5. VINCULAÇÃO, DISCRICIONARIEDADE E MÉRITO ADMINISTRATIVO
Para conseguir concretizar o interesse do povo – titular da coisa pública –, a Administração precisa estar em posição de supremacia sobre os particulares. Destarte, ela dispõe de poderes-deveres que a auxiliam na busca da realização da finalidade pública.
Não obstante, o exercício dos poderes administrativos deve se dar sempre conforme a lei, haja vista que um Estado Democrático de Direito subordina-se ao princípio da legalidade, com o escopo de combater os abusos de poder e as arbitrariedades.
Desse modo, os poderes exercidos pela Administração Pública são regrados pelo ordenamento jurídico. Na lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2006, p. 222), há casos em que tal regramento atinge os vários aspectos de uma determinada atividade, isto é: a lei estabelece a maneira pela qual a Administração Pública deverá agir, sem deixar opções – temos aí o poder vinculado.
A vinculação existirá quando uma lei, ao regular determinada situação, antecipar (ou estabelecer) de maneira rigorosamente objetiva os requisitos necessários para a edição de um ato administrativo perfeito. Assim, sempre que a situação hipotética regulada pela lei ocorrer, a Administração Pública (ou quem lhe faça as vezes) deverá atuar concretamente, através de um ato administrativo que será vinculado (BANDEIRA DE MELLO, 2004, p. 885).
O poder vinculado não deixa opções ao administrador, pois estabelece previamente a forma através da qual se dará a sua atuação – a lei, diante de certa situação de fato, prevê uma única solução possível. Em tais casos, pode ser dito que os particulares, desde que preencham certos requisitos, possuem o direito subjetivo de exigir da Administração Pública a prática de determinado ato administrativo (como, por exemplo, a outorga de uma licença para dirigir automóveis ou de uma admissão para estudar em uma escola pública) (DI PIETRO, 2006, pp. 222; 238).
Por outro lado, em certas hipóteses a lei não regra todos os aspectos de uma determinada atividade administrativa, deixando uma parcela de liberdade decisória para que o administrador, diante do caso concreto, escolha uma dentre as soluções possíveis e válidas. Nessas hipóteses, a Administração Pública faz uso do poder discricionário, que lhe permite encontrar uma solução para o caso concreto seguindo critérios próprios de oportunidade, conveniência, justiça e equidade (DI PIETRO, 2006, p. 222).
Ao conceituar a discricionariedade, Celso Antônio Bandeira de Mello (2012, p. 48) nos lembra que o seu exercício deve estar sempre condicionado aos limites de razoabilidade, de modo que seja possível concretizar a finalidade legal:
Discricionariedade, portanto, é a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução unívoca para a situação vertente.
O motivo e o objeto são requisitos do ato administrativo que, a depender da situação, poderão ser discricionários, ou seja, poderão ser decididos livremente pela Administração Pública, desde que respeitado o princípio da legalidade e, por conseguinte, os princípios da finalidade, razoabilidade e proporcionalidade.
Destarte, percebe-se que o motivo e o objeto do ato administrativo discricionário guardam relação direta com o mérito administrativo, porque este estará presente “toda vez que a Administração decidir ou atuar valorando internamente as consequências ou vantagens do ato” (MEIRELLES, 2004, p. 152).
Nesse mesmo sentido é o conceito de Celso Antônio Bandeira de Mello (2004, pp. 888-889) sobre o mérito administrativo:
Mérito do ato é o campo de liberdade suposto na lei e que efetivamente venha a remanescer no caso concreto, para que o administrador, segundo critérios de conveniência e oportunidade, decida-se entre duas ou mais soluções admissíveis perante a situação vertente, tendo em vista o exato atendimento da finalidade legal, ante a impossibilidade de ser objetivamente identificada qual delas seria a única adequada.
