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A dignidade da pessoa humana e sua orientação sexual.

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Agenda 25/03/2005 às 00:00

2. DIREITO DE FAMÍLIA E RELAÇÕES HOMOAFETIVAS

2.1. Introdução

Sabe-se que a família é a célula básica da sociedade, a célula mater (conforme art. 226, caput, da CF/88). Precede, a família, a organização estatal, sendo uma instituição pré - jurídica, pois surge primeiro e independe de reconhecimento pelo Estado. Portanto, pode-se dizer que a família é uma expressão direta do ser humano, realizando-se de modo autônomo e prioritário em relação ao Estado e ao ordenamento jurídico, afirmando Salvatore PULEO, tratar-se de uma instituição natural. 29

No Código Civil Brasileiro de 1916 a família era transpessoal, hierárquica e patriarcal, a qual se constituía em uma entidade distinta de cada um de seus membros e o seu bem-estar determinava a vida e morte de seus integrantes, era, denominada de sociedade conjugal, consoante Guilherme de OLIVEIRA30. Entretanto, segundo o mesmo autor, o novo conceito de família está no chamado primado do sentimento nas relações familiares, alterando-se o conceito de família decorrente do reconhecimento de um direito à felicidade individual diverso, entretanto dependente do bem-estar da própria instituição familiar. Com isso, passa, a felicidade da família, a ser o somatório do bem-estar de cada uma dos seus integrantes, da felicidade que cada indivíduo pode proporcionar a cada um de seus membros.

Esta novidade, de passar a família a ser uma unidade afetiva, e não mais somente econômica, posto que se traduz numa comunidade de afetos, relações e aspirações solidárias, sendo que a comunhão plena de vida (mencionada no primeiro artigo do livro de direito de família, art. 1.511) privilegia esta concepção e inovação em direito de família, possibilita, de acordo com Maria Berenice DIAS31, o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

O empecilho maior está na Constituição Federal, uma vez que, conforme seu art. 226, o casamento pressupõe a heterossexualidade. Assim, somente por emenda constitucional poder-se-ia fazer uma leitura diversa do caput e parágrafos do referido artigo. Assim, tem-se inviável a intenção de que o Novo Código Civil instaurasse as denominadas "famílias monoafetivas", pois, além de o tema ser complexo e estar sendo discutido pela sociedade brasileira, a técnica jurídica proíbe que o Código se rebele contra o que estabelece a Carta Magna.

Salienta-se que por ser a família base da sociedade, mesmo diante da afirmação de que resulta da união entre homem e mulher, esta não afasta a realidade de uma nova instituição, por força dos novos tempos e de novas demandas, com formas diferenciadas.

É o que se percebe, por exemplo, na chamada família monoparental, demonstrando a família mais restrita, nuclear, ou seja, é a família apenas com um dos progenitores com os filhos, na qual a criança é mantida e educada por somente um dos genitores. Ressalta-se, ainda, que essas modificações na área da família são acompanhadas pelo fenômeno crescente da chamada união estável, que, embora receba proteção idêntica à da família instituída pelo regime do casamento, não pode ser confundida com ela, guardando peculiaridades em sua formação e em seu status jurídico.

A elevação da união estável ao âmbito constitucional vem a firmar o rompimento com a família do Código Civil de 1916, constituindo uma família que decorre tão-só da convivência entre os companheiros. Entretanto, ainda que nivelada ao casamento, a união estável com ele não se confunde em absoluto, uma vez que o termo equiparar utilizado pela Constituição não significa igualar, mas, sim, atribuir nível idêntico de proteção, não implicando uma igualdade substancial entre os dois institutos, que são intrinsecamente diversos.

É o casamento o grande paradigma entre a união estável e a família, sendo ato jurídico solene protegido pelo ordenamento jurídico de maneira prioritária, pois somente ele proporciona absoluta segurança para as relações patrimoniais, ou não, que inaugura. Com o intuito de disseminar o vínculo do casamento, a Constituição Federal admite, em seu art. 226, §2º, que o casamento religioso gere efeitos civis, e ainda, em seu parágrafo 3º, determina a facilitação, pela lei ordinária, da conversão da união estável em casamento.

Tentam os juristas, com pouco sucesso, organizar o fenômeno social e pessoal dos relacionamentos humanos através de leis, estatutos, normas, promovendo verdadeiro processo de perda de referencias comuns de valores e critérios de interpretação. Assim, necessário faz-se à observância da Constituição como norma fundamental do sistema, da qual emanam os valores e princípios fundamentais.

E, dentre os princípios consagrados na Carta Magna está o da dignidade da pessoa humana, o qual integra o próprio espírito da Carta Maior. Salientando-se que a proteção do direito de família, pela Lei Fundamental pátria é justamente no sentido de garantir que a família seja um espaço para a promoção, resguardo e efetivação da dignidade de cada um dos integrantes do grupo familiar.

Assim sendo, de acordo com Pietro PERLINGIERI32, a chamada função serviente da família, reconhecendo-se o primado da pessoa, pondo-se a família como instrumento e espaço para a realização da dignidade, seja no relacionamento entre os cônjuges, seja na formação da personalidade dos filhos, etc. Portanto, a família é posta como instrumento de proteção da dignidade humana, devendo ser esse entendimento utilizado para a leitura de todos os institutos típicos do direito de família, exercendo função ressistematizadora de todo o ordenamento, vinculando disposições esparsas ou desconexas sobre a família.

Com a abertura do sistema de direito privado a valores constitucionais e metajurídicos informadores do sistema, haverá a garantia de eficácia do princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, é necessária a adoção de cláusulas gerais, como a constante no Novo Código Civil, para a operacionalização da prática acima referida.

Diante da multiplicidade dos textos legais, cada qual com sua própria racionalidade e fundamentos, evidencia-se a ausência de um nexo que reúna todos estes diplomas e lhe empreste a coerência de um sistema. Assim, servem os valores como verdadeiros elos da corrente que compõe o ordenamento jurídico, apesar de muitas vezes, diante da amplidão dos valores, como o principio da dignidade da pessoa, são insuficientes para propiciar a regulamentação coordenada dos comportamentos sociais.

