Resumo: O artigo tem por objetivo fazer considerações sobre as práticas de intolerância religiosa no Brasil, especialmente as que incidem sobre as religiões afro-brasileiras, notadamente o Candomblé e a Umbanda. Neste sentido, analisa dados referentes a denúncias feitas pelo movimento social e por vitimas de racismo e de intolerância religiosa, bem como da forma como se sentem ao perceberem que as agências estatais não darão o devido seguimento de suas denúncias. Outrossim, o texto dedica atenção ao plano nacional de combate à intolerância religiosa, instrumento que pretende dar início a ação estatal na promoção da igualdade racial, na diversidade e no fortalecimento da cidadania do Povo de Santo no Brasil.
Palavras-chave:. Religiões Afro-Brasileiras; Candomblé e Umbanda; Intolerância Religiosa; Políticas Públicas; Ação Afirmativa. Plano Nacional de Combate à Intolerância Religiosa.
Introdução
O presente texto dirige atenção aos casos de intolerância religiosa contra religiões de matriz africana, tais como o Candomblé e a Umbanda. Neste sentido, traz dados desenvolvidos por entidades estatais e não estatais sobre denúncias de violência racial e religiosa, bem como analisa a forma como agências estatais processam essas denúncias. Pretende-se, assim, fazer uma análise sobre as disposições legais sobre o tema e o que é preciso ser feito para a consolidação de direitos à população negra e as pessoas que optaram por seguir religiões afro-brasileiras, vislumbrando no Plano Nacional de Combate à Discriminação uma estratégica ferramenta para o cumprimento desse desiderato.
Dividido em duas partes, a primeira dedicará atenção às relações raciais e o papel da religião na luta contra opressão. Em seguida, nesta parte, serão trazidas informações sobre denúncias de racismo e intolerância religiosa, produzidas por entidades não governamentais e governamentais. Finalmente, comentários à decisão do STF acerca da constitucionalidade da inclusão no currículo de disciplina religiosa de cunha confessional. A segunda parte trata de discutir a importância de um plano de ação que oriente as políticas públicas de combate ao racismo e à intolerância religiosa.
Em uma democracia, esta ação deve ser feita em parceria da sociedade e dos poderes estatais de modo que possam, tendo como orientação os direitos humanos e fundamentais previstos na Constituição e em documentos em que o Brasil é signatário, desenvolver uma ação conjunta, participativa e inclusiva.
Relações raciais e o papel da religião de matriz africana na luta contra a opressão
A religião africana tradicional no período pré colonial estava (e ainda está) inextricavelmente ligada à cultura africana. Aqueles que não haviam se convertido faziam oposição ao domínio colonial e desafiavam as condenações dos missionários, obedecendo a sua fé e praticando os seus ritos de forma aberta ou clandestina. Quando assimilavam a fé do colonizador, adaptava-a ao seu modo, na forma sincrética.
Os africanos empregavam a religião como ferramenta de resistência ao domínio colonial e à ameaça que este domínio representava para os seus valores. Durante as duas primeiras décadas do século XX, os guerreiros Igbo do sudeste da Nigéria empregaram esses meios para se defender contra os invasores estrangeiros. Outros exemplos podem ser citados tais quais os povos Esza, do grupo Abakalili, os Uzuakoli e os Aros. Alguns cultos representavam focos de resistência, como o Mwari, no Zimbábue (antiga Rodésia), e havia associações secretas, como a Poro em Serra Leoa e outras regiões da África. O movimento Maji-Maji, na África oriental de domínio alemão, nas primeiras décadas do século XX, é um dos movimentos mais conhecidos. Embora tenham sido derrotados, o movimento Maji-Maji demonstrou que a religião africana tradicional podia conduzir à unidade contra a pressão europeia, e que ela não era uma força fragmentária, confinada a algumas localidades. Além disso, semeou o germe do nacionalismo africano, que, posteriormente, haveria de crescer e difundir-se na luta pela independência, até o fim do domínio colonial, nos anos 1960.
Nas Américas, estudos, como de Eugene Genovese (1974), destacam que os escravos adotaram a religião cristã ao seu modo, a fim de fortalecer as relações familiares, organizarem-se funcionalmente e construírem uma identidade própria, responsável pela luta contra a escravidão, por meio de fugas, ajuizamento de ações, entre outras formas. O hino Roll, Jordan, roll representa mais do que um canto de alívio ao martírio da escravidão, mas sim um código de união entre os afros americanos e a organização de movimentos, visando a sua libertação. Sob a égide da religião, os negros estadunidenses conseguiram fortalecer a unidade familiar, criar as associações que dariam origem a universidades e entidades de apoio ao crescimento do negro.
