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A terceirização de presídios a partir do estudo de uma penitenciária do Ceará

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5. UMA PROPOSTA DE POÍTICA PENITENCIÁRIA: TERCEIRIZAÇÃO DE PRESÍDIOS

5.1. Introdução

Não se pode negar que o Brasil, nos últimos anos, vem adotando um modelo gerencial através do qual a administração pública começa a se despir da sua posição de prestadora de serviços, desestatizando-os, passando, então, a gerenciar a sua prestação, fiscalizando e controlando atividades transferidas a terceiros. Essas políticas são estabelecidas pelo próprio Estado, dentro de uma visão político-administrativa denominado estado regulador ou neoliberal, a exemplo do que ocorre com as agências reguladoras.

Maria Sylvia Zanella di Pietro entende a terceirização como sendo "a contratação, por determinada empresa, de serviços de terceiros para o desempenho de atividades-meio". É o processo de gestão empresarial que consiste na transferência para terceiros (pessoas físicas ou jurídicas) de serviços que originariamente seriam executados dentro da própria empresa. Ainda na concepção da mesma autora "a terceirização tem como objetivo a liberação da empresa da realização de atividades consideradas acessórias, permitindo que a administração concentre suas energias e criatividade nas atividades essenciais" (DI PIETRO, 2002, p.174).

A crise por que passa o sistema penitenciário nacional nos últimos tempos demanda a adoção urgente de medidas alternativas para a pena de prisão. Assim, só se deve manter preso o indivíduo cuja segregação se mostre necessária e indispensável, pois a grande maioria dos estabelecimentos prisionais não está preparada para a tarefa de reabilitação e devolução do delinqüente ao seio social para ter uma convivência harmônica com os demais cidadãos.

A idéia de privatização de unidades prisionais é nova no Brasil, assim como no resto do mundo. Entretanto, um grande número de países europeus, bem como os Estados Unidos já vêm adotando há mais de uma década, com demonstração de incomparável sucesso.

À primeira vista, a expressão "privatização de presídios" dá a idéia de transferência do poder estatal para a iniciativa privada, que, visando ao lucro utilizaria a mão-de-obra dos encarcerados. Mas é possível a transferência da administração das prisões sem que isto implique a retirada da função jurisdicional do Estado, a qual é indelegável. Nesse sistema a iniciativa privada se encarrega apenas da execução das atividades-meio como fornecimento de alimentação, vestuário, limpeza etc. O trabalho do detento é utilizado mediante justa remuneração, nos moldes dos preceitos da lei de execução penal, a qual se destina à reparação do dano causado à vítima, a ajuda de sua família ou para a formação de um patrimônio econômico a ser lhe entregue após o cumprimento da pena.

Destarte, no modelo penitenciário tradicional no geral impera sobremaneira o ócio e a corrupção já deu mostras de sua falência. Resta, doravante, a busca de novas alternativas que efetivem uma punição construtiva, buscando de fato a recuperação do indivíduo para a sociedade. Com efeito, resta claro e inequívoco que a falta de vontade política aliada a existência de uma enorme máquina burocrática do Estado, contribuem para a construção da teoria que propugna pela terceirização de presídios.

5.2. A proposta de privatização do sistema penitenciário no Brasil.

Em 1992, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), órgão do Ministério da Justiça, propôs a adoção do sistema de gerenciamento privado das prisões no Brasil.

A idéia adveio de reflexões sobre as recentes e modernas experiências que vinham sendo postas em prática nas prisões da França, Inglaterra, Austrália e Estados Unidos. Os objetivos principais eram reduzir os encargos públicos (incluindo-se obrigações fiscais, trabalhistas e previdenciárias), introduzir no sistema prisional um modelo administrativo de gestão moderna, atender ao mandamento constitucional de respeito à integridade física e moral do preso e aliviar a situação de super povoamento que atinge todo o sistema carcerário.

Dita proposta estabelecia a criação de um sistema penitenciário federal a quem caberia a responsabilidade pelo cumprimento da pena privativa de liberdade em regime fechado (estabelecimento de segurança máxima), permanecendo para os Estados a responsabilidade pela execução da pena privativa de liberdade nos regimes semi-aberto e aberto.

A admissão das empresas seria feita por concorrência pública e os direitos e obrigações das partes seriam regulados por contrato. O setor privado passaria a prover serviços penitenciários internos tais como alimentação, saúde, trabalho e educação aos detentos, além de poder construir e administrar os estabelecimentos.

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A administração se faria em sistema de gestão mista, ficando a supervisão geral dos estabelecimentos com o setor público, cuja atribuição básica seria a de supervisionar o efetivo cumprimento dos termos fixados em contrato.

Tal como os norte-americanos, o argumento central da proposta dizia respeito à suposta redução de custos que a privatização acarretaria para o Estado e para os contribuintes.

