições normativas internas que tutelam (no mundo do dever ser) o bem-estar das crianças, com o escopo de evitar o trabalho infantil - e, se caso subsista, promover a sua erradicação - o Brasil é signatário de inúmeras Convenções e Tratados Internacionais sobre Direitos e Garantias às crianças e adolescentes. Tais postulados, que foram pactuados na esfera internacional, têm aplicação e valia normativa com status supralegal, ou seja, estão acima da legislação ordinária, equiparando-se às normas Magnas.

A questão do trabalho infantil deve ser enfrentada com um olhar histórico, pois desde a descoberta do Brasil em 1500, crianças e adolescentes são exploradas no trabalho. Além do que, a própria sociedade legitima o trabalho infantil, quer de maneira escancarada por famílias menos favorecidas economicamente, quer por extremas exigências de crianças por famílias mais ricas.

Além dos fatores históricos que fazem subsistir o trabalho infantil no Brasil, depreendem-se também outros fatores que condicionam a manutenção desse trabalho como a desigualdade social – que ocasionará no aumento dessa desigualdade, como consequência –, a cultura de famílias que vivem da agricultura, a educação precária, entre outros.

Nota-se, porém, que a efetiva inobservância e, consequentemente, o descumprimento desses mandamentos, além de desrespeitar toda a estrutura organizacional jurídico-social prevista, legitima consequências do trabalho infantil de forma que o objetivo de erradicação é desvirtuado.


 1 CONCEITO DE TRABALHO INFANTIL 

O conceito de trabalho infantil foi elaborado pela Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil – CONAETI[1]. A Convenção chegou a um consenso, em que por meio do Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador – formulado na Convenção –, trabalho infantil refere-se às atividades econômicas e/ou atividades de sobrevivência, com ou sem finalidade de lucro, remuneradas ou não, realizadas por crianças ou adolescentes em idade inferior a 16 (dezesseis) anos, ressalvada a condição de aprendiz a partir dos 14 (quatorze) anos, independentemente da sua condição ocupacional.[2]

Este conceito encontra amparo legal no art. 7º, XXXIII, da Constituição Federal de 1988,[3] no art. 60 da Lei 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente)[4] e na Convenção nº 138 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Congresso Nacional em fevereiro de 2002, pelo Decreto nº 4.134/2002. Isa de Oliveira entende que “à proibição legal do trabalho precoce se soma a compreensão de que a exploração de crianças e adolescentes no trabalho é uma violação dos seus direitos fundamentais e se insere no campo da violação dos direitos humanos”[5]. Complementa que proibir o trabalho infantil é fazer valer os princípios da proteção integral e da prioridade absoluta da criança e do adolescente, conforme determina o art. 227 da Constituição Federal de 1988 e dispositivos do ECA.[6]

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Compreendido o que configura trabalho infantil e as disposições legais que amparam fundamentalmente o conceito, a presente pesquisa, no tópico seguinte, fará uma análise acerca dos aspectos históricos do trabalho infantil no Brasil, afim de compreender também o porquê de tal trabalho subsistir na sociedade.


 2 A HISTÓRIA SE REPETE 

A história do trabalho infantil no Brasil é desumana. Por muito tempo se praticou a violência e exploração contra a criança e o adolescente. Em marcos históricos, tem-se que o Brasil foi descoberto em 1.500. A partir desse momento as terras começaram a ser povoadas e, inevitavelmente as crianças fizeram parte dessa “construção”. Nesse momento, como bem assinala Juliana Paganini[7], os grumetes (crianças de no máximo 12 anos de idade, que estavam abaixo dos marinheiros) chegaram com as embarcações portuguesas já na condição de trabalhadores.

Realizavam as tarefas mais perigosas e penosas, sendo submetidos a diversos castigos quando não realizavam tais atividades, bem como aos abusos sexuais de marujos, além da péssima alimentação à qual eram submetidos e dos riscos percorridos em alto mar. Os grumetes eram tidos como escravos. Não podiam reclamar de absolutamente nada, caso contrário, eram castigados.

