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A prisão do falido perante a nova ordem constitucional

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Agenda 14/02/2005 às 00:00

4 ) DA PRISÃO PROCESSUAL DO FALIDO

Com o advento da Constituição de 1988, discussões foram travadas acerca da recepção ou não da chamada "prisão do falido" prevista do DL n° 7661, de 21 de Junho de 1.945.

Para um melhor tratamento da matéria, iremos, de acordo com o pensamento de Francisco Raitani (110), dividir o estudo em duas partes, na medida em que a prisão administrativa do falido, estabelecida no art. 35 da Lei de Falências, difere quer da prisão preventiva, a que alude o inciso VI do parágrafo único do art. 14, quer da prisão civil, limitada, na Constituição da República, ao depositário infiel e ao responsável pelo inadimplemento de obrigação alimentar.

4.1) A prisão preventiva

De acordo com o art. 14, parágrafo único, inc. VI , cabe ao juiz, na sentença que declarar a falência, providenciar as diligências convenientes ao interesse da massa, podendo ordenar a prisão preventiva do falido ou dos representantes da sociedade falida, quando requerida com fundamento em provas que demonstrem a prática de crime definido na lei falimentar e, nesta hipótese, a ação penal em face do falido deverá ser imediatamente proposta pelo membro do Ministério Público. (111) (* Ver Notas de Atualização: item D)

Embora alguns autores como Rubens Requião (112) classifiquem as duas hipóteses de prisão como tendo a natureza administrativa, o certo é que doutrina e jurisprudência, de forma quase unânime, consideram a prisão prevista no art. 14 como preventiva, decretada para garantir a ordem pública ou por conveniência da instrução criminal, caracterizando-se portanto, como autêntica medida cautelar de caráter processual penal. (113)

Consoante o art. 193 da lei falimentar, o juiz, de ofício (114) ou a requerimento do representante do Ministério Público, do síndico ou de qualquer credor, pode decretar a prisão preventiva do falido e de outras pessoas submetidas a esse estatuto.

Assim, a prisão pode ser decretada tanto na sentença declaratória de falência, como em qualquer fase posterior, não havendo necessidade de inquérito judicial ou policial para tal medida. (115)

Senão vejamos. Conceitua-se o inquérito judicial como um conjunto de atos praticados com vista à apuração de fatos ou circunstâncias que possam servir de fundamento à ação penal por crime falimentar. (116)

Se o Ministério Público obtém elementos necessários para viabilizar o exercício da ação através da notitia criminis ou das peças de informação, conclui-se, portanto, que o inquérito – judicial ou policial - não é indispensável à propositura da ação.

No Código de Processo penal é possível extrair essa conclusão através dos arts. 12, 27, 39, parágrafo 5° e 46, parágrafo 1°. (117)

Seguindo este entendimento:

"Habeas Corpus. Falência. Prisão preventiva. A falta de inquérito destinado a apurar os crimes atribuídos aos falidos não impede a decretação da prisão preventiva dos falidos. Justifica-se a prisão preventiva do falido que nada alega em sua defesa e desaparece com os bens, fechando o estabelecimento, além de pagar uns credores com sacrifício de outros". (118)

Também não há como sustentar o argumento de que como a sentença é preferida por juiz cível, este não seria competente para a decretação da prisão cautelar, na medida em que não há desrespeito ao art. 5°, inc. LXI da Constituição da República quando a prisão é decretada por autoridade judicial. (119)

Neste sentido:

"O fato de, no processo penal falimentar, assistir competência funcional translativa, reservando-se ao juiz de falência o despacho liminar e ao juiz criminal os demais atos processuais, não retira ao primeiro a cognição de pedido de prisão preventiva, pois, criada a relação jurídica processual, tem o juiz, por força da jurisdição, plana capacidade de exercer todos os poderes a ela inerentes, enquanto, perante ele, transcorre o processo. (...) Se determinado juiz conhece da causa, dos demais igualmente competente, guarda sua competência por força da prevenção, afastando os demais critérios de fixação da competência, notadamente a distribuição." (120)

