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A Corte Europeia de Direitos Humanos e sua atuação no âmbito laboral

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O direito do trabalho merece proteção internacional tanto quanto qualquer outro direito humano. Nesse sentido, a Corte Europeia de Direitos Humanos, a mais antiga na proteção destes direitos, vem atuando em 41 países, salvaguardando, inclusive, esta questão.

1.INTRODUÇÃO

Os direitos humanos, dentro de um horizonte de pré-compreensão, são os direitos da pessoa humana vinculados aos valores universais de liberdade, igualdade e dignidade. Estes valores formam espécie de espectro de proteção ao indivíduo, consagrado nas Cartas Constitucionais dos Estados e erigidos como objeto da proteção de órgãos internacionais, como forma de coagir os ordenamentos jurídicos internos a protegerem um mínimo considerado essencial à vida digna do homem. Na visão da filosofia universalista Kantiana, há valores e preceitos que são fundamentos últimos de toda ordem moral e jurídica, aplicáveis, portanto, a todo homem, em qualquer tempo. Estes preceitos são ordenados pela razão, através da formulação de leis, fundamentando, assim, a liberdade do homem. Portanto, nesta esteira, torna-se obrigação do Estado a proteção dos cidadãos através da concessão de direitos humanos.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, datada da Revolução Francesa, é o marco na construção de um arcabouço jurídico baseado na dignidade humana e, segundo Norberto Bobbio (1995, p. 354) “consagram as vitórias do cidadão sobre o poder”. Desde o século XVIII até hoje, os direitos humanos evoluíram e passaram por fases diversas, constituindo um verdadeiro processo histórico de formação e consolidação.

A criação da ONU inicia uma nova ordem internacional, cujo objetivo principal era a manutenção da paz, o fortalecimento das relações internacionais, da cooperação entre países e, em especial, a proteção dos direitos humanos, consolidando seu processo de internacionalização e colocando-os, de vez, no cenário internacional.

Foi também no pós Segunda Guerra que se presenciou o nascimento embrionário da hoje consolidada União Europeia. Um de seus órgãos principais é a Corte Europeia de Direitos Humanos, cuja principal função é a de garantir que seus membros cumpram tratados nesta matéria. Atua a Corte diretamente com o cidadão que teve seu direito lesado e na punição dos Estados que não repararam o ferimento do direito ou não garantiram que o fato não acontecesse. É uma proteção supranacional dos direitos do homem, uma instância a mais de proteção fora do país que possui o cidadão europeu.

O