Não só das crianças pobres se tinha exploração no trabalho infantil. Os pajens (crianças embarcadas da nobreza) eram encarregadas de realizar os serviços menos árduos que os realizados pelos grumetes, tais como arrumar os camarotes, servir as mesas e organizar as camas.

Logo no início da povoação do Brasil, já havia a utilização da mão de obra das crianças, seja de forma extremamente explorada (grumetes) ou com menos exigência (pajens). Importante acentuar que a condição à qual essas crianças eram submetidas era legitimada pela sociedade, o que tornava a prática do trabalho infantil algo comum.

A povoação foi aumentando e consequentemente as atividades realizadas pelas crianças também. Para o “progresso” não parar, era imprescindível o recrutamento dos grumetes – já que os pajens eram da nobreza –, para realizarem o excesso de atividades. Esse “recrutamento” ia desde o rapto de crianças judias e a condição de pobreza vivenciada em Portugal até a iniciativa dos próprios pais em alistar as crianças nas embarcações como forma de garantir a sobrevivência dos filhos e diminuir as dificuldades enfrentadas pela família.[8]

Outro marco histórico importante para o fortalecimento do trabalho infantil foi a chegada dos padres jesuítas no Brasil no ano de 1.549. Apesar das “ações de catequização”, realizadas pelos padres, o objeto central dessa catequização – forma de controle –, era adentrar na criança uma ideologia cristã, utilizando o trabalho como algo que tornava o homem uma pessoa boa, honesta e obediente, salvando-os e os levando para o céu. Criada em 1.582, a Santa Casa de Misericórdia tinha a missão de atender todas as crianças, através da Roda dos Expostos, todavia, a instituição apenas legitimava a exploração das crianças, pois em troca de alimento e casa, elas tinham que realizar tarefas desgastantes.[9]

No século XIX, apesar da criança burguesa receber um pouco mais de atenção, as demais eram escravizadas, inclusive tratadas como animais em chiqueiros junto aos porcos ou como “cavalinho” de crianças burguesas, como forma de brinquedo. Como bem assinala Mary Del Priore, “a transição da escravidão para o trabalho livre não viria significar a abolição da exploração das crianças brasileiras no trabalho, mas substituir um sistema por outro considerado mais legítimo e adequado aos princípios norteadores da chamada modernidade industrial” (PRIORE, 1999, p. 91), uma vez que até a Revolução Industrial entre os séculos XVIII e XIX, o número de crianças trabalhando em condições subumanas nas fábricas era gigantesco.

Com o término do sistema escravocrata e o início de um sistema republicano, o Brasil, a partir da década de 1920, se viu diante da necessidade de melhor “observar” a criança na sociedade. Todavia, isso ocorreu paulatinamente, até porque, no início, as políticas pouco asseguravam uma vida próxima da “dignidade humana”. Exemplo foi a criação do Código de Menores, em 1979, constituindo-se basicamente a partir da política nacional do bem-estar do menor adotada em 1964, que ressaltava ainda a cultura do trabalho a ser legitimada por todo tipo de exploração de crianças e adolescentes.

Todavia, como o fim da era Vargas (que apesar de impulsionar direitos e garantias trabalhistas, não deu a devida atenção as crianças), e a luta de vários movimentos sociais, é promulgada em 1988 a “Constituição Cidadã”, que consagraria inúmeros direitos e garantias para a sadia manutenção da vida digna da criança e do adolescente.[10]

No ano de 2000, o Ministério da Cultura, em parceria com M. Schmiedt Produções elaboraram um documentário que mostra os dois lados do trabalho infantil no Brasil. Em A Invenção da Infância,[11] é possível perceber a realidade de cobranças extremas - tanto da sociedade (crianças menos favorecidas economicamente), quanto da própria família (famílias de classe média e alta) - de crianças nos estados da Bahia, São Paulo e Rio Grande do Sul.