Boa parte dos estudos sobre relações raciais feitos no Brasil destacou o papel da escravidão no processo de formação da sociedade brasileira para explicar a condição da população negra no período pós-escravidão. Entretanto, o destaque a infraestrutura, ou seja, como se organizavam as formas de produção na figura de grupo dominante e grupo dominado, pouco focou no papel da religião deste processo. Em verdade, conceberam análises como sendo ela parte da superestrutura simplesmente, sem observar as idiossincrasias que o povo afro-brasileiro possuía naquele período frente ao mundo ocidental (HASENBALG e GONZALEZ, 1981).
Com efeito, a religião compreende um elemento muito relevante mais do que se pode indicar à luz de teses marxistas como parte da superestrutura. A forma sincrética de acomodar catolicismo com as religiões de matriz africana permitiu a sobrevivência de várias religiões cujas nações Jêje, Angola, Congo, Nagô, entre outras conseguiram preservar seus valores e ritos até os dias de hoje. As religiões de matriz africana são o bastião da identidade negra brasileira; espaço de resistência e de diálogo com a sociedade como um todo, tendo papel estratégico no período da escravidão, permitindo a sobrevivência do descendente de africano.
A preservação da língua original através dos rituais religiosos é importante demonstração do papel dos terreiros na resistência negra nas regiões do país onde o sistema escravo vigeu, em particular na Bahia. No passado, os descendentes de africanos tiveram que superar diferenças culturais, tribais e étnicas para a criação de uma unidade cuja figura religiosa representava o centro de referência para a comunidade. Os cultos realizados no Brasil sofreram mudanças, pois, na África, não existiam organizações semelhantes aos terreiros de Candomblé brasileiros, que reúnem, em um mesmo lugar, cultos diversos e originalmente dispersos no território africano (SANT’ANNA, 2014). A manifestação religiosa de matriz africana alcança todas as partes do Brasil, graças ao esforço das pessoas escravizadas e seus descendentes que, de certa forma, entendiam a importância deste conteúdo identitário como forma de resistência e construção de solidariedade. Daí a importância de perceber que a realidade do negro brasileiro esteja associada direta e indiretamente ao papel que a religião desempenhou.
Do outro lado da moeda, porém, a academia brasileira traduziu as religiões de matriz africana através de um olhar exótico, fruto de uma civilização primitiva e pouco desenvolvida (RAMOS, 1995). As religiões de matriz africana passam, atualmente, por um momento crucial: romper um comportamento de baixo perfil e ganhar de maneira intensa visibilidade social, tão necessária, para que a sociedade consiga perceber a sua importância como unidades religiosas que historicamente deram apoio à população negra discriminada, bem como outros segmentos marginalizados. A valorização das religiões de matriz africana corresponde, pois, parte da estratégia da ação de apresentar e consolidar um plano nacional de tolerância. Neste sentido, o fortalecimento de uma ação conjunto do Povo de Santo torna-se necessário.
Dos indicadores sobre existência de prática de intolerância religiosa no Brasil contra o Candomblé e a Umbanda
A prática sistemática de intolerância racial e religiosa em nosso país tem gerado um crescente déficit de cidadania na população nacional, e particularmente exclui os membros da comunidade afro-religiosa da sociedade geral, que são os elos mais fracos da corrente dentre todos os brasileiros, “relegando-os a uma cidadania amedrontada” (ABREU, 1999:151). Os reclamos e as reivindicações dessas vozes, que antes eram isoladas, dos religiosos e das pessoas que vivenciam as religiões de origem africana, agora vêm sendo confirmadas pelas diversas análises de natureza sociológica e antropológica da academia, bem como pelos indicadores produzidos por pesquisas realizadas pelas diversas instituições públicas e organizações da sociedade civil, que têm se debruçado sobre o tema. Esses estudos apontam a marginalização dos integrantes desse grupo social no acesso desigual a direitos e a oportunidades, especialmente junto ao aparelho de Estado, demonstrando o abismo que separam as religiões cristãs (principalmente a Católica e as Evangélicas tradicionais e Neopentecostais) das regiões de Matriz Africana, mormente o Candomblé e Umbanda.