O projeto de lei n° 4376 de 1993, em seu art. 71, dispõe que "caberá prisão preventiva do falido por ordem do juiz, de ofício, a requerimento do síndico, do Ministério Público ou de qualquer credor, quando houver prova da existência de crime falimentar." (* Ver Notas de Atualização: item E)

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4.2) A prisão administrativa

No dia 10 de Dezembro de 2003, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça aprovou o Enunciado da Súmula n° 280, concluindo pela inexistência, no ordenamento jurídico brasileiro, da prisão administrativa em caso de falência. A Súmula tem a seguinte redação: "O artigo 35 do Decreto-Lei n° 7.661/45, que estabelece a prisão administrativa, foi revogado pelos incisos LXI e LXVII do art. 5° da Constituição Federal de 1988."

A justificativa para a edição da Súmula é que este entendimento há muito se firmou, tanto no STJ quanto no STF. O certo é que a questão apresenta razoável complexidade e, observando as decisões destes tribunais, parece precipitada a afirmação de que exista um consenso acerca da matéria.

O primeiro fundamento do enunciado é que a prisão administrativa entraria em confronto com o art. 5°, inciso LXI da Constituição da República. Merece lembrança, a propósito, o referido inciso:

"Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei."

Assim, os acórdão mais recentes, especialmente no STJ, resumem-se à lacônica afirmação de que a prisão prevista no art. 35 da lei falimentar não prevalece em face da nova ordem constitucional.

"Habeas Corpus. Falência. Prisão Administrativa. A prisão administrativa prevista no art. 35 da Lei de Falências não subsiste, porque em desacordo com os incisos LXI e LXVII do art. 5° da Constituição Federal." (121)

Em contrapartida, há decisões no sentido de se admitir a prisão desde que esta seja decretada por juiz competente e esteja devidamente fundamentada.

"...não tem validade jurídica o decreto de prisão administrativa prolatado em processo falimentar quando o mesmo é desprovido de qualquer fundamentação, impondo-se a concessão de Habeas Corpus, mesmo de ofício, em face da presença de constrangimento ilegal. Recurso ordinário não conhecido. Habeas Corpus concedido de ofício." (122)

"Falência. Prisão administrativa. Ordem. Fundamentação (necessidade). Por ordem do juiz, pode o falido ser preso, faltando ao cumprimento dos deveres que lhe são impostos por lei. Impõe-se, no entanto, que a ordem da autoridade judiciária esteja fundamentada. Caso em que não se fundamentou o despacho que decretou a prisão. Recurso ordinário em Habeas Corpus provido." (123)

Dessa forma, esta posição, divergente da Súmula, classifica a prisão do art. 35 da lei falimentar como uma espécie peculiar de prisão administrativa, decretada pelo juiz no processo judicial de falência, que "não se confunde com outra modalidade da denominada prisão administrativa decretada por autoridades não judiciárias, reputada abolida pelo Supremo Tribunal Federal." (124)

Para o eminente Ministro Assis Toledo, em razão das dificuldades opostas pelo falido ao regular andamento do processo, seja dificultando a realização das intimações, a alienação dos bens ou qualquer obrigação contida no art. 34 da Lei de Falências, resta apenas a decretação da prisão, devidamente fundamentada pela autoridade judicial. (125)

Através de uma análise mais aprofundada do art. 5°, inciso LXI, verifica-se que a Constituição teve por objetivo a vedação da prisão ordenada por autoridade não judicial, resguardando, portanto, o princípio do devido processo legal e assegurando em mais um aspecto o direito à liberdade.