Ainda que alguns estados, sob a liderança de São Paulo, tenham demonstrado interesses na adoção das prisões privadas, houve uma forte oposição à proposta do governo. A Ordem dos Advogados do Brasil condenou a proposta de privatização, alegando que tal experiência estaria longe de ser moderna, antes constituindo-se num retrocesso em termos de desenvolvimento da política criminal; que a execução da pena é função pública intransferível; que a política de privatização carcerária daria margem a uma contínua exploração do trabalho prisional e que tal proposta violaria direitos e garantias constitucionais dos presos. Em decorrência de toda essa divergência de posicionamento ideológico dentro e fora dos órgãos governamentais, a proposta do Ministério da Justiça apresentada em 1992 foi arquivada.

Posteriormente alguns Estados preocupados com a questão passaram a discutir isoladamente até que o Estado do Paraná tornou-se o pioneiro na implementação do sistema de gerenciamento privado de presídios, criando a Penitenciária Industrial de Guarapuava.

Trata-se de um exemplo pioneiro de parceria entre a segurança pública e privada na qual o presídio é administrado pelo governo estadual e os serviços de segurança interna, assistência médica, psicológica, jurídica e social, são prestadas por uma empresa privada. Seguindo esse modelo existem hoje no país cinco estabelecimentos semelhantes, localizados nas seguintes cidades: Valença (BA), Guarapuava (PR), Sobral (CE), Fortaleza (CE) e Juazeiro do Norte (CE).

5.3. Obstáculos e resietências à proposta de privatização

Embora o modelo de gestão público-privada de estabelecimentos prisionais não seja tão recente, em termos de experiência em outros países, tal idéia no Brasil enfrenta forte oposição, principalmente dos operadores do direito. Para efeitos didáticos esses obstáculos podem ser divididos em obstáculos éticos, políticos e jurídicos.

5.3.1. Obstáculos éticos

Sob o aspecto ético-moral, a privatização do cárcere é atitude reprovável. Prisão é, sobretudo, sinônimo de sofrimento, uma das características da pena. Por isso, é inconcebível que possa uma empresa explorar comercialmente um sistema prisional baseado na obtenção do lucro às custas do sofrimento humano.

Ao princípio ético da liberdade individual, corresponde a garantia constitucional do direito à liberdade. Essa garantia reconhece, no âmbito da ordem jurídica, o comando ético segundo o qual não será normalmente válido a um homem exercer sobre o outro, qualquer espécie de poder que se manifeste pela força. A única coação moralmente válida é a exercida pelo Estado através da imposição e execução de penas ou outras sanções.

A discussão quando levada para o terreno ético e político indica o fato de se estar discutindo a possível "eficácia produtiva" do setor privado no âmbito penitenciário, num sintoma claro de que estão variando as concepções políticas e as percepções éticas, e, em qualquer caso, resulta francamente difícil crer que a eficácia produtiva de qualquer serviço ou instituição social possa ser medida em termos ou com critérios que estão sensivelmente divorciados dos valores políticos ou éticos. E, ademais, resulta totalmente impossível desde a perspectiva da legitimidade da assunção do poder de castigar e fazer executar o julgado que o Estado reduza todo o complexo problema social, político, filosófico e jurídico da execução penal exclusivamente a um problema de custo-benefício.

Desde o ponto de vista político constitucional, a delegação do poder estatal de executar sentenças penais privativas de liberdade supõe, necessariamente, uma quebra do monopólio estatal do uso organizado da força, na medida em que a organização de uma prisão se estrutura e se fundamenta, essencialmente, sobre o uso da coação e da força. Por si só isso distorce o esquema constitucional de valores na medida em que se delega algo reservado exclusivamente ao Estado.

Sob o ponto de vista ético são acertados as afirmações daqueles que se posicionam no sentido de que o imperativo de ordem ética no âmbito das sanções criminais é reduzir o mais possível o nível de sofrimento infligido, algo que se afigura incompatível com o fato de se permitir que alguém enriqueça com o "quantum" do castigo que seja capaz de infligir.

5.3.2. Obstáculos políticos

Privatizar prisões implica consagrar um modelo penitenciário que a ciência criminológica revelou fracassado e violador dos direitos fundamentais do homem. Nem mesmo a doutrina liberal antiga, preconizada por Adam Smith jamais colocou em dúvida o monopólio do Estado com referência às atividades de segurança pública, administração da justiça e defesa nacional. Transferir essas atividades aos particulares seria, portanto, negar existência ao próprio órgão político; seria desvirtuar-lhe o seu próprio significado.

Em termos políticos, o envolvimento do setor privado na esfera penitenciária tem despertado dúvidas quanto à compatibilidade entre a natureza pública do processo de tomada de decisões, inerente à formulação da política criminal e a finalidade lucrativa das empresas. Há o receio de que os interesses privados das companhias passem a influir sobremaneira na definição dos termos que conduzem a política criminal. A política de adoção de estabelecimentos penitenciários privados tem significado na prática um reforço da prisão como "locus" privilegiado das estratégias de controle penal e, mais do que isso, pode abrir caminho para a criação de um poderoso "lobby", veladamente interessado no aumento da população penitenciária. Também nesse mesmo sentido alguns analistas observam que altas taxas de reincidência podem vir a se constituir subproduto das prisões privadas.