O direito de família necessita, na ótica de Clóvis do Couto e SILVA, de uma "unidade valorativa e conceitual, de um núcleo valorativo e uma técnica comum que opere as ligações sistemáticas entre a Constituição, o Código Civil e as leis especiais." 32

No Código Civil de 1916 essa unidade era realizada pelo conceito de poder marital, assim, era o poder do marido sobre a família que exercia a unidade do sistema legal. Entretanto, o princípio da igualdade substancial determinou o fim deste modelo de poder marital absoluto, gerando uma nova concepção da família, a qual é composta por pessoas, e são estas, e todas estas, que merecem a atenção da ordem jurídica.

Buscam-se, hoje, elementos viabilizadores de uma nova concepção de direito de família, através da organização de um sistema aberto, orgânico e coeso, informado por valores comuns.

O tão preconizado Estado Democrático de Direito, com fundamento no art 1º da Constituição Federal de 1988, tem por fim, além de outros anseios, assegurar a realização e respeito dos direitos e liberdades fundamentais inseridos naqueles, os direitos humanos.

No intuito de proteger tudo que condiciona a vida humana, mostra-se crescente a positivação dos direitos humanos em nível constitucional, através da conversão dos direitos fundamentais em direitos humanos difusos e integrais. Para a outorga de efetividade a estes direitos humanos, consubstanciados no princípio da dignidade humana cumulado com os direitos e garantias individuais (art. 1º, III, c/c art. 60, § 4º, III, ambos da Constituição Federal de 1988), apresentam-se como seus grandes pilares dois princípios constitucionais muito em voga nos dias atuais: os princípios da liberdade e da igualdade.

Consagrado pelo texto constitucional, de acordo com o art. 3º, IV, o direito à identidade sexual, como direito humano fundamental, tem-se, portanto, ser também o direito a homoafetividade um direito humano fundamental.

Para melhor compreensão do tema, necessário analisar-se a definição apresentada por Roger Raupp RIOS, no intuito de defender o direito a homoafetividade, sobre a orientação sexual.

Assim, explica o autor ser a orientação sexual:

"a afirmação de uma identidade pessoal cuja atração e/ou conduta sexual direciona-se para alguém do mesmo sexo (homossexualismo), sexo oposto (heterossexualismo), ambos os sexos (bissexuais) ou a ninguém (abstinência sexual). Sendo assim, quando alguém opta por outrem para manter vínculo afetivo, identifica o gênero da pessoa com quem deseja se relacionar, revelando sua orientação sexual; opção essa que não pode sofrer tratamento diferenciado" (Direitos Fundamentais e orientação sexual: o direito brasileiro e a homossexualidade. Revista CEJ do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. Brasília, dez. 1998, nº 6, p.29).

Em face dessa direção do desejo ou da conduta sexuais que identificam os denominados "homossexuais", estes indivíduos sofrem, desde sempre, tratamento desfavorável, sendo discriminados, pelo simples fato de sua orientação sexual não estar condizente com que a sociedade moderna (?) visa a alcançar como satisfativo no que tange a conduta e a escolha sexual de cada um.

Importante lembrar, brevemente, que existiram certas concepções a respeito da homossexualidade; teve-se, primeiramente, a homossexualidade como pecado, prevalente na doutrina cristã, para a qual a atividade sexual se restringiria a reprodução, (conclui-se, portanto, que a homossexualidade contraria à moral cristã), e posteriormente, os atos homossexuais passaram a ser vistos como sintomas de uma doença, tendo, para alguns estudiosos, sua raiz em patologias físicas, e, para outros, como Freud, em fenômenos psíquicos (o que não mais se sustenta hoje em dia, posto que o exame nas principais obras científicas médicas e psicológicas a homossexualidade não mais é tida assim).

Com os movimentos sociais, contrários a toda as formas de preconceitos, na defesa dos direitos de homossexuais, propondo desde já a abolição das diferenciações sexuais intrínsecas às categorias hetero/homossexual, o fim da dominação de um sexo pelo outro e da imposição de quaisquer padrões morais ante as diversas formas de expressão sexual, houve o enfraquecimento, ainda que tímido, de alguns preconceitos acerca da homossexualidade, principalmente quanto a sua vinculação com a concepção de pecado e de doença.

Pois bem, o que se percebe é uma evolução da sociedade, na qual a escolha sexual torna-se um elemento da escolha de estilo de vida, impondo-se, assim, a abolição do binômio homossexual/heterossexual na identificação dos sujeitos, para a superação da exclusão e discriminação dos indivíduos em função de suas preferências sexuais.

Sustenta-se, entretanto, a desconsideração da orientação sexual enquanto critério capaz de legitimar tratamentos desiguais, importantes para a concretização do princípio jurídico da igualdade, sendo necessária para a plenitude da cidadania por homossexuais.

O direito de igualdade (princípio jurídico constitucionalmente vigente), como direito fundamental que é, demonstra a necessidade de sua concretização diante das diversas situações fáticas e jurídicas.

No direito brasileiro, o princípio da igualdade, como é sabido, apresenta dupla dimensão: a formal e a material.

A igualdade jurídica formal é a igualdade diante da lei (art. 3º, I, CF/88) a qual decorre imediatamente do princípio da primazia da lei no Estado de Direito - independentemente das peculiares circunstâncias de cada situação concreta e da situação pessoal dos destinatários da norma jurídica. Revela-se na aplicação absolutamente igual da norma jurídica, sejam quais forem as diferenças e as semelhanças verificáveis entre os sujeitos e as situações envolvidas.

O princípio da igualdade formal objetiva visa a superação das desigualdades entre as pessoas, exigindo, portanto, que se reconheça em todos, independentemente da orientação homo ou heterossexual, a qualidade de sujeito de direito. Sua concretização, entretanto, é desafiada pelas discriminações em virtude da orientação sexual, e para implementá-lo foram positivados critérios proibitivos de diferenciações, cujo rol tem sua sede principal no art. 3º, inciso IV, da Carta Magna.

Portanto, tem-se, assim, que a discriminação por orientação sexual é uma hipótese de diferenciação fundada no sexo da pessoa para quem dirige, a outra, o seu envolvimento sexual.