Assim, o que não é admitido desde 1988 é a prisão determinada por autoridade policial, fazendária ou administrativa:

"Não se pode olvidar que a denominada prisão administrativa visava essencialmente acautelar a Fazenda Pública, possibilitando a segregação de responsáveis por dinheiro ou valor a ela pertencente, em caso de dano ao erário e, com este intuito, a legislação infraconstitucional previa, em diversos diplomas, os casos de prisão administrativa." (126)

É, portanto, claramente percebível a finalidade diversa da prisão do falido, pois esta constitui apenas um meio de coerção para que os administradores da sociedade cumpram com as obrigações impostas pela lei falimentar.

Obrigações estas que não apresentam apenas cunho formal, mas que são realmente necessárias, senão imprescindíveis, para o bom andamento do processo. Como exemplo, tem-se que uma das obrigações do falido é a entrega de livros, bens e documentos da sociedade, cuja omissão constitui crime falimentar, por si só, nos termos do art. 188, inciso VIII, da Lei de Falências. Assim, omitindo-se na entrega dos livros obrigatórios da sociedade, "o sócio consuma o delito de supressão, que é de perigo presumido e de mera conduta, pelo que, intimado para depositá-lo e transcorrido o momento próprio no processo falimentar, passa a incidir nas sanções penais." (127)

Conclui-se então, que a prisão prevista no art. 35 da Lei de Falências discrepa totalmente da prisão administrativa convencional, pelo seu próprio escopo e até mesmo por sua natureza, pois

"não se pode negar que esta prisão, em que pese não ter natureza punitiva e sim coercitiva, pelas razões invocadas apresenta uma feição sui generis, porque previne a perpetração de ilícito falimentar, sendo inarredável o seu cunho acautelatório da própria ordem econômica, atualmente tutelada juridicamente e incluída como fundamento para a decretação da custódia preventiva por força da Lei n° 8.884/94, que modificou a redação do art. 312 do CPP." (128)

O segundo argumento invocado pela Súmula 280 do STJ é que a prisão administrativa do falido afronta o art. 5°, inciso LXVII da Magna Carta, posto que em face da nova ordem constitucional, a prisão civil restringiu-se à exclusivas hipóteses do depositário infiel e do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia. (129)

Entretanto, parte da doutrina e algumas decisões judiciais têm analisado a prisão administrativa do falido como um meio executivo de coerção para o cumprimento de obrigação ou dever civil, não tendo relação com a prisão civil por dívida, esta sim, salvo as exceções constitucionais, abolida do ordenamento jurídico brasileiro.

Para os que defendem esta posição, a prisão autorizada pelo art. 35 da lei falimentar não se destina a impelir o sócio ao pagamento de qualquer dívida, mas para que compareça a juízo e cumpra com os deveres impostos pela lei. (130)

Até porque, em razão do princípio da autonomia patrimonial, as dívidas da sociedade não se confundem com as dívidas pessoais dos sócios, pelo menos nos tipos societários mais comuns no direito brasileiro: as sociedades anônimas e as sociedades por cotas de responsabilidade limitada. (131)

Isto posto, a melhor hermenêutica do art. 5°, inciso LXVII da Constituição da República é a de que a proibição da prisão civil por dívida restringe-se a impedir a segregação do devedor de dinheiro ou de valores nas situações não excepcionadas no referido inciso.

Um outro argumento utilizado para sustentar a constitucionalidade da prisão do art. 35 é de que o inciso LXVII do art. 5° da CR, com uma redação mais concisa ou não, esteve presente em quase todas as Constituições Brasileiras, com exceção da Carta fascista de 1937, e mesmo assim, o STF nunca entendeu estar revogada a norma permissiva da prisão do falido. Embora o Min. Vicente Leal, membro do STJ, entenda que o inciso é substancialmente diverso por não conter a expressão "nos termos da lei", o que ocasionou a não recepção do art. 35. (132)

Para ilustrar a posição da Suprema Corte em relação à matéria, tem-se o Recurso de Habeas Corpus n° 50.225, julgado em 27 de Novembro de 1972 – na vigência, portanto, da Constituição de 1967 – cujo relator, o Sr. Min. Bilac Pinto assim se manifesta:

"Trata-se de prisão administrativa decretada por juiz competente; autorizada, em tese, pelo texto do art. 35 da Lei de Falências; e revestida das formalidades legais, inclusive quanto ao prazo.