Com isso podemos asseverar, sem medo de estar cometendo engano ou exagero, que o Brasil não é de fato uma democracia social, laica, racial e religiosa. Em favor dos argumentos acima expostos sobre a existente e recorrente prática de intolerância racial e religiosa que incide sobre os religiosos e as pessoas que vivenciam as religiões de matriz africana no Brasil, notadamente o Candomblé e a Umbanda, transcrevermos, como meros exemplos, excertos do “Pré-relatório sobre intolerância religiosa no brasil: informações, estudos de casos, números na tentativa de entender e intervir nos processos de preconceitos”, elaborado por coletivo de entidades públicas de pesquisas e de organizações da sociedade civil atuantes no campo dos direitos humanos e o combate à intolerância religiosa. Este documento aponta a existência da prática de intolerância religiosa em nosso país. Neste sentido, a premissa básica para o entendimento da intolerância religiosa é um “processo que constitui um desafio contínuo à garantia do direito de ser e a dignidade das pessoas humanas”, e o quantitativo “obtido, através de mensuração de características importantes e relevantes” (COMISSÃO DE COMBATE À INTOLERÂNCIA RELIGIOSA et all, 2015, 2). Dentre outras análises, o “Pré-Relatório” registra a “(...) invisibilização de pessoas, o desrespeito a sua cultura e também a perda da autoestima e pertencimento (...)” (COMISSÃO DE COMBATE À INTOLERÂNCIA RELIGIOSA et all, 2015, 2. Outrossim, as informações levantadas no documento permitem ilustrar a situação de violência pela qual passam as religiões de Matriz Africana, seus espaços religiosos e seus fiéis.
A partir da totalização dos dados fornecidos pela Secretaria de Direitos Humanos, através do Disque 100, pela CEPLIR (Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos, órgão ligado ao Estado do Rio de Janeiro) e pela CCIR, constata-se que total de denúncias de atos de intolerância, de 2011 a 2015, é de 1.106 casos (COMISSÃO DE COMBATE À INTOLERÂNCIA RELIGIOSA et all, 2015, 3).
A unidade da federação com mais casos de perseguição contra religiões afro-brasileira foi o Rio de Janeiro. Conforme registra o Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos, CEPLIR, órgão estatal responsável pelo atendimento às pessoas vítimas de intolerância religiosa, houve 948 atendimentos, entre julho de 2012 a dezembro de 2014, sendo que as calúnias contra as religiões afro-brasileiras representaram 71, 15% dos casos.
O pronunciamento feito pela Relatora Especial das Nações Unidas, Rita Izák, sobre questões das minorias, destaca a ausência de diálogo entre o poder público e grupos minoritários. Também criticou a forma como os meios midiáticos mostram jovens negros: sempre em condições à margem da lei . As assimetrias raciais em todos os indicadores desenvolvidos ao longo da história nacional revelam a existência do racismo e a projeção cada vez mais desfavorável do povo negro. Assim, a raiz do problema reside na falta de esforço em encarar o problema do racismo como algo estrutural no processo de cidadania no Brasil.
Leis para quê?
Segmentos religiosos, como evangélicos e católicos, têm apresentado propostas de leis, visando regular o exercício da liberdade religiosa no Brasil, a exemplo do estatuto jurídico da liberdade religiosa (PL1912/2015), que tramita no Congresso Nacional. As propostas legislativas, que tramitam no parlamento, apesar de aparentemente ter boa intenção, beneficiam muito mais as religiões majoritárias, que historicamente têm maior apoio da sociedade e do Estado, do que as minoritárias. Estas, ao contrário, possuem histórico de perseguição e de criminalização aos seus cultos.
O quadro atual do cenário legislativo informa a existência de vários esforços na proteção de direitos, na garantia da liberdade de expressão, entre outros, o que é próprio de uma democracia. Por outro lado, revela paralelamente a tensão de forças, que muitas vezes, são opostas e que gozam de estrutura e prestígio diferenciados. Neste sentido, as demandas postas pelas religiões de matriz africana continuam periféricas e fracas na dinâmica lobista em conseguir a prevalência de suas necessidades para o apoio institucional, seja na esfera pública, seja na esfera privada.
A conclusão alcançada a partir da análise do conteúdo legislativo é de um grande distanciamento das metas de interesse do Povo de Santo. São poucas conquistas e muitos desafios impostos.