Um dos fatores que condiciona a existência do trabalho infantil, e isso ficou evidenciado no documentário, é a questão regional do Brasil. O documentário mostrou a realidade de crianças de oito a treze anos trabalhando em uma pedreira em Santa Luz, na Bahia, que quando questionadas do porquê estarem ali, com olhar de tristeza e desesperança, diziam “trabalho porque não tem jeito, tem que trabalhar mesmo”, “pra ajudar meu pai a trabalhar”. A realidade que essas crianças vivenciam as condicionam a acreditar ser bom receber R$ 0,50 por um dia todo de trabalho forçado, com uma má alimentação.

Em outro momento, o documentário se passa em uma Plantação de Sisal, em Retirolândia, também na Bahia. Pensar que trabalho infantil é menos forçado que trabalho realizado por adulto é ingenuidade. As crianças sentem isso na pele: “tenho doze anos, mas trabalho desde os nove, faço quase o mesmo dos adultos”.

Mas o trabalho infantil não é algo que acontece somente nas regiões menos desenvolvidas do Estado brasileiro. Em São Paulo, por exemplo, o documentário retrata a vida de crianças de famílias ricas, que apesar de estarem em condições sociais melhores que as crianças da Bahia, em muito se assemelham àquelas. Há, pois, uma exigência tremenda dos pais na formação dessas crianças.

A rotina, segundo o depoimento de uma das crianças “é muito desgastante, as vezes fico muito cansada”. Uma rotina de atividades que a cada dia exige sempre mais das crianças. Frequentar aulas de tênis, balé, sapateado, aulas de inglês, natação. Tudo tem hora certa. Diferente daquelas crianças, estas têm uma “opção de futuro”. Todavia, a exigência extrema dessas crianças rouba-lhes a infância.

Comumente se infere “infância”, à criança. Isso é falácia. Ser criança não significa ter uma infância. No início do século XVIII, informa o documentário, um dicionário francês definiu criança como termo cordial utilizado para saudar ou agradar alguém, ou leva-la a fazer alguma coisa. Tal conceito pode ser empregado em situações como “minha criança, vá buscar meu copo”, o mestre ao se referir aos trabalhadores “vamos crianças, trabalhem”, ou o capitão aos seus soldados “coragem crianças, aguentem firme”. A sociedade é cruel. Se referir a alguém como criança (e criança como aquela que tem até seus doze, quinze anos) nada mais é do que uma forma de dominação um pouco menos escancarada. Ter uma infância, na sua essência, é viver este curto estágio até a vida adulta, com dignidade e proteção do Estado e da família.

Diante do contexto histórico sobre o trabalho infantil no Brasil, é possível perceber que um dos fatores mais emblemáticos na luta de erradicação do trabalho infantil é a legitimação dada pela própria sociedade, que em certa medida se expressa de forma mais descarada, de outras menos, como ficou demonstrado pelo documentário. A história de exploração das crianças se repete.

Seja qual for a classe social na qual a criança esteja inserida, lhe são atribuídas atividades de adultos. A história demonstra que a sociedade conviveu com isso como se algo comum fosse. Poucas críticas. Apesar de o Brasil estar caminhando para retirada de crianças nessa situação, os fatores históricos, ainda dão subsistência ao trabalho infantil, como será melhor abordado no tópico seguinte da pesquisa. É necessário mudar essa realidade. O Estado precisa agir, tornado efetivas as políticas públicas que estão somente no papel. 


3 FATORES CONDICIONANTES DO TRABALHO INFANTIL 

Importante destacar alguns fatores que condicionam a subsistência do trabalho infantil. São fatores que surgem da realidade social, educacional, econômica e familiar. Enfrentar e entender esses fatores que sustentam o trabalho infantil se torna extremamente necessário para que se desenvolva um olhar crítico capaz de transformar a realidade de muitas crianças e adolescentes.

