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O direito à liberdade de manifestação de pensamento e o poder de polícia

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A liberdade de manifestação de pensamento é elemento importante quando se pensa na convivência social, devendo ser usufruída nos estritos limites da ordem jurídica, para o bem de todos e de cada um.

Introdução

A Constituição da República tem, em seu bojo, dentre outras, normas concernentes à estruturação do Estado, à formação dos poderes públicos, à forma de governo, à aquisição do poder, à distribuição de competências e, como não poderia deixar de ser, aos direitos fundamentais.

Dentre tais direitos, encontra-se assegurado um amplo acesso à informação a partir de variadas fontes. Nesse contexto, a liberdade do pensar é livre, cabendo a cada pessoa controlar aquilo que pretende exteriorizar.

A propósito, esse direito fundamental está previsto na Constituição Federal de 1988, nos incisos IV e V do art. 5º, e possui ligações com outros dispositivos, interessando mencionar encontrar-se passível a limites diversos, merecendo análise, inclusive, frente ao poder de polícia.

O poder de polícia está relacionado ao poder estatal de império que, para os fins propostos neste texto, pode ser definido como aquele poder que a administração pública tem de proteger os interesses públicos, que, invariavelmente, se contrapõe aos individuais, principalmente, quando da exteriorização de pensamentos, como conceitua José Cretella Júnior:

“A polícia é [...], a atividade exercida pelo Estado para assegurar a ordem pública e particular mediante limitações impostas à liberdade coletiva e individual dos cidadãos, tem âmbito mais restrito do que o poder de polícia que é a faculdade atribuída pela Constituição do poder legislativo para regulamentar os direitos individuais, promovendo o bem-estar geral” (CRETELLA JUNIOR, 2006, p. 423).

Este poder poderá ser exercido, assim, quando de eventos e manifestações não tranquilas, afim de garantir a ordem pública e a segurança da população.

Sua função, nesse sentido, será resguardar os mais diversos direitos, podendo promover o bem-estar social. Ademais, de acordo com José Maria Pinheiro Madeira “[...] há de ser garantida através de mecanismos de segurança pública, que haverão de ser dotados por órgãos específicos” (MADEIRA, 2000, p. 85).

De todo modo, seu exercício não poderá, no âmbito de um Estado Democrático de Direito, violar direitos fundamentais, como a liberdade de manifestação de pensamento ou expressão.

Por essa razão, no presente artigo, pretende-se discutir alguns aspectos do direito fundamental à liberdade de manifestação de pensamento e suas correlações com o poder de polícia.

Para apresentar nossas ideias, faremos uma breve análise do Estado Democrático de Direito, quando se procurará deixar claras as possibilidades coletivas e individuais oferecidas pelo mesmo.

Num segundo momento, tratar-se-á do direito fundamental individual manifestação de pensamento e de sua correlação com o poder de polícia. Serão citados, nesse momento, alguns casos concretos ocorridos no Brasil a fim de demonstrar como os interesses aqui trabalhados, por vezes, encontram-se tensionados, reivindicando, por essa razão, reflexões e debates.


1. O Estado Democrático de Direito

O Estado de Direito se apresenta como uma situação jurídica na qual o que impera é a norma jurídica.

Essa consideração é de suma importância, pois sua caracterização tem íntima relação com a proteção e a efetividade dos direitos humanos fundamentais, dentre os quais encontra-se imerso o direito à manifestação de pensamento.

Para Paulo Nader, a elaboração do conceito de Estado de Direito:

“[...] mediante a indicação de caracteres foi considerada por Ulrich Klug uma tarefa plena de dificuldades. Em seu lugar, o jurista alemão adotou o método da delimitação negativa, recorrendo ao modelo de pensamento que denomina por máxima de controle: não haverá Estado de Direito quando uma pessoa puder exercer sobre uma outra um poder incontrolado” (NADER, 2000, p. 135).