Sustenta o douto advogado do recorrente que, tendo tal medida um caráter essencialmente coercitivo, não poderia ela se transfigurar em punição por algo que o paciente deixou de fazer; não em virtude de desídia, mas de real impossibilidade.

Os autos não comprovam, todavia, a liquidez dessa impossibilidade. Pelo contrário, as circunstâncias alegadas pelo paciente com o objetivo de se exonerar da apresentação dos livros contábeis, por sua fragilidade, induzem a crer na eficácia da medida coercitiva determinada pelo juiz.

Procuro atentar, na interpretação do art. 35 da Lei de Falências, ao consagrado princípio do efeito útil. Caso prevalecesse a tese sustentada pelo recorrente, ter-se-ia que a prisão administrativa em causa só poderia ser decretada na hipótese, particularmente rara, de o falido faltar às suas obrigações legais sem oferecer qualquer justificativa, ou proclamado expressamente sua contumácia. A prisão administrativa estaria gorada, liminarmente, sempre que o falido procurasse explicar sua omissão.

Na espécie, a tentativa de justificar a não apresentação dos livros contábeis não convenceu o magistrado. Nenhuma prova concreta de impossibilidade figura nos autos, sendo irrelevante o manuscrito de fls. 27, em que um particular, por sinal o contador das empresas do paciente, declara que aqueles livros haviam ficado em poder de outro contador. Nem sequer se procurou explicar, convenientemente, porque razão tal pessoa estaria a sonegar os livros, ou que medida teria sido tomada para compeli-la a fazê-lo.

Em síntese, a prisão administrativa do paciente foi decretada nos termos da lei, e à luz do convencimento do magistrado, nada havendo nos autos que prove o suposto erro de suas conclusões quando do exame da situação de fato." (133)

Desse modo, é possível a conclusão de que qualquer outra interpretação do dispositivo constitucional objetivando a extirpação da prisão do falido, isto é, dos administradores, gerentes ou liquidantes da sociedade falida do ordenamento jurídico irá retirar um importante instrumento do magistrado na busca por um processo falimentar que vá além da mera "formalização de prejuízo dos credores", inviabilizando, assim, a proteção ao crédito e à ordem econômica.

Posto que, ao contrário do que prega algumas decisões do STJ (134), de pouco adiantaria qualquer dever legal sem o surgimento, em paralelo, da coação. Porque a ameaça, na lição de Rubens Aguiar Magalhães, traz resultados tênues e "poderia o falido não atender às obrigações a ele impostas, e tudo ficaria por isso mesmo, mas ao revés, quem se apressa a cumprir a lei é ele próprio, não só pelo zelo que deve merecer seus bens, como, também, pela intimidação decorrente da norma legal." (135)

O projeto de lei n° 4376 de 1993 não difere muito do Decreto-Lei n° 7661/45 no que se refere a medidas coercitivas. Eis a redação do art. 70 (* Ver Notas de Atualização: item F):

"O falido e o sócio ilimitadamente responsável que deixarem de cumprir os deveres impostos por esta lei ou resistirem injustificadamente às ordens do juiz poderão ser presos, por sua ordem, de ofício, a requerimento do síndico, do Ministério Público ou de qualquer credor.

Parágrafo único – A prisão não excederá de sessenta dias, e da sua decretação cabe agravo, sem suspensão da execução da ordem."

Sobre a autora
Janaina Reis Nogueira

bacharel em Direito pela UERJ, pós-graduada em Advocacia Criminal pela Universidade Cândido Mendes

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOGUEIRA, Janaina Reis. A prisão do falido perante a nova ordem constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 587, 14 fev. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6319. Acesso em: 29 dez. 2024.

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