O principal fator, em regra, que condiciona a existência do trabalho infantil é verificado nas famílias de classe baixa. A necessidade econômica dessas famílias faz com que desde muito cedo as crianças ingressem no “mercado de trabalho”, para ajudar na subsistência da própria família. O trabalho infantil não pode ser considerado apenas como a atividade direta da criança na transformação de algo – o que geralmente ocorre. É muito mais amplo.

Por exemplo, diante da necessidade de trabalhar para suprir as necessidades da família, as mães – normalmente mães solteiras e de classes muito desfavorecidas economicamente – deixam os filhos menores com os “filhos maiores”. Os filhos maiores são, em média, crianças de dez a treze anos. São impostas à essas crianças responsabilidades enormes, que logo passarão para os outros filhos e isso se tornará um ciclo vicioso, pois essas crianças irão crescer, formar novas famílias e fazer a mesma coisa com seus filhos. Colocar sob a responsabilidade de crianças o que adultos devem fazer, é tirar-lhes o direito de uma infância digna, com lazer, educação, respeito, saúde e descanso necessários.

O trabalho infantil não ocorre somente em famílias menos favorecidas economicamente, apesar de ser a regra. As famílias de classes média, média-alta e alta, veem uma necessidade de se manter estabilizados financeiramente, e para isso, logo que seus filhos demonstram capacidade de atuação no trabalho, ali os inserem, isso quando não os obrigam a frequentar cursos para estarem sempre à frente da grande massa.

O atual estado da educação é uma elementar considerável para entender porque o trabalho infantil subsiste. A realidade da educação, precária e fragilizada é um desestímulo para crianças e adolescentes de classes inferiores continuarem no processo de ensino aprendizagem, ou quando não, iniciarem tal processo. A saída é trabalhar. A família e a sociedade exigem.

Como consequência direta da necessidade econômica da família – que reflete na criança e no adolescente dessa família – e de uma visão sem futuro diante do ensino e educação, surge uma auto exigência de independência que se vê realizada no trabalho. É aí que o trabalho infantil ganha mais uma condição de existência que precisa ser coibida pela intervenção estatal para a erradicação por meio de políticas públicas efetivas.

Nas famílias que vivem da agricultura, é comum crianças começarem a trabalhar desde muito cedo, ajudando nos afazeres do campo. Todavia, ao passo que elas vão crescendo as exigências vão aumentando. Sabe-se que trabalhar no campo exige um trabalho braçal forçado e isso é desgastante.

Imagina-se, porém, que mesmo trabalhando essas crianças e adolescentes estejam frequentando a escola. A partir do momento que o trabalho exige demais, o desempenho no processo de ensino-aprendizagem é reduzido, e aos poucos, o interesse na escola acaba. Assim sendo, a dedicação se volta para o trabalho, e não para a escola.

A falta de fiscalização do Estado nas regiões mais afastadas dos grandes centros, em que ocorrem produção em massa de matérias-primas como carvão, cana, fumo, etc., faz surgir a exploração dos grandes produtores – o que não exclui a dos pequenos produtores – de crianças e adolescentes na produção e processamento dessas matérias. Normalmente essas crianças e adolescentes são pobres e precisam do trabalho para ajudar a família. Além disso, essa exploração ocorre em regiões em que a educação é extremamente precária e não há atuação efetiva do Estado.

Sobre os autores
Adilson Pires Ribeiro

Pós-graduando em Direito Processual Civil pela Faculdade Batista de Minas Gerais (2020).

Silvio José Franco

Mestre em Ciência Jurídica pela UNIVALI (2003). Doutorando em Ciência Jurídica pela UNIVALI, em dupla titulação com a Universidade de Alicante (ES). Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, Juiz de Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Adilson Pires; FRANCO, Silvio José. Trabalho infantil: notas sobre a realidade de crianças e adolescentes negligenciada pelo Estado à luz das diretrizes dos tratados e convenções internacionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5609, 9 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60827. Acesso em: 22 dez. 2024.

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