A questão de um Estado laico legitimar a religião confessional: contradições do Supremo Tribunal Federal
A discussão sobre a intolerância religiosa teve espaço na justiça brasileira com o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adi) 4439 proposta pela Procuradoria Geral d República (PGR), questionando o modelo de ensino religioso nas escolas da rede pública no país. Para a PGR, qualquer proposição curricular no ensino público de natureza confessional não deveria ser permitida, com base no artigo 19 da Constituição federal, em que está prevista a vedação do poder público estabelecer cultos e subvencionar qualquer religião, seja ela majoritária ou não . A ADI 4439 dirigiu atenção ao Decreto 7110/2010, que deu vigência ao acordo celebrado pela Santa Sé e o Brasil.
Para PGR, o artigo 11, a qual permite que as escolas públicas possam dispor em seu currículo de aulas confessionais de ensino católico e de outras religiões, cuja matrícula será facultativa , é inconstitucional, pois fere preceito de laicidade estabelecidos no artigo 11 da Constituição. Ademais, na Lei de Diretrizes e Bases, em seu artigo 33, parágrafo 1º, está estabelecida a possibilidade de ensino religioso, vedada qualquer forma de proselitismo, o que significa a proibição de atividade de catequese ou apostolado. A interpretação do juiz relator, o ministro Luís Roberto Barroso entendeu que o pleito da PGR deveria ser acolhido pelo argumento abaixo: Como não há parâmetros nacionais para a disciplina, não existe um mecanismo que contribua para que o conteúdo do ensino religioso seja transmitido sem proselitismo e com respeito à liberdade religiosa dos alunos em todas as escolas de ensino fundamental no Brasil. Em decorrência disso, não são raros os relatos de discriminação de cunho religioso, muitas vezes graves e envolvendo até violência física, em especial relacionados a religiões de matriz africana (STF, 2017). A análise exposta considera que não há possibilidade da vigência de artigo do acordo nacional com a Santa Sé, pois é vedada a eleição de religião, bem como não há chances de controle desse conteúdo, o que redunda em ameaças às religiões diferentes. Completou o magistrado que a possibilidade de ensino de religião, como disciplinas, somente pode ser feita se a elaboração e desenvolvimento do curso tiverem caráter não confessional, ou seja, não proselitismo, ou coisa parecida.
O desenvolvimento da disciplina religião por uma base não confessional desvincula a necessidade de ser orientada por um conteúdo dogmático específico. Outrossim, pode conter conteúdo reflexivo e crítico, permitindo o conhecimento de religiões com julgamento de valor que seja a percepção do sentido de humanidade e o papel que as religiões desempenham e desempenharam na história e na vida das pessoas. Assim, ao invés de seguir uma orientação fundada em alguma crença, a abordagem não confessional defendida pelo juiz relator busca fortalecer percepções sobre a humanidade que vão além de uma determinada crença, além de levar em consideração a diversidade de culto e o seu direito de exercê-lo, desde que não seja impositivo a qualquer pessoa. O voto pelo conhecimento da ADI e sua procedência, permitindo, assim, que políticas públicas atentassem para a formação plural em vez de restrita ou monopolizada por um credo, não logrou êxito, pois a posição contrária venceu, pela diferença de apenas 1 voto (o resultado foi 5 vs.6, tendo o voto de minerva declarado pela Presidente do STF, Carmen Lúcia).
Mais uma vez, a hegemonia das religiões cristãs, sobretudo a católica, prevaleceu. A conclusão que se pode chegar passa, deste modo, pela nítida impressão de que sociedade e Estado optaram por uma linha religiosa. Infelizmente, a legitimidade desta escolha fica prejudicada quando outras religiões, em sua maioria não cristãs, sofrem represálias, perseguições e ameaças cotidianas inclusive no ambiente escolar. A prudência tomada pelo relator do processo não serviu de estímulo à reflexão de seus pares, que decidiram manter a hegemonia de religiões cristãs.
Tal medida pode refletir em maiores dificuldades de manifestação religiosa de grupos religiosos minoritários, como os de religião afro-brasileira, trazendo mais insegurança aos seus seguidores. Vale registrar que o grande problema da decisão tomada pelo STF reside na míope visão sobre a realidade brasileira, quando se tem notícias diariamente da força da intolerância religiosa que assola os quatro cantos do país.