O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 647417/DF[9], no ano de 2004, ao discorrer sobre o mérito do ato administrativo, enfatizou a obrigatória observância aos limites de legalidade e legitimidade por parte do administrador, sob pena de configuração de ato arbitrário:
Vale salientar, ainda, que mérito significa uso correto da discricionariedade, ou seja, a integração administrativa. Com observância do limite do legal e o limite do legítimo, o ato tem mérito. Caso contrário, não tem mérito e deixa de ser discricionário para ser arbitrário e, assim, sujeito ao controle judicial.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através desse artigo, foi desenvolvido um estudo acerca do ato administrativo, com análise da sua origem, dos seus requisitos e dos conceitos de vinculação, discricionariedade e mérito administrativo.
Através de breve contextualização histórica, pôde-se observar que a origem do ato administrativo remonta ao surgimento do princípio da legalidade e ao reconhecimento do Estado de Direito.
Também foram trazidas definições de célebres autores a respeito das distinções entre os conceitos de fato administrativo, fato da administração e ato da administração, para então possibilitar uma análise centrada nos principais conceitos de ato administrativo em sentido amplo, ato administrativo em sentido estrito e ato administrativo propriamente dito.
Para o estudo dos requisitos do ato administrativo, o trabalho se valeu de regras constantes das Leis nº 4.717/1965 e nº 9.784/1999 e da Constituição da República, trazendo em seguida os conceitos doutrinários de vinculação e discricionariedade e as suas principais implicações sobre os requisitos do ato administrativo e sobre a análise do mérito administrativo.
A título de arremate, cabe repisar que o princípio da legalidade tem relação direta e específica com o Estado de Direito, sendo responsável por qualificá-lo e lhe conferir identidade própria, já que a expressão “Estado de Direito” pode ser entendida como “Estado sujeito a um ordenamento jurídico” – sujeito à lei.
Ao discorrer sobre a origem do princípio da legalidade, Celso Antônio Bandeira de Mello (2004, p. 91) o define como:
[...] basilar do regime jurídico-administrativo, já que o Direito Administrativo (pelo menos aquilo que como tal se concebe) nasce com o Estado de Direito: é uma consequência dele. É o fruto da submissão do Estado à lei. É, em suma: a consagração da ideia de que a Administração Pública só pode ser exercida na conformidade da lei e que, de conseguinte, a atividade administrativa é atividade sublegal, infralegal, consistente na expedição de comandos complementares à lei.
Hely Lopes Meirelles (2008, p. 89), ao conceituar tal princípio, evidencia o amplo grau de responsabilidade a que será submetido um agente público que eventualmente descumprir a lei. Para ele, a adoção do princípio:
[...] significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso.
Nesse contexto, caso a discricionariedade seja exercida fora dos limites estabelecidos pela lei, a atuação administrativa será arbitrária. Ao diferenciar a discrição do arbítrio (ação antijurídica), José Cretella Júnior (1998, pp. 147-148) ressalta que:
Arbítrio não se confunde com discrição. Arbítrio não é a possibilidade de agir ou não agir de acordo com uma norma. Arbítrio é a ação em desacordo com a norma jurídica de um determinado sistema. Poder arbitrário é, pois, a faculdade que tem o agente público de agir totalmente em desacordo com a norma jurídica.
Discrição, ao contrário de arbítrio, é a faculdade de agir ou de não agir, de acordo com uma norma jurídica prévia. Arbítrio é ação antijurídica; discrição é ação jurídica. Se entre múltiplas opções o administrador seleciona, conforme sua vontade, passando por cima da lei, temos o arbítrio; se, entre muitas hipóteses dentro da lei , o administrador seleciona a mais oportuna ou a mais conveniente, temos a discrição.
Por todo o exposto, conclui-se: sempre que o administrador, fazendo uso do poder discricionário, praticar atos administrativos dentro da regra de competência (em respeito aos limites de legalidade e legitimidade) e de acordo com critérios de oportunidade, conveniência, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, justiça e equidade, existirá o mérito administrativo, que pode ser definido como o uso correto da discricionariedade com vistas ao exato atendimento da finalidade legal.
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BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. 13 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015.
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CRETELLA JÚNIOR, José. Manual de direito administrativo. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
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