Ao que tudo indica, quando Ulrich Klug afirmara requerer o Estado de Direito que uma pessoa não tenha um poder insuscetível de controle sobre as outras, teve em vista, acima de tudo, o direito à liberdade, tão caro ao Estado Democrático de Direito. Basta entender, no entanto, no que consiste este último.

Como conhecido, o Estado Democrático de Direito encontra-se consagrado no caput do art. 1º da Constituição da República Federativa do Brasil.

Pelo que se constata, trata-se o instituto do regime de Estado/Governo adotado no território nacional, encontrando diversas conceituações na doutrina constitucional pátria.

A título de ilustração, acerca do seu significado, Miguel Reale, já há algum tempo, escreveu:

“[...] é um verdadeiro processo histórico incessante sempre se admitindo uma maior democratização do que é democrático. Não é à toa que o Estado Democrático de Direito é fundado em uma constitucionalização aberta, que define os princípios básicos, mas que permite várias categorias possa ser diferenciado ao longo do tempo” (REALE, 1998, p. 305).

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Não se pode negar, pela abertura mencionada por Miguel Reale, o Estado Democrático de Direito é, ao mesmo tempo, um princípio fundamental e a própria ordem que resulta da aplicação desse princípio.

Geisa de Assis Rodrigues aponta três decorrências fundamentais da sua estruturação, as quais se encontram intimamente vinculadas ao valor da cidadania e da dignidade da pessoa humana, fundamentos do Brasil, nos termos, respectivamente, dos incisos II e III do art. 1º da Constituição Federal. São elas: 

“a) a tendência á dimensão participativa da democracia; b) a garantia do acesso á justiça de direitos transindividuais e a concepção de uma instituição especialmente dedicada á defesa da democracia e dos direitos, como o Ministério Público; e c) o compromisso inarredável com a probidade da gestão dos recursos públicos” (RODRIGUES, 2002, p. 10).

Nesse segmento, importa encará-lo como um conceito aberto, passível de diversas denominações jurídicas, agregando os direitos conquistados nos regimes anteriores, liberal e social, sem, entretanto, deixar de fixar “olhos” às transformações sociais atuais e futuras.

A afirmação procede porque o Estado Democrático de Direito pode ser definido como aquele que congrega os anseios dos Estados Liberal e Social, sem, contudo, deixar de contemplar, se legítimas, as reivindicações sociais, políticas, econômicas e culturais oferecidas por este tempo, cujas características de extrema pluralidade e heterogeneidade ganham mais relevo.

Tais palavras foram expostas porque o Estado Democrático de Direito, tendo em vista sua consagração constitucional, sucedeu os dois regimes anteriores, sem abandonar, entretanto, suas conquistas, quando se pensa nos direitos normativamente reconhecidos e na busca por sua efetivação.

Fortalecendo essas ideias, pense-se, o Estado Liberal é marcado por uma revolução cujo resultado tem como lema direitos fundamentais individuais e políticos, como vida, liberdade, igualdade, propriedade, votar e ser votado (dentro de certos requisitos), entre outros, enquanto as revoluções provindas do Estado Social tiveram como “pano de fundo” a conquista normativa de direitos fundamentais sociais como, dentre outros, trabalho, saúde e educação, além dos direitos econômicos.

Posto isso, o Estado Democrático de Direito, do nosso ponto de vista - até mesmo porque não há, na literatura jurídica especializada, uma definição que abrace todas as possibilidades pelo mesmo oferecidas - possibilita, além da busca pela consecução dos direitos ora descritos, maior liberdade ao indivíduo no sentido de se autodeterminar[1].


2. A manifestação de pensamento na Constituição Federal de 1988

Stuart Mill, um dos principais defensores da liberdade de expressão, argumentou que:

[...] a verdade tem maior probabilidade de vir á tona quando existe um “mercado” de ideias livremente divulgadas e debatidas, de modo que os cidadãos poderão tomar decisões mais acertadas se as diversas opiniões políticas puderem circular sem interferências (MILL, 2006, p. 164).