Ao reconhecer a constitucionalidade de uma norma que vai de encontro ao preceito constitucional de laicidade e a proibição de conteúdo confessional no currículo de escolas públicas, a justiça brasileira serviu aos interesses de grupos que pretendem institucionalizar uma doutrina religiosa sobre as demais.
Da necessidade de elaboração de um plano nacional de combate à intolerância religiosa
Parece não haver necessidade de empreender esforço quanto à elaboração de novas leis para regular direitos relativos à liberdade de religião e de culto, quando já existem direitos fundamentais que tratam sobre este tema. Criar mais leis por esta linha apenas inflacionaria um sistema jurídico que precisa dirigir-se a um plano de ação que permita a diversidade e liberdade de credo. Da mesma forma, esperar do judiciário ativismo sobre o tema, regulando e interpretando pontos que se entendam mal interpretados, talvez não seja a melhor forma de fortalecimento da cidadania e superação de um quadro de medo que muitas pessoas seguidoras de religiões que não fazem parte do grupo hegemônico sentem cotidianamente.
A equivocada interpretação da corte maior brasileira, ao legitimar a preponderância do cristianismo em relação a outras religiões, demonstrou que a justiça sofre a pressão de forças que representam interesses assimétricos de competição, o que mostra a ainda débil ação de grupos não cristãos, mormente os de religiões de matriz africana. Assim, é possível que no futuro esse poder, que deu ganho de causa ao monopólio religioso de um segmento, possa rever o seu posicionamento e criar entendimento que se alinhem aos fundamentos constitucionais que reconheça a importância de não privilegiar qualquer religião.
Se leis gerais garantistas e a ação judiciais não são capazes de mudar o cenário de desvantagens vivido por pessoas de religiões não hegemônicas como as cristãs, a elaboração de plano nacional de combate à intolerância religiosa tem grandes chances de dar maiores condições de coibir abusos e violações sofridas por essas religiões e seus fiéis. Com efeito, a comunidade religiosa afro-brasileira tem pressionado o Estado brasileiro a adotar uma posição mais assertiva com relação à elaboração de políticas públicas que objetivem o combate à intolerância religiosa, bem como políticas de ação afirmativa para fortalecer as pessoas que representam estas religiões, em sua maioria pessoas negras. A luta de combate à intolerância deve ter a participação de todos os entes e pessoas que entendem que em uma democracia é necessário o respeito e a diversidade de manifestações diversas.
Assim, todos os segmentos religiosos, que crerem na importância de um pacto plural, diverso e que respeite os direitos humanos, devem se unir e juntar esforços para alcance deste desiderato. Neste sentido, a iniciativa de proposição de política pública de autoria da Comissão de Combate a Intolerância Religiosa , sediada na cidade do Rio de Janeiro é um exemplo. O documento foi feito com o intuito de contribuir com o poder Executivo federal, para que junto com os poderes Judiciário e Legislativos possam fazer valer leis que garantam o direito constitucional de todas as religiões e não religiosos (COMISSÃO DE COMBATE À INTOLERÂNCIA RELIGIOSA, 2013, 9). A CCIR espera que o Estado, que possui o monopólio institucionalizado da força e a maior parte da poupança nacional, propicie condições políticas e condições concretas a fim de prevenir e eliminar todo tipo de discriminação, principalmente, porque o país tem uma Constituição dirigente, e ainda porque o Estado Brasileiro é signatário de normas e pactos internacionais que têm plena vigência e eficácia. Assim, temas relativos à religião e segurança; religião e educação; religião e trabalho; religião e cultura, religião e esporte, entre outras merecem uma atenção específica por parte de ações governamentais, reconhecendo a diversidade e a necessidade de respeito a essas diferenças. As proposições anotadas pela CCIR cuja finalidade busca fortalecer a cidadania e qualificar os agentes públicos são ilustrados nas seguintes propostas:
1. Religião e segurança
Atualização de todas as delegacias do país, através da Secretaria Nacional de Segurança Pública, com base na Lei nº 7.716/89, Lei Caó;
Criação e incentivo de instrumentos técnicos para elaboração de diretrizes, de adver-tências e de regulação por meio do Plano Nacional de Segurança e de outros projetos para as Secretarias Estaduais de Segurança Pública e os órgãos municipais que atuam na área de Segurança Urbana, visando ao estabelecimento de ações de prevenção à violência e combate à impunidade de crimes decorrentes de intolerância religiosa.