Basta uma análise a partir de um modesto silogismo que já se chega à conclusão da impropriedade política do modelo de gerenciamento privado de prisões: o objetivo teórico da administração penitenciária é combater a criminalidade e não obter lucros; ora, as empresas que desejam participar da administração penitenciária visam obter lucros e retiram esse lucro da própria existência da criminalidade; logo, tais empresas que têm interesse em manter seus lucros não irão lutar contra a criminalidade; e se não têm tal interesse não devem administrar prisões. Ademais, uma análise mais sóbria constata que à medida em que a privatização tem se constituído numa questão altamente controversa e polêmica, as dificuldades de comparação entre os estabelecimentos públicos e privados, e o caráter inconclusivo das pesquisas realizadas até o momento sobre o tema têm permitido uma fácil manipulação do item "custos", oscilando ao sabor das conveniências, de lado a lado.

Por outro lado, não está claro que as prisões privadas possam terminar com o problema da criminalidade. Conforme relatórios enviados aos Estados Unidos pelo seleto "Committee on Home Affairs", do Parlamento britânico, que visitaram algumas prisões administradas pelo "CCA", decididamente as prisões privadas não serão capazes de terminar com tais problemas. Ditos relatórios narram experiências de ausência de intimidade nas celas dos reclusos, tratamento vexatório e violência psíquica por parte dos vigilantes, deficiências nas instalações, serviços médicos e assistenciais, semelhantes aos que podem ser verificados em prisões públicas. Ainda assim é evidente que as empresas administradoras não estão nunca dispostas a encarregar-se de determinados tipos de presos que por suas características violentas, conflitivas ou de precária saúde resultem excessivamente caro. Com isso acabaria por se ter prisões privadas esplêndidas e asseadas, para reclusos não conflitivos ou sãos, e prisões com amontoamentos e insalubres para reclusos rebeldes.

5.3.3. Obstáculos Jurídicos

No Brasil, a execução penal sempre se constituiu numa atividade jurisdicional. Disso decorre que a administração penitenciária participa da atividade jurisdicional do Estado, sendo pois indelegável. O princípio da jurisdição única atribui ao Estado o monopólio da imposição e execução das penas e outras sanções. Inconcebível seria que o Estado executasse a tutela jurisdicional representado por autoridade que não se reveste de poderes suficientes para tanto. O Estado não está legitimado para transferir a uma pessoa física ou jurídica, o poder de coação de que está investido e que é exclusivamente seu.

De acordo com o entendimento de Laurindo Dias Minhoto (2000, p.87) um traço das democracias modernas é o postulado do monopólio estatal do uso legítimo da força, segundo a clássica formulação weberiana. Nesses termos o direito de privar um cidadão de sua liberdade, e de empregar a coerção que a acompanha, constitui uma daquelas situações excepcionais que fundamentam a própria razão de ser do Estado, figurado no centro mesmo do sentido moderno de coisa pública e, nessa medida, seria intransferível.

Em termos jurídicos, os críticos da privatização têm chamado a atenção para a especificidade do mundo prisional, dado o grau de coerção necessária que é inerente à administração dos estabelecimentos penitenciários. O ponto mais controvertido nessa questão diz respeito ao uso da força letal. A esse respeito, por ocasião do julgamento de um processo envolvendo a morte de um detento por um agente privado, após uma tentativa de fuga no centro de imigrantes de Houston, Estado do Texas, o Tribunal Federal da Região decidiu que "ambos, Estado e empresas privadas que administram estabelecimentos penitenciários, são responsáveis em questões relativas ao uso da força letal". A decisão acabou por contestar também um dos argumentos invocados pelos defensores da privatização, o de que os Estados supostamente se desonerariam dos custos decorrentes da responsabilização jurídica.

Outro ponto jurídico controvertido diz respeito aos procedimentos disciplinares adotados pelas empresas no âmbito interno das prisões. Tradicionalmente, certa margem de discricionariedade tem sido conferida ao corpo de funcionários dos estabelecimentos penitenciários norte-americanos para a tomada de decisões importantes, tais como o julgamento e apenação de infrações internas, bem como a instrução de requerimentos de livramento condicional. A transferência dessa margem de discricionariedade a agentes privados pode dar lugar a distorções. O que se pretende, enfim, é chamar a atenção para o aspecto da constitucionalidade do sistema de privatização de presídios já que o uso da força fica reservado à empresa gerenciadora, com maior ou menor intensidade.

Sobre os autores
Cosmo Sobral da Silva

bacharelando em Direito pela Universidade Regional do Cariri (URCA), técnico judiciário do TRT da 7ª Região

Everaldo Batista Bezerra

bacharelando em Direito pela Universidade Regional do Cariri (URCA), servidor público

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Cosmo Sobral; BEZERRA, Everaldo Batista. A terceirização de presídios a partir do estudo de uma penitenciária do Ceará. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 652, 14 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6541. Acesso em: 14 nov. 2024.

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