A difusão de ideias, de tal modo, para além da constatação da verdade, tem importâncias individual e coletiva.

Individual no sentido de que aquele a expressar tem a oportunidade de passar, a outrem, seus posicionamentos, e, eventualmente, ensinamentos.

Coletiva pelo fato de que a diversidade de conhecimentos poderá contribuir para o bom entendimento das relações, para o crescimento grupal e para o reconhecimento do outro como componente social construtor.

A Constituição Federal de 1988 estabelece, no âmbito do art. 5º, incisos IV, V, que é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato, bem como ser assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem.

Esse direito à liberdade de manifestação de pensamento, ou de expressão, à luz do inciso IV do art. 5º da Carta Magna, possui diversas conotações e pode ser utilizado de variadas formas, como aduziram Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco:

“Incluem-se na liberdade de expressão faculdades diversas, como a de comunicação de pensamentos, de ideias, de informações, de críticas, que podem assumir modalidade não verbal (comportamental, musical, por imagem etc.). O grau de proteção que cada uma dessas formas de se exprimir recebe costuma variar, não obstante todas terem amparo na Lei Maior. [...] A liberdade de expressão é, então, enaltecida como instrumento para o funcionamento e preservação do sistema democrático (o pluralismo de opiniões é vital para a formação de vontade livre)”. [...] O ser humano se forma no contato com o seu semelhante, mostrando​-se a liberdade de se comunicar como condição relevante para a própria higidez psicossocial da pessoa. O direito de se comunicar livremente conecta​-se com a característica da sociabilidade, essencial ao ser humano” (MENDES; BRANCO, 2017, p. 233-234).

Como ressaltado outrora e ratificado pelas palavras acima apresentadas, o ser humano contribui para o crescimento e bem-estar social a partir de seus posicionamentos.

Por outro lado, estará o indivíduo suscetível a, também, com suas manifestações, adentrar na esfera de direitos das demais pessoas, sendo, por essa razão, constitucionalmente, vedado o anonimato.

Acerca da importância de se vedar o anonimato, vejamos as palavras de Nathalia Masson:

“Em outros termos: a Constituição prevê que manifestações que causem dano material, moral ou à imagem de outrem, geram, em contrapartida, o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização (art. 5°, V). Daí a necessidade de vedar o anonimato, para permitir a identificação do autor e tomar possível a resposta proporcional ao agravo (desagravo), bem como o pleito judicial por indenização decorrente dos danos materiais e/ou morais, ou, também, ações penais em casos de crimes contra a honra” (MASSON, 2016, p. 239).

A liberdade de expressão merece interessante pontuação a partir de um julgado emblemático, proferido pelo Supremo Tribunal Federal no ano de 2011. A referência diz respeito à famosa “marcha da maconha”, ocorrida em São Paulo e que foi objeto de questionamento na Ação Direita de Inconstitucionalidade – ADI nº 4.274, de relatoria do Ministro Ayres Britto.

De acordo com as informações alocadas no documento A Constituição e o Supremo, de propriedade do Supremo Tribunal Federal, no jugado mencionado, restou decidido que:

“[...] A liberdade de expressão como um dos mais preciosos privilégios dos cidadãos em uma república fundada em bases democráticas. O direito à livre manifestação do pensamento: núcleo de que se irradiam os direitos de crítica, de protesto, de discordância e de livre circulação de ideias. Abolição penal (abolitio criminis) de determinadas condutas puníveis. Debate que não se confunde com incitação à prática de delito nem se identifica com apologia de fato criminoso. Discussão que deve ser realizada de forma racional, com respeito entre interlocutores e sem possibilidade legítima de repressão estatal, ainda que as ideias propostas possam ser consideradas, pela maioria, estranhas, insuportáveis, extravagantes, audaciosas ou inaceitáveis. O sentido de alteridade do direito à livre expressão e o respeito às ideias que conflitem com o pensamento e os valores dominantes no meio social. Caráter não absoluto de referida liberdade fundamental (CF, art. 5º, IV, V e X; Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 13, § 5º). [...]” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2016, p. 67-68).