Fomentar o desenvolvimento e o apoio na implementação de políticas públicas de ca-pacitação e de qualificação de policiais para o acolhimento, o atendimento e a investigação em caráter não discriminatório; Sistematização de casos de crimes de intolerância religiosa para possibilitar uma literatura criminal sobre o tema; Inclusão nas matrizes curriculares das Polícias e das Guardas Municipais nos eixos temáticos de direitos humanos o recorte sobre tolerância, intolerância religiosa e alteridade;
Criação e incentivo de Centros de Referência contra a discriminação, na estrutura das Secretarias Estaduais de Segurança Pública, objetivando o acolhimento, orientação, apoio, encaminhamento e apuração de denúncias e de crimes de intolerância religiosa. Propor a criação de uma câmara técnica para diagnosticar, elaborar e avaliar a promo-ção das políticas de segurança na área em questão.
2. Religião e educação
Aplicação e fiscalização efetiva da Lei nº 10.639/03, através da LDB, que torna obrigatório o ensino da História da África e da História e das Culturas Afro-brasileiras nas escolas das redes pública e privada do país, com punição aqueles que não se enquadrarem na Lei imediatamente. Assim como a formação continuada de professores, voltada para a aplicação da Lei. Destinar recursos no Plano Plurianual e no orçamento da União;
Aplicação e fiscalização efetiva da Lei nº 9.475/97, que deu nova redação ao art. 33 da LDB 9.394/96, que estabelece a oferta obrigatória e matrícula facultativa no Ensino Religioso nas escolas das redes pública do país, assegurando o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil. Punição aqueles que utilizarem desta lei para doutrinação e/ou proselitismo religioso nas escolas públicas;
Avaliação dos livros didáticos por equipes multidisciplinares, de modo a eliminar as-pectos que discriminem religião, raça e/ou crenças filosóficas secularistas, tais como, ateísmo, agnosticismo, deísmo e ceticismo;
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Oferecer cursos de formação inicial e continuada para professores de Ensino Religioso das redes pública nas áreas de Antropologia, Psicologia, História, Sociologia, Filosofia e Ciências da Religião, contemplando temas de áreas como fenomenologia da religião, história das religiões no Brasil, ecumenismo e diálogo inter-religioso etc.;
Incentivar a produção de materiais específicos para a formação de professores que oriente sobre a importância da liberdade religiosa e da alteridade;
Elaborar em parceria com o Ministério da Educação, a implementação de políticas de tolerância religiosa nas escolas e universidades, seja por vestimenta, símbolos, amuletos ou qualquer tipo de aparato religioso do aluno, professor ou qualquer servidor inserido no ambiente educacional;
Incentivar a produção de materiais educativos (filmes, vídeos e publicações) sobre a liberdade religiosa, alteridade, tolerância e o combate à intolerância de crença religiosa ou não crença;
Incentivar a pesquisa acadêmica e a difusão de conhecimentos que contribuam para o conceito de laicidade do Estado, através da criação de cadeiras nas universidades públicas em áreas como Ciências da Religião, seguindo o exemplo da Universidade Federal de Juiz Federal;
Organizar um conselho consultivo no Ministério da Educação e Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, com a participação de representação dos diversos segmentos religiosos, para acompanhar e avaliar as diretrizes traçadas.
3. Religião e trabalho
Criar juntamente com o Ministério do Trabalho, programas de sensibilização de gesto-res públicos sobre a importância da qualificação em direitos humanos no recorte da tolerância religiosa de seus subordinados, contribuindo para a erradicação da discriminação nos diversos segmentos do mundo do trabalho;
Fomentar em parceria com o Ministério Público do Trabalho, a implementação de políticas de tolerância religiosa, seja, por vestimenta, símbolos, amuletos, seja qualquer tipo de aparato religioso que faça parte de seu traje no ambiente de trabalho.
Fortalecer e incentivar a rede de Núcleos de Combate à Discriminação no Ambiente de Trabalho das Delegacias Regionais do Ministério do Trabalho e Emprego.
4. Religião e cultura
Incentivar a produção de bens culturais e apoio a eventos de visibilidade massiva de afirmação da tolerância religiosa e da cultura de paz. Estimular e apoiar a distribuição, circulação e acesso aos bens e serviços culturais com temática ligada ao combate à intolerância religiosa;
Articular com os órgãos estaduais e municipais de cultura para a promoção de ações voltadas ao combate da intolerância religiosa.
Elaborar ações para diagnosticar, avaliar e promover a preservação dos valores culturais, sociais, econômicos e religiosos decorrentes da participação de qualquer instituição religiosa;
Criar ações de capacitação de atores da política cultural para valorização da temática da liberdade religiosa;
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Incentivar a criação de um Grupo de Trabalho para elaborar um plano para o fomento, incentivo e apoio às produções artísticas e culturais que promovam a cultura e a não discriminação religiosa;
5. Religião e esporte
Fomentar ações juntamente a confederações, comitês, associações esportivas e afins, para garantir a liberdade de manifestação religiosa na prática esportiva em eventos internacionais, nacionais, regionais ou locais, praticados em todo o território brasileiro;
Promover palestras e treinamentos de pessoas envolvidas na prática esportiva, visando o respeito, alteridade e a tolerância religiosa;
Respeitar e acolher manifestações religiosas de pessoas estrangeiras, residentes, turis-tas e esportistas, evitando com isso, a xenofobia e intolerância religiosa;
Inserir na formação do profissional de educação física, através de cursos de extensão e afins, conhecimentos referentes a dietas religiosas, direito a manifestação religiosa no esporte, a importância do sentimento religioso na pratica esportiva e etc., visando uma melhor orientação para esses profissionais, possibilitando uma melhor formação das futuras gerações de atletas;
Criar juntamente com o Ministério dos Esportes, ações que viabilizem o combate à in-tolerância religiosa na pratica esportiva em todo o território nacional nas diversas modalidades praticadas, seja no âmbito profissional ou amador.
6. Religião e assistência social
Assegurar e fiscalizar à assistência religiosa, buscando o princípio isonômico entre todas as religiões, nas instituições hospitalares, das redes públicas ou privadas e estabelecimentos prisionais civis ou militares;
Fomentar cursos e treinamentos para os agentes do sistema penitenciário e assistentes sociais das repartições de saúde visando a não discriminação religiosa;
Apoiar e incentivar centros de recuperação, abrigos, orfanatos, asilos etc. de todos os seguimentos religiosos em nível de igualdade.
Apoio jurídico e psicossocial às vítimas de intolerância religiosa através do Ministério da Justiça e Secretarias de Direitos Humanos
Realização do censo nacional de terreiros e centros de religiões de matriz africanas;
Criação de Ouvidoria Municipais contra a intolerância religiosa com atendimento presencial e por telefone 0800 e a elaboração de relatórios mensais.
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Como se vê, as proposições ilustradas acima têm cunho prático. São, portanto, de natureza executiva, visando dar um passo adiante na consolidação de direitos. O sentimento de falta de acolhimento e de apoio às demandas levantadas pelas religiões de matriz africana precisa ser superado pela confiança que as agências estatais, seja de natureza segurança pública, seja educação, seja trabalho e emprego, seja cultura, seja esporte, seja assistencial social desempenharão políticas pautadas pela diversidade e fortalecimento da cidadania de todos os grupos religiosos e não religiosos.
À medida que o poder público tome iniciativas orientadas pelas proposições enumeradas pelas entidades religiosas de matriz africana mais desafios ficarão visíveis, pois a conscientização de que todos têm direitos e garantias compreende um processo de contínuo aprendizado. Valorizar a cultura, a religião ou não religião do outro faz parte de um exercício cívico pautado na crença de que uma sociedade diversa, como a brasileira, merece consolidar valores forjados na percepção de que as diferenças fazem das pessoas mais iguais na proporção em que suas características são respeitadas e reconhecidas como válidas na sociedade.
O Estado, protagonista no processo de acesso a recursos e fortalecimento de direitos, precisa ter plena consciência de que suas agências devem estar preparadas e abertas à qualificação e aprendizado constante para que novas demandas sejam recebidas e tratadas com respeito. Como se vê, estas ações são factíveis, desde que o Estado recepcione e avalie a melhor forma de implementar políticas com esta envergadura. Igualmente, deve reconhecer que os movimentos sociais, como grupos que representam interesses de grupos vulneráveis, a exemplo do Povo de Santo, devem estar juntos no desenvolvimento dessas empreitadas. Assim, a inciativa da CCIR merece ser analisada e apreendida com atenção. Como elaborar política e religião?