Entretanto, apesar do princípio da igualdade formal vedar a diferenciação e estabelecer a equiparação entre heterossexualidade e homossexualidade nas questões jurídicas, em determinadas hipóteses será necessário estabelecer certas distinções, e é aí que podemos vislumbrar o princípio da igualdade em sentido material.

É a igualdade na lei, ou seja, a igualdade material, que exige a igualdade de tratamento dos casos iguais, bem como a diferenciação em face de hipóteses distintas. Entretanto, somente diante de uma razão suficiente para a justificação do tratamento desigual é que não haverá violação a este princípio, sendo a suficiência e a não suficiência da motivação um problema de valoração.

Inexistirá, assim, razão suficiente sempre que não for alcançada fundamentação racional para a instituição da diferenciação, impondo-se uma carga de argumentação para que se justifiquem tratamentos desiguais. Num regime democrático, orientado pela idéia de Estado Democrático de Direito, estas valorações estão abertas para o legislador, sendo lícita a opção por tratamento desigual sempre que, em virtude de razões desta monta, o tratamento desigual não se revelar arbitrário.

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Dessa forma, a garantia do direito de igualdade dá-se mediante a imposição de um ônus de argumentação e de prova, por conta de quem afirmar a desigualdade e reivindicar um tratamento desigual, sendo necessário que toda diferenciação tenha fundamento racional, pois quando inexistente, surge o juízo arbitrário na fundamentação da desigualdade estabelecida, donde decorre a inconstitucionalidade do discrímen. Salienta-se, ainda, que diante do estágio do conhecimento humano que hoje compartilhamos, desautoriza-se o juízo discriminatório baseado exclusivamente nos critérios da orientação sexual sob pena de revelar-se em puro preconceito.

Em cada uma das questões onde surgir a indagação sobre a possibilidade da equiparação ou da diferenciação em função da orientação sexual, é de rigor a igualdade de tratamento, a não ser que fundamentos racionais possam demonstrar suficientemente a necessidade de tratamento desigual, cujo ônus de argumentação, repita-se, cumpre ao que reivindicar o tratamento desigual.

É, portanto, diante do princípio constitucional da igualdade, conforme art. 3º, IV; art. 5º, I e art. 7º, XXX, todos do texto constitucional, que se proíbe qualquer desigualdade em razão do sexo, ou melhor, em razão da orientação sexual do ser humano, cuja liberdade nasce da separação psíquica e física entre o ato sexual prazeroso e a função procriativa. Todos seres humanos dispõem, assim, de liberdade de escolha; mas, se recebe, devido à escolha feita por alguém do mesmo sexo, o repúdio social, está sendo discriminado em função de sua orientação sexual, evidenciando-se numa clara discriminação à própria pessoa, em função de sua identidade sexual. Portanto, o direito à opção sexual é um direito que goza de proteção constitucional, em face da vedação de discriminação por motivo de sexo.

A garantia do livre exercício da sexualidade relaciona-se com os postulados da liberdade individual, da igualdade social e da solidariedade humana, sendo necessário que as relações homossexuais não sejam excluídas do mundo do Direito, para a possível contraposição à intolerância social, aos preconceitos.

Conclui-se, assim, que a inclusão das relações homossexuais no rol dos direitos humanos fundamentais, (como expressão de um direito subjetivo individual, categorial e difuso), impõe-se não só em face do princípio da isonomia, como também da liberdade de expressão (exercício da liberdade individual), do respeito aos direitos de personalidade, no que diz com a identidade pessoal e a integridade psíquica e física, e da necessidade de segurança da inviolabilidade da intimidade e da vida privada (base jurídica para construção do direito à orientação sexual, como direito personalíssimo). Salienta-se, ainda, o respeito ao princípio da dignidade humana, regra maior da Constituição Federal de 1988, a qual dota os princípios da igualdade e isonomia de potencialidade transformadora na configuração das relações jurídicas, sendo invocáveis como fonte de disciplina destas, quando não existirem normas ordinárias a respeito do fato em consideração.

No que se refere à homossexualidade e o direito de família, cumpre salientar que as concepções tradicionais do conceito de família contêm, a partir da segunda metade do século XX, em virtude das transformações que desde então se verificam na realidade social e na evolução do direito, espaço para a consideração das uniões de pessoas do mesmo sexo.

Diversas inovações legislativas foram enfraquecendo o modelo institucional hierárquico e patriarcal, como a compreensão do divórcio e a igualdade de direitos entre os cônjuges. Surge, a partir da década de oitenta, a configuração da chamada "família pós-moderna", que se caracteriza pelo predomínio da individualidade de cada um de seus membros sobre a comunidade familiar.

Importante, ainda, para defender-se as relações homossexuais como entidades familiares, demonstrar uma, e a que no caso em tela nos interessa, das mais profundas modificações pelas quais passou o Direito de Família com a Constituição Federal de 1988: a outorga de proteção constitucional à família, independentemente da celebração do casamento, resultando na inserção de um novo conceito, qual seja, o de entidade familiar, conforme art. 226, §3º, o qual alberga tanto a união estável de uma mulher com um homem, como as relações de um dos ascendentes com sua prole.

Assim, o regime jurídico da família hoje vigente operou uma ruptura com o paradigma institucional existente até então. E em virtude desta nova disciplina constitucional pode-se conferir ao ordenamento jurídico a abertura e a mobilidade que a dinâmica social exige, sem a rigidez de um modelo único que desconhece a pluralidade de estilos de vida e de crenças que caracteriza os nossos dias. Do exposto, a atualização do direito de família requer não só a superação do paradigma da família institucional, mas também o reconhecimento de novos valores e das novas formas de convívio das formações familiares contemporâneas, que alcançam a família pós-moderna.

Contudo, apesar de resultar em mudanças de conceitos, o disposto no art. 226, §3º da Constituição Federal de 1988, ao impor, a fim de proteção constitucional, a diferenciação de sexos do casal, apresenta-se como norma discriminatória, vez que contraria o princípio da igualdade, (o qual veda a diferenciação das pessoas em razão de seu sexo), pois ignora a existência de uniões formadas por pessoas do mesmo sexo.