Deixou-se claro, assim, que o direito analisado não possui caráter absoluto, sofrendo, portanto, limitações.

As maiorias, por essa razão, não têm o condão de dimensionar o pensar, tampouco as manifestações de pensamentos das minorias, sendo deslegitimas eventuais frustações, supressões ou aniquilações a direitos fundamentais. Inclusive:

“[...] A proteção constitucional à liberdade de pensamento como salvaguarda não apenas das ideias e propostas prevalecentes no âmbito social, mas, sobretudo, como amparo eficiente às posições que divergem, ainda que radicalmente, das concepções predominantes em dado momento histórico-cultural, no âmbito das formações sociais. O princípio majoritário, que desempenha importante papel no processo decisório, não pode legitimar a supressão, a frustração ou a aniquilação de direitos fundamentais, como o livre exercício do direito de reunião e a prática legítima da liberdade de expressão, sob pena de comprometimento da concepção material de democracia constitucional. A função contramajoritária da jurisdição constitucional no Estado Democrático de Direito. Inadmissibilidade da “proibição estatal do dissenso”. Necessário respeito ao discurso antagônico no contexto da sociedade civil compreendida como espaço privilegiado que deve valorizar o conceito de “livre mercado de ideias”. [...]” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2016, p. 67-68).

Não se pode deixar de ressaltar aqui, também, a previsão do inciso IX do art. 5º da Carta da República, cuja previsão consagra ser livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.

O dispositivo constitucional permite afirmar que “[...] em princípio, manifestações não verbais também se inserem no âmbito da liberdade constitucionalmente protegida”. (MENDES; BRANCO, 2017, p. 238). Nesse sentido:

“A expressão corporal, por exemplo, com o intuito de arte engajada, abarca vasta gama de situações. É possível, porém, que comportamentos expressivos (as também chamadas expressões simbólicas) recebam uma ponderação menor quando confrontados com outros valores constitucionais, propendendo por ceder a estes com maior frequência do que a verificada nos casos de expressão direta de pensamento. Percebe​-se, é bem que se diga, que o grau de tolerância para com as expressões simbólicas varia de cultura para cultura, de país para país, como também de tempos em tempos numa mesma localidade. [...] No direito brasileiro, a propósito, o STF registra precedente em que se afastou a punição criminal, como atentatória ao pudor, de conduta de certo diretor de teatro, que reagiu a vaias, expondo as nádegas desnudas ao público. Considerou​-se o tipo de espetáculo em que o acontecimento se verificou e o público que a ele acorreu, para se ter, no episódio, o intuito de expressão simbólica como preponderante sobre os valores que a lei penal visa tutelar” (MENDES; BRANCO, 2017, p. 238-239).

Cumpre citar, finalmente, a Constituição Federal prevê limitações expressas à liberdade de expressão, nos termos do art. 220 e do art. 221.

O primeiro regulamenta questões relativas à liberdade jornalística, à vedação de censura de cunhos políticos, ideológicos e artísticos e ao consumo de tabaco, bebidas entre outros.

“Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

§ 3º Compete à lei federal:

I - regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada;

II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.

§ 4º A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.

§ 5º Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.

§ 6º A publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade” (BRASIL, 2012, p. 74).

Já o segundo se refere aos princípios a serem seguidos no que tange à produção e à programação das emissoras de rádio e televisão. Segundo sua previsão:

“Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:

I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;

II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;

III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;

IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família” (BRASIL, 2012, p. 74).

Sobre os autores
Hugo Garcez Duarte

Mestre em Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DUARTE, Hugo Garcez; COTTA, Lidiane Salgado. O direito à liberdade de manifestação de pensamento e o poder de polícia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5608, 8 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61541. Acesso em: 22 nov. 2024.

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