3 Os Vícios do Inquérito e a Ação Penal
O procedimento inquisitorial como etapa que antecede, mas não condiciona a propositura da ação penal pode estar sujeito a vícios. Considerando apenas os aspectos investigativos, é possível que provas tenham sido colhidas, por exemplo, sem que tenham sido observados os direitos e garantias constitucionais, ou por outro plano, que não tenha sido determinada uma diligência essencial, como o exame de corpo de delito. Então a questão que se aborda é: até onde um vício inerente ao inquérito pode afetar a ação penal?
Considerando a independência que existe entre a fase administrativa e a processual, ensina Avena:
Por fim, cabe ressaltar a independência formal do inquérito em relação ao processo criminal que, com base nele, for instaurado. Portanto, no caso de serem inobservadas, na sindicância policial, normas procedimentais estabelecidas para a realização de uma determinada diligência, a consequência não será a nulidade automática do processo, mas unicamente a redução do já minimizado valor probante que é atribuído ao inquérito. Neste sentido, são reiteradas as decisões do Superior Tribunal de Justiça, compreendendo que eventual mácula no procedimento policial não contamina a ação penal superveniente, vez que aquele é mera peça informativa, produzida sem o crivo do contraditório (RHC 21.170/RS, DJ 08.10.2007). (AVENA, 2014)
Outras situações, entretanto, podem se apresentar, trazendo uma complexidade maior ao tema. Analisaremos, primeiro, aquela em que o vício presente no inquérito inquinou de ilegalidade várias provas trazidas aos autos, como no caso de uma interceptação telefônica realizada de maneira clandestina e que culminou com a deflagração de buscas que vieram a colher provas do crime, e que todas essas evidências deram origem à ação penal. Na lição de Távora e Alencar:
Já se durante o inquérito obtivermos, por exemplo, uma confissão mediante tortura, e dela decorra todo o material probatório em detrimento do suposto autor do fato, como uma busca e apreensão na residência do confidente, apreendendo-se drogas, é de se reconhecer a aplicação da teoria dos frutos da árvore envenenada ou da ilicitude por derivação, isto é, todas as provas obtidas em virtude da ilicitude precedente deverão ser reputadas inválidas, havendo assim clara influência na fase processual. (TÁVORA; ALENCAR, 2013)
Assim, se no contexto dessa ação penal houver outras provas, sem relação com a ilegalidade, poderão essas ser aproveitadas, com o prosseguimento da ação penal.
Situação diversa ocorre se a ação penal for fruto unicamente de um inquérito viciado, como no caso em que se plantam provas de determinado crime, a fim de incriminar determinada pessoa. Nesse caso, ainda segundo os mesmos autores:
[...] podemos facilmente concluir que caso a inicial acusatória esteja embasada tão somente em inquérito viciado, deverá ser rejeitada por falta de justa causa, diga-se, pela ausência de lastro probatório mínimo e idôneo ao início do processo, com fundamento no art. 395, inciso VI, do CPP, com redação inserida pela Lei no 11.719/08. (TÁVORA; ALENCAR, 2013)
4 O Valor Probatório do Inquérito Policial
Tendo em face a natureza administrativa do inquérito, e as características acima relacionadas, passemos a analisar como pode o valor probatório do inquérito variar de acordo com as circunstâncias e condições nas quais foi realizado.
Em linhas gerais, tem-se que o inquérito possui valor probante apenas relativo, e isso é consequência lógica do fato de ser, ele, um instrumento administrativo, no qual estão ausentes o contraditório e a ampla defesa. Nessa direção, Sousa e Cabral:
O inquérito policial fornece o suporte probatório para o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público, mas não pode a autoridade judiciária condenar o réu com base exclusivamente nas informações contidas no inquérito policial, em razão da ausência dos princípios do contraditório e da ampla defesa na fase investigativa (art.155 do CPP). (SOUZA; CABRAL, 2013)
Na lição de Avena:
Considerando a ausência de garantias constitucionais apontadas (ampla defesa e contraditório), há muito tempo consolidaram-se os tribunais pátrios no sentido de que o inquérito policial possui valor probante relativo, ficando sua utilização como instrumento de convicção do juiz condicionada a que as provas nele produzidas sejam renovadas ou ao menos confirmadas pelas provas judicialmente realizadas sob o manto do devido processo legal e dos demais princípios informadores do processo. (AVENA, 2014)
No mesmo sentido Capez:
O inquérito policial tem conteúdo informativo, tendo por finalidade fornecer ao Ministério Público, ou ao ofendido, conforme a natureza da infração, os elementos necessários para propositura da ação penal. No entanto, tem valor probatório, embora relativo, haja vista que os elementos de informação não são colhidos sobre a égide do contraditório e da ampla defesa, nem tampouco na presença do juiz de direito. (CAPEZ, 2012)
Em sentido mais amplo, a posição do professor Machado:
O inquérito policial, como visto, destina-se a colher elementos de convicção acerca de uma prática delitiva, que servem para fundamentar as decisões interlocutórias proferidas nessa fase, bem como para justificar eventual ação penal ou arquivamento do feito.
Assim, é equivocado o entendimento difundido na doutrina pátria de que o inquérito policial seria base apenas pra acusação, uma vez que ampara também o juízo do órgão ministerial e da autoridade judiciária a respeito do arquivamento. (MACHADO, 2010)
Se em um primeiro momento há uma orientação uníssona em sentido de conferir uma enorme fragilidade das provas trazidas pelo inquérito, a lei, amparada por razões lógicas suaviza essa posição.
Nessa esteira, a relativização do valor probante do inquérito está intimamente ligada à espécie das provas produzidas, uma vez que existe a possibilidade de que não seja possível a repetição da produção de provas em momento posterior, seja por razões de tempo ou natureza. Senão, vejamos o que lecionam Sousa e Cabral:
[...] as provas cautelares, irrepetíveis ou antecipadas ganham verdadeiro status de prova na fase processual, conforme ditame do art.155, in fine do CPP, podendo o juiz, nesses casos, fundamentar sua decisão nos elementos informativos construídos na fase de inquérito policial (contraditório diferido ou postergado).
Foi justamente o que aconteceu durante o julgamento do caso do “Mensalão” pelo STF (AP470/MG) quando o relator, Min. Joaquim Barbosa, usou os laudos periciais elaborados durante a fase de inquérito pelo Instituto Nacional de Criminalística da Policia Federal para fundamentar os seus votos que levaram a condenação de 25 dos 38 acusados. (SOUZA; CABRAL, 2013)
Assim, no que tange às provas, temos duas situações, uma primeira que se refere às provas que devam ser reproduzidas ou confirmadas na fase judicial, e mais, além disso, deverão estar coerentes com todo contexto fático. Nada mais justo, afinal, um depoimento, por exemplo, que venha a ser refeito diante do juiz, pode ser alterado, ainda que perca seu valor se for contraditório ou desprovido de fundamento. A segunda situação diz respeito àquelas que, como foi dito acima, não podem ser refeitas, por serem urgentes ou por perderem-se com o tempo. Esse é o entendimento de Távora e Alencar:
Vale ressaltar, contudo, que existem provas não-repetíveis, também chamadas de não renováveis, que devem ser realizadas imediatamente, pois caso contrário perecerão e não poderão mais ser produzidas, de forma a prejudicar substancialmente a demonstração da verdade. (Távora & Alencar, 2013)
Nesse contexto, podemos tomar como exemplo a perícia do local do crime, onde tenham sido encontrados vestígios que apontem a presença do suposto autor, como exame de DNA (em que o material genético usado no exame se consome) ou impressões digitais (em que seria impossível se preservar o local do crime por anos).
Ora, como se poderia condicionar a validade dessas provas pelo fato de não terem sido produzidas durante a instrução criminal se não é possível manter a cena do crime? Se não fosse a previsão legal de que essas provas possuem valor probatório, o simples fato de a justiça ser morosa levaria à impunidade de todos os crimes que deixassem tais vestígios. Nesse mesmo diapasão ensina Bonfim:
Assim há uma importante classificação das provas, quanto à possibilidade de se repetirem em juízo, em repetíveis e irrepetíveis. As primeiras, como o próprio nome indica, podem ser realizadas novamente sob égide do princípio do contraditório em juízo (v.g., a confissão, o reconhecimento e a oitiva de testemunhas). Já as provas irrepetíveis são aquelas que não podem ser renovadas na fase processual, uma vez que possuem caráter definitivo (v.g., exame de lesões corporais em que os vestígios desaparecerão). (BONFIM, 2012
Como a finalidade do inquérito é a produção de provas, e isso, por conseguinte, orienta a atuação do Ministério Público, o que pode levar à condenação ou absolvição do suspeito, resta saber até onde pode o juiz, com base na sua livre convicção, utilizar-se dessas provas para lastrear sua decisão, quando dissociadas das provas angariadas durante a instrução criminal?
A resposta é simples, uma vez que a própria lei, como veremos, veda apenas a condenação exclusivamente nelas, mas não sua utilização amparada pelas demais provas produzidas durante a fase judicial. Assim, chegamos à conclusão de que, seja qual for a prova trazida no inquérito, uma vez que esteja em consonância com as demais, pode servir ao convencimento do juiz, senão vejamos o que diz Avena:
Importante ter em mente a redação trazida no art.155 não proíbe o juiz de utilizar, como fundamento de convicção, as provas coligidas na fase investigativa, apenas dispondo, que não poderá ele fundamentar-se exclusivamente nessa categoria de provas. Nada impede, então, sejam elas usadas como elementos secundários de motivação, isto é, supletiva ou subsidiariamente, como forma de reforço às conclusões já extraídas do contexto judicializado.
Observe-se que, apesar de exigir como regra que a prova penal seja produzida sob o crivo do contraditório judicial como condição para que possa servir de embasamento às decisões judiciais, há determinadas hipóteses em que a lei ou a jurisprudência estabelecem ressalvas. (AVENA, 2014)
O problema, todavia, fica mais complexo se a condenação houver sido prolatada com base exclusivamente na prova trazida pelo inquérito, ainda que irrepetível. Sobre o tema esclarece Bonfim:
No entanto, a maior parte da doutrina tende a negar a possibilidade de uma condenação lastreada tão somente em provas obtidas durante a investigação policial. Admitem, quando muito, que essas provas tenham natureza indiciária, sejam começos de prova, vale dizer, dados informativos que não permitem lastrear um juízo de certeza no espírito do julgador, mas de probabilidade, sujeitando-se a posterior confirmação. Isso porque sua admissão como elemento de prova implicaria infringência ao princípio do contraditório, estatuído em sede constitucional. (BONFIM, 2012)
Como a questão parece levar a um ponto em que pareça ser incontornável a situação, encontramos, nos ensinamentos de Távora e Alencar, uma solução prática que, além de mitigar o risco de que venha a desqualificar uma sentença condenatória, termina por garantir ao suspeito o exercício do contraditório ainda na fase inquisitorial:
Além de ser recomendável que a autoridade policial, em tais casos, autorize fundamentadamente que o indiciado e/ou seu advogado acompanhe a produção da prova não-repetível, a solução encontra guarida no incidente de produção antecipada de prova, em que ainda durante o inquérito, instaura-se um procedimento, perante o magistrado, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, com a participação das futuras partes do processo, desde que determinada prova seja imprescindível para a prolação de futura sentença, e haja indícios a demonstrar que o perecimento da mesma é provável. (TÁVORA; ALENCAR, 2013)