Infelizmente, apesar de a Carta Magna contemplar, explicitamente, três espécies de família, quais sejam, a família derivada do casamento ("a família legítima"), a família decorrente da união estável e a família monoparental, dificulta o reconhecimento das uniões homossexuais no âmbito do direito de família, uma vez que se torna questionável a possibilidade de se subsumir a uma delas as uniões em questão.

Mostra-se a norma do art. 226, §3º, da Carta Maior inconstitucional, conforme sustenta Otto BACHOF, (apud Maria Berenice Dias. União Homossexual, 2ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 80, 2001) por apresentar-se discriminatória, posto que nem o matrimônio, nem a diferenciação dos sexos ou capacidade procriativa, servem de elementos identificadores da família; deve, assim, ser banida do ordenamento jurídico-constitucional, para que prevaleça o princípio da igualdade e da liberdade individual. Ainda referindo-se ao dispositivo, Anna Maria LAYDNER Gaudie LEY, sustenta que "repugna ao princípio constitucional da igualdade sejam regulados os aspectos materiais do relacionamento afetivo heterossexual e não o sejam os do relacionamento afetivo homossexual" (Idem anterior p.82), por saber-se que o princípio da igualdade não se resume ao enunciado básico de que todos são iguais perante a lei.

Fica evidente, assim, que a Constituição Federal de 1988, por absoluto preconceito ético, limitou-se, em seu artigo 226, §3º, a emprestar juridicidade às relações heterossexuais, configurando verdadeira afronta aos princípios da dignidade humana, liberdade e da igualdade, verdadeiros dogmas do Estado Democrático de Direito. Entretanto, é de extrema importância ter-se sempre em mente que a Constituição Federal, antes e acima de tudo, apresenta-se como um conjunto de princípios. E, diante deste enfoque dado a Carta Maior, resulta a necessidade de as próprias normas constitucionais se afeiçoarem aos princípios.

Reconhece-se, frente ao acima exposto, a possibilidade de existência de normas constitucionais inválidas ou ineficazes, uma vez que, e segundo entendimento de jurista lusitano Gomes CANOTILHO, (Idem anterior p.84), a possibilidade da existência de contradições transcendentes entre o direito constitucional positivo e os valores, diretrizes ou critérios materialmente informadores da modelação do direito positivo. Dessa maneira, mostrando-se as normas constitucionais contrárias a um princípio constitucional, serão elas carecedoras de legitimidade, tendo, diante disso, o princípio da dignidade da pessoa humana, o condão de subtrair a eficácia de qualquer regra que o infirme, ainda que ela se encontre no bojo da própria constituição.

Salienta-se, mais uma vez, silenciosa a nossa tão exaltada Constituição Federal de 1988, e, ainda, omissas as demais leis infraconstitucionais no tocante às relações homossexuais, resultando na inexistência de proteção legal a essas uniões, importando em verdadeiras violações aos direitos humanos. Ficam, assim, os indivíduos que se encontram nessa situação, à margem da própria cidadania, o que é inadmissível num Estado Democrático de Direito. Não é demais, portanto, lembrar que a omissão legal não pode resultar numa negativa de direitos a vínculos homoafetivos, em respeito à dignidade humana.

Se inconstitucional, inválida ou ineficaz a ressalva feita pelo art. 226, §3º da Carta Magna, assim também é a igual restrição repetida na legislação infraconstitucional, com as Leis nº 8.971/94 e nº 9.278/96, que regulamentam a referida norma constitucional. Assim, podem e devem ser aplicadas, por analogia, as leis reguladoras do relacionamento entre um homem e uma mulher, às relações homossexuais, que constituem uma unidade familiar que em nada se diferencia da união estável.

É sabido, mas nunca é demais ressaltar, que o Direito deve acompanhar o momento social, pois a sociedade está em constante transformação. Não pode o Direito ficar à espera da lei, estanque ao fato concreto. Assim, o fato social antecipa-se ao jurídico, e a jurisprudência antecede a lei. Ainda que a sociedade se mostre resistente em não aceitar a nova realidade, ainda que haja conflitos e persistam objeções morais, religiosas e posturas discriminatórias, tais situações não devem inibir o juiz de solver as lides que lhe são trazidas a julgamento.

Na ausência de normas para a solução de conflitos, precisará, o magistrado, buscar respostas em relações jurídicas outras, cujas circunstâncias de fato guardem similitude com a situação posta em julgamento. O juiz, portanto, diante do silêncio constitucional e a omissão legiferante, não pode negar, entretanto, efeitos jurídicos a tais vínculos; deverá, sim, subsidiar-se da analogia, estabelecida no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil de 1916, buscando uma aproximação entre os institutos normatizados (união estável e o casamento - relações que têm o afeto por causa) e a situação que se encontra desamparada, reconhecendo a existência de uma entidade familiar, bem como nos princípios amplamente aqui veiculados.

Fica evidente que se abstraindo o sexo dos conviventes, não há nenhuma diferença entre as relações homossexuais e heterossexuais, pois, em ambos, o vínculo se origina no afeto, existindo identidade de propósitos, qual seja, a concretização do ideal de felicidade de cada um. Havendo, assim, vínculo afetivo entre duas pessoas, e mantendo elas uma relação duradoura, pública e contínua, forma-se um núcleo familiar, uma vez que, como bem foi dito, a capacidade procriativa, ou a vontade de ter prole, não se mostram como elementos essenciais para que se empreste proteção legal a um par. Dessa forma, deve-se conferir direitos e impor-se obrigações independentemente da identidade ou diversidade de sexos dos conviventes, sob pena de se infringir o maior princípio imposto pela Constituição Federal, qual seja, o da dignidade da pessoa humana.

Esse foi o entendimento, pioneiro, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em 14 de março de 2001, reconhecendo o vínculo homoafetivo como entidade familiar, utilizando-se, analogicamente, da legislação que regula as uniões extramatrimoniais, para reconhecer o direito do parceiro à meação. (Apelação nº 70001388982, relatada pelo Desembargador José Carlos Teixeira GIORGIS, a saber:

"UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO. PARTILHA DO PATRIMÔNIO. MEAÇÃO. PARADIGMA. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados destas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural atividade retardatária. Nelas remanescem conseqüências semelhantes às que vigoram nas relações de afeto, buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevados sempre os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade. Desta forma, o patrimônio havido na constância do relacionamento deve ser partilhado como na união estável, paradigma supletivo onde se debruça a melhor hermenêutica".

Cumpriu, dessa forma, o Poder Judiciário, sua função renovadora, reconhecendo o vínculo homoafetivo como entidade familiar.

O Tribunal Regional Federal da 4º Região (Apelação Cível nº 96.04.55333-0/RS, Relatora Juíza Marga Barth Tessler, j. 220.08.1998) decidiu que a proibição de discriminação em virtude de orientação sexual decorre do princípio da igualdade formal e da proibição expressa de discriminação por motivo de sexo, considerando inconstitucional discriminação contra homossexual na vedação contratual de inclusão, como dependente em plano de saúde, de companheiro do mesmo sexo. O mesmo Tribunal confirmou liminar em Ação Civil Pública destinada em reconhecer, em todo o território nacional direitos previdenciário a companheiros homossexuais, decisão fundada no princípio constitucional da igualdade.(ACP nº 2000.71.00.009347-0). Por fim, confirmou sentença que reconheceu a companheiro do mesmo sexo direito à pensão estatutária de servidor público federal autárquico.

Há, no direito brasileiro, ainda que de forma tímida, uma certa evolução da jurisprudência e da legislação, no intuito de proibir-se a discriminação por orientação sexual. Além da existência de projeto de emenda constitucional visando à inclusão da orientação sexual como explícito critério proibitivo de discriminação (proposta de Emenda à Constituição nº 67, de 1999), há na legislação federal, proibições de discriminação a respeito dos homossexuais; neste âmbito, ainda, não se podem esquecer a pertinência aos tratados internacionais de direitos humanos incorporados no nosso ordenamento jurídico, v.g. a Convenção Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1996. Também se verificam, no âmbito municipal, previsões de proibição de diferenciação por orientação sexual.

Na doutrina, alguns estudiosos tratam do tema, como José Carlos Teixeira GIORGIS, salientando que:

"não é desarrazoado, firme nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade, por analogia e com suporte nos princípios gerais do direito, aplicar os mesmos efeitos patrimoniais que se deslumbra da união estável, repartindo-se o acervo angariado por parceiros em sua vida em comum, desde que vislumbre nesta os pressupostos da notoriedade, da publicidade, da coabitação, da fidelidade, de sinais explícitos de uma verdadeira comunhão de afetos" (idem anterior p. 100).

O direito de família contemporâneo ruma cada vez mais para a valorização das uniões de pessoas em que se estabelece uma comunhão de vida voltada para o desenvolvimento da personalidade, mediante vínculos sexuais e afetivos duradouros, sem depender mais de vínculos formais ou de finalidades reprodutivas. O que importa, portanto é a vida em comum, a conjugação de mútuos esforços, constituída a partir do entrelaçar de sexo e afeto.

Desta forma, a negativa do status familiar às uniões homossexuais acaba fragilizando a intimidade, na medida em que sua privação, de forma indireta, mas concreta, dificulta gravemente a construção de uma relação afetiva e o seu desenvolvimento. Salienta-se que a compreensão de Estado Democrático de Direito requer não só a ausência de invasões ilegítimas das esferas individuais, mas, também, reclama a promoção positiva da liberdade, destinada a criar as condições de desenvolvimento da liberdade e da personalidade. Dentro, portanto, destas medidas positivas, inclui-se o reconhecimento familiar às uniões homossexuais.

De tudo que já fora exposto, tem-se claramente que não se define a família somente pelo vínculo entre um homem e uma mulher, ou pela convivência dos ascendentes com seus descendentes; também, pessoas ligadas por laços afetivos, sem conotação sexual, merecem ser reconhecidas como entidades familiares. Descabe, portanto, deixar de fora do conceito de família as relações homoafetivas, se presentes os requisitos já dispostos, como o da vida em comum, coabitação, mútua assistência, etc.

Mostra-se, assim, totalmente errônea a exclusão da união homossexual da órbita do Direito de Família, identificando-a simplesmente como uma sociedade de fato, posto que esta é fundamentada em um vínculo obrigacional, enquanto o fundamento da união homossexual é afetivo, psicológico. Além disso, tendo-se a relação homossexual como uma sociedade de fato, impede-se a concessão de direitos que defluem das relações familiares, como a meação, a herança, usufruto, alimentos, habitação, etc.

Diante do óbice constitucional para albergar o relacionamento homossexual no conceito de família, fica evidenciada a necessidade de alteração constitucional para que a união homossexual deixe de ser considerada uma sociedade, já que atualmente é considerada uma sociedade de afeto.

De fato, se quiser subsumir relações desta espécie ao quadro conceitual obrigacional, onde sobreleva o elemento econômico, ignorar-se-á o elemento afetivo que permeia tais uniões. As uniões homossexuais, onde os vínculos afetivos e sexuais constroem uma comunhão de vida estável e durável, desde já satisfazem as notas requeridas pela regulação jurídica da família estampada na Constituição Federal de 1988.

Cumpre aos juizes, mais como um dever do que meramente uma faculdade, e enquanto a lei não acompanha a evolução da sociedade, promover a justiça, desempenhando seu papel de agente transformador dos estagnados conceitos da sociedade, assegurando aos indivíduos que estabelecem, entre si, uma relação homossexual, os mesmos direitos que merecem as demais relações afetivas, uma vez que é inadmissível confundir-se questões jurídicas com questões de caráter moral ou de conteúdo meramente religioso.

Salienta-se, portanto, a união estável como um gênero, onde as relações hetero e homoafetivas são espécies, fazendo, ambas, jus à mesma proteção. Como também ocorre com a união heterossexual estável, com a união homossexual surge um novo estado civil, sendo importante determiná-lo, e definir-se, judicialmente, o seu termo a quo. Somente assim se poderá assegurar higidez aos negócios jurídicos e atribuir-se a conseqüência jurídica que resultam da lei.

O Estado, somente através da outorga de proteção devida às relações homoafetivas, reconhecerá, verdadeiramente, que todos os cidadãos dispõem do direito individual à liberdade, do direito social de escolha e do direito humano à felicidade, consagrando, de vez, o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Ë, com certeza, um tema tabu que se apresenta aos operadores do direito, sejam eles juízes, advogados, membros do Ministério Públicos e da Defensoria Pública, mas por tratar-se de um fenômeno social, possui relevância jurídica, e, mascarar a realidade não irá solucionar as questões que emergem das relações que constituem sociedade de afeto. Assim, lembra Américo Luís Martins da SILVA que "o não reconhecimento legal de sua condição e a falta de atribuição de direitos constituem certamente cerceamento de liberdade e uma das formas que a opressão pode revelar" (Idem anterior p.106).

A aversão da doutrina dominante e da jurisprudência majoritária apenas demonstra o enorme preconceito a que estão expostos certos indivíduos, contribuindo para uma limitação de direitos, fortalecendo os estigmas sociais, causando sentimento de rejeição, além de apresentarem-se como fonte de sofrimentos a essas pessoas que, simplesmente, exerceram um direito que lhes assiste, qual seja, de opção sexual.

Importante salientar que a vedação à discriminação assenta-se não só na Carta Magna, mas também possui previsão na Convenção Internacional dos Direito Civis e Políticos, na Convenção Americana de Direitos Humanos e no Pacto de San Jose, dos quais o Brasil é signatário. A ONU já explicitou seu entendimento de que em razão dos princípios da igualdade e dignidade humana, é ilegítima qualquer interferência na vida privada de homossexuais adultos.

O princípio jurídico da proteção da dignidade da pessoa humana, estabelecido no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988, tem como núcleo essencial a idéia de que a pessoa humana é um fim em si mesma, não podendo ser instrumentalizada ou descartada em função das características que lhe conferem individualidade e imprimem sua dinâmica pessoal.

Relembrando-se, brevemente, o conceito de orientação sexual (identidade atribuída a alguém em função da direção de seu desejo e/ou condutas sexuais, seja para outra pessoa do mesmo sexo, seja do sexo oposto, ou de ambos os sexos), tem-se, com efeito, que na construção da individualidade de uma pessoa, a sexualidade consubstancia uma dimensão fundamental da constituição da subjetividade, a qual é alicerce indispensável para a possibilidade do livre desenvolvimento da personalidade.

Evidente, portanto, que as questões relativas à orientação sexual relacionam-se de modo íntimo com a proteção da dignidade da pessoa humana, cujo reconhecimento é elemento central na sociedade que caracteriza o Estado Democrático de Direito, uma vez que este promete aos indivíduos, muito mais que a abstenção de invasões ilegítimas de suas esferas pessoais, mas, também, a promoção positiva de suas liberdades.

De fato, ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo a alguém, em função de sua orientação sexual, seria dispensar tratamento digno ao ser humano. Não se pode, simplesmente, ignorar a condição pessoal do indivíduo, legitimamente constituída de sua identidade pessoal (incluindo-se a orientação sexual), como se tal aspecto não tivesse relação nenhuma com a dignidade humana. Assim, o respeito à orientação sexual é aspecto fundamental para a afirmação da dignidade humana, não sendo aceitável, juridicamente, que preconceitos legitimem restrições de direitos, servindo para o fortalecimento de estigmas sociais e espezinhamento dos fundamentos constitucionais.

Diante de toda a exposição feita, ficam patentes que as uniões homossexuais configuram verdadeiras comunidades familiares. Cumpre, assim, ao legislador, atualizar o direito de família. Nesta tarefa, a ciência e a prática jurídica precisam tomar consciência das concepções que forjaram historicamente os tradicionais modelos de casamento e de união estável, de cunho marcadamente machista e patrimonial, a fim de um efetivo desenvolvimento do direito de família, onde a proteção da dignidade humana e os valores de igualdade, solidariedade e pluralismo, fundamentais para a Constituição e a vida em coletividade, possam florescer.

Sem que seja vencida a realidade discriminatória, cidadãos continuarão a ver negligenciados direitos e garantias constitucionais fundamentais, em virtude de preconceito e intolerância, os quais, de uma só vez, violam o princípio isonômico, comprometendo, além da dignidade humana, posto que há um desrespeito, de forma reflexa, a liberdade pessoal e sexual, também, a própria legitimidade democrática do ordenamento jurídico.

2.2. Estrutura do novo livro do direito de família

O direito, já é sabido, é relação, só acontecendo quando puder ocorrer relação entre pessoas. Assim, são nas relações jurídicas que o cientista jurídico se depara com o objeto da sua ciência. Entretanto, apesar disso, o legislador normatizou o direito de família na forma de institutos jurídicos: casamento, filiação, parentesco sem dar atenção às relações jurídicas que os compõem.

A maior parte das ditas inovações no livro de direito de família da Nova lei civil pátria são, em verdade, mudanças já assimiladas pelo seu texto durante o lapso de tempo de tramitação do então projeto. As ditas inovações já estavam inseridas no direito de família pelos microssistemas legislativos, ou pelas interpretações jurisprudenciais.

Entretanto, o Novo Código Civil, graças a Clovis do Couto e Silva, apresenta uma grande inovação: direito pessoal de família (vínculo de natureza moral ou existencial) e direito patrimonial de família (vinculo de natureza patrimonial, relação econômica que liga seus membros). Essa inovação é de suma importância porque traz uma visão realística e plena do fenômeno familiar, pois o ente familiar não é somente uma reunião de afetos ou de patrimônios, mas, sim, é o resultado da interação dinâmica desses dois componentes. Estabelece-se, com isso, um liame efetivo entre a norma, o fato e o valor.

Resumidamente, poderíamos dizer que quando se fala em direito pessoal de família, está se valorizando de dialeticidade entre as relações, presentes as normas que incidem de forma dialética sobre o fato e o valor afeto. Dessa maneira, inova-se na legislação, uma vez que a mesma se desprende daquela visão ultrapassada da família, a qual tinha a mera função de reprodução, sustento e educação dos filhos, para uma atual, qual seja, a de um casal que se une para buscar a felicidade através de relações de afeição e solidariedade, que significam os pilares da família moderna33. Em relação ao direito patrimonial de família, são destinados os institutos que não apresentam de forma tão aguda a carga das relações pessoais, sendo regulados sob a forma do direito das obrigações ou das coisas, sem, contudo, perderem a informação dos princípios de direito de família.

Apesar dessa grande inovação é importante ter-se que somente terá valia se o Código Civil permitir uma nova leitura dessas relações, que deve, obrigatoriamente, passar a ser feita pela inserção da cláusula geral da comunhão plena de vida. Esta, prevista no art. 1.511. da nova lei civil que apresenta um conceito ético, operativo, com conteúdo não totalmente definido, dispondo que "o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges". Permite essa cláusula uma abertura da ordem jurídica a outros valores sociais, ainda não preenchidos pelo Direito, facilitando as interações interpretativas entre os diversos diplomas legais que compõem o direito de família (Código Civil, Constituição Federal, Lei do Divórcio, etc.).

Essa cláusula remete a valores éticos, aos comportamentos sociais, aos costumes de hoje e do futuro, oportunizando sua aplicação pelo operador do direito. O grande papel da cláusula geral será o sintetizar (porque sua amplitude dispensa a produção constante de novas normas assim que mudam os valores sociais) e enriquecer (pois somente a ocorrência dos casos concretos permite dimensionar toda a potencialidade de casos a serem resolvidos pela irradiação da cláusula geral), conforme lição do professor Clóvis do Couto e SILVA.34

Entretanto, há uma contradição interna entre o art. 1.511, acima descrito, com o art. 1.513, pois este dispõe que "é defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família", deixando dúvidas a respeito de quem estabelece a comunhão plena de vida, o casamento, conforme o art. 1.511, ou a família, do art. 1.513?

Pois bem, entende-se, particularmente, que a família é a comunhão plena de vida, instituída pelo casamento.

Outro aspecto importante de ser analisado é o da incapacidade legislativa de dar respostas a dramas atuais da sociedade, principalmente no direito de família em face da celeridade com que se desenvolvem as idéias, conceitos e os relacionamentos humanos. Diante de um novo modelo família, acima caracterizado, seria um grave erro pretender restabelecer a criação de normas fechadas e dispostas a conterem em si todas as indagações e inquietações de hoje e do porvir. Nesse entendimento, o novo Código Civil estabelece um modelo jurídico aberto, suscetível de permeabilidade com o meio social em que está inserido. Assim, será desde o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e da cláusula geral da comunhão plena de vida que o direito de família avançará em sua constante construção.

O novo Código Civil tem compromisso com os mecanismos modernos da ciência jurídica que permitam ao Direito renovar em sua interpretação e aplicação sem que haja necessidade de nova e pontual reforma legislativa. Assim, a compreensão do Direito como um sistema informado por valores sociais, e a conseqüente organização de modelos jurídicos, garantem atualidade à norma jurídica. É o que ocorre com o princípio da dignidade da pessoa humana, o qual serve de liame a todas as normas jurídicas referentes, por exemplo, ao direito de família (Constituição Federal, Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei da União Estável, etc.), acabando com a indiferença com que se relacionavam essas normas, superando as divergências interpretativas.

Por fim, salienta-se, mais uma vez, que a cláusula geral da comunhão plena de vida, além de unificar o sistema de direito privado, facilita a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana, permitindo que a dignidade da pessoa seja tutelada por uma família comprometida juridicamente a ser espaço de preservação, tutela e estimulo da dignidade da pessoa humana, centro de toda a preocupação jurídica contemporânea.

2.3. Liberdade Sexual e os Direitos Humanos

Já é sabida, em níveis científicos, que a sexualidade faz parte da personalidade da pessoa humana, integração esta que já pode ser visualizada deste o nascimento do indivíduo. Assim sendo, a sexualidade integra a própria condição humana do indivíduo.

No que tange respeito ao próprio exercício da sexualidade do Homem, este conceito engloba não tão somente a sexualidade, mas como também a liberdade sexual, tutelando, assim, a própria liberdade da livre orientação sexual.

Destarte, a sexualidade como um direito de liberdade, pode ser enquadrada nos chamados direitos de primeira geração, pois juntamente com a liberdade e a igualdade, estariam estes jungidos dentro daquela classificação, já que estes mesmos direitos são inerentes ao próprio indivíduo, pois acompanha o homem desde seu nascimento, pois decorre da própria natureza. É um direito natural, tal qual pregava a escola jusnaturalista.

Entretanto, não podemos desconsiderar que a livre orientação sexual também faz parte dos direitos de segunda geração, pois esta categoria de indivíduos (homossexuais), considerada famigeradas por alguns, seria hipossuficiente em face dos outros indivíduos que a luz da sociedade conservadora não necessitaria de tal tutela jurídica.

Assim sendo, a hipossuficiência decorre do fator social, gerando, assim, na esfera jurídica um reflexo a ser considerado.

E por derradeiro, temos a novel concepção de que o direito à sexualidade passa a ser inserido como um direito de terceira geração, é a chamada geração da solidariedade e fraternidade, pois com bases nestes moldes de geração ou dimensão, como preferem outros autores, é que o direito à sexualidade passa a exigir de outros indivíduos a presença de um direito de todo ser humano de exigir o devido respeito a fim de assegurar a própria escolha de liberdade sexual a qual prefere seguir. E para isto, se faz mister a existência de um próprio direito à solidariedade a fim de se buscar o bem comum, sem a qual a condição humana não se realiza.

Tudo isto supra elencado decorre de que as relações humanas não são estáticas, mas pelo contrário, são dinâmicas a ponto de, em pleno século XXI, concebermos relações de afeto entre pessoas do mesmo sexo, o que no século passado, seria inconcebível.

Daí o papel importante que tribunais possuem nos dias atuais, pois a jurisprudência é a ponta de lança do direito praticado nas diversas épocas da sociedade.

Importante, então, salientar que as relações homoafetivas não são apenas meras relações, mas sim demonstrações de carinho, amor, solidariedade e principalmente respeito pelas relações amorosas de pessoas do mesmo sexo. Assim sendo, nos dias atuais, a união estável comportaria, sem problema algum, duas espécies: união estável heterossexual e união estável homossexual.

E está na hora, hoje, de o Estado, na função de juiz julgador, com base em um Estado Democrático de Direito, começar a tutelar esta nova modalidade de união estável, a de pessoas do mesmo sexo, a fim de se consagrar o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana em face da liberdade de escolha pela livre orientação sexual.

2.4. Uniões Homoafetivas – uma realidade que o Brasil não quer ver

Esta realidade que se põe à prova do crivo crítico da sociedade brasileira e mundial, faz com que as relações homossexuais se tornem objeto de descaso e de discriminação. Não pode a nossa sociedade querer fazer vistas grossas para tal problema. Problema não no sentido pejorativo da relação homoafetiva, mas sim no sentido de existir este preconceito por parte do legislador que não edita normas capazes de satisfazer tal anseio, bem como por parte da sociedade que insiste em negar tal existência homoafetiva, fazendo, assim, com que o nosso judiciário se torne calado quando enfrenta este tipo de demanda nas salas de audiência de seus tribunais.

Mas simplesmente dar as costas para esta realidade não significa estancar o problema, pelo contrário, dificultaria ainda mais o objetivo que a nossa Carta Maior se propõe, qual seja, levar a dignidade da pessoa humana juntamente com os direitos e liberdades das garantias individuais ao extremo de sua aplicabilidade, fazendo com que nossa sociedade se torne mais justa, equânime e fraterna.

É claro que a proteção às relações homoafetivas já se enquadram tuteladas, mas de forma implícita, seja no Diploma Maior, como nas leis infraconstitucionais.

No âmbito constitucional, o núcleo, a pedra de toque, é o respeito ao princípio da dignidade humana, princípio este calcado nas idéias de liberdade e de igualdade. De foram clara e precisa, o texto constitucional elenca como tutela o bem estar de todos, independente de cor, sexo, credo, idade ou qualquer outra qualificação que venha a castrar a liberdade e a dignidade do ser humano (art. 3º, IV). Ocorre que esta proteção, quanto à opção sexual, não fica de toda forma explícita na Lei Fundamental brasileira, pois tutelar a livre opção sexual combinada pelo desejo de manter uma relação homoafetiva vai muito além do que uma simples proteção constitucional, é preciso que a expressão "orientação sexual" figure de forma clara e precisa no corpo do texto maior a fim de satisfazer esta tutela tão esperada pelas pessoas que compartilham das relações homoafetivas.

Já na esfera infraconstitucional, existe um único Projeto de Lei (projeto este sob o de nº 1.151/95), que traça a parceria civil registrada. Este projeto possibilita a elaboração e a averbação de um contrato escrito perante o Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, de uma parceria, seja hetero ou homossexual, a fim de se tutelar eventuais e futuros direitos patrimoniais e de cidadania.

Este projeto suprirá o anseio dos parceiros homoafetivos, pois tutelará os direitos previdenciários e sucessórios, bem como os demais direitos relacionados com a cidadania da pessoa humana.

Portanto, chegou a hora de o legislador abrir os olhos a fim de que estas relações homoafetivas não fiquem estagnadas devidas á falta de amparo legal. È necessária uma sociedade em constante evolução e dinâmica que conceda e aceite tal transformação social, pois se assim não for, deverá então o judiciário tomar para si tal responsabilidade a fim de se tutelar tal relação afetiva, sob pena de se estar negando a mais íntima das garantias individuais, a opção sexual.

2.5. Relações Homossexuais

O homossexualismo existe desde que o mundo foi concebido e teve seu auge nos tempos do império romano, com as famosas "orgias romanas", onde imperavam Nero e seus sucessores. Com o crescimento do cristianismo, séculos após, a Igreja do medievo, que somente concebia o sexo a fim de mera reprodução, começou a execrar a liberdade, naquela época, da livre orientação sexual.

Com a evolução dos costumes, bem como da desvinculação do Estado da Igreja, começou a florescer o sentimento do vínculo afetivo entre as famílias.

Com o a atual modificação do Estado autoritário para um Estado Democrático de Direito, começou a se vislumbrar um maior respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, tutela esta calcada na seara da proibição da discriminação, bem como nos princípios da igualdade e fraternidade (solidariedade = direitos de terceira dimensão).

Começa a aflorar a idéia de que para ter uma família não é necessário simplesmente o dever de procriação a fim de perpetuar a espécie humana, mas sim na própria existência de um lado afetivo na relação, seja de pessoas heterossexuais, como nas relações homoafetivas. A união estável entre homossexuais passa a ter o caráter de uma sociedade de afeto, e não uma sociedade de fato.

Portanto, na concepção de diversos autores de ponta e que sustentam a possibilidade da tutela de relações oriundas de pessoa de mesmo sexo, não pode o Judiciário se esquivar de sua responsabilidade precípua, que é a própria segurança destes indivíduos que optaram, através da livre escolha de orientação sexual, pelos direitos emergentes deste tipo de relação.

2.6. A União Estável Homossexual

Como já dito supra, a união estável entre homossexuais passa a ter o caráter de uma sociedade de afeto, e não uma sociedade de fato, onde, mesmo nos dias atuais, a Igreja execra todo e qualquer tipo de relacionamento entre pessoas do mesmo sexo; a Igreja católica considera uma aberração, uma verdadeira aberração aos princípios norteadores daquela religião.

Atualmente, a Constituição Federal pátria vigente afirma a existência de um Estado Democrático de Direito, preservando, assim, os próprios princípios da liberdade e da igualdade. Protegendo, desde já, os direitos humanos oriundos destes relacionamentos. A própria idéia constitucional do artigo 2º, inciso IV, já consagra o bem estar de todos sem preconceitos de qualquer ordem, inclusive do sexo. Nota-se que o próprio legislador constituinte, à época, já vislumbrava a idéia de uma futura proteção das relações oriundas de pessoas do mesmo sexo. Portanto, cabível, a idéia de que as uniões estáveis não podem ser negadas pelo próprio Estado, sob pena de ferir o princípio da liberdade e da igualdade, já que a Constituição não é um conjunto de regras, mas sim de princípios, princípios estes que nortearão a existência e convivência de uma sociedade na qual ela estará vinculada àquela Carta Maior.

Sobre o autor
Roger Guardiola Bortoluzzi

Bacharel em Direito,Especialista e Mestre em Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORTOLUZZI, Roger Guardiola. A dignidade da pessoa humana e sua orientação sexual.: As relações homoafetivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 632, 25 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6494. Acesso em: 24 nov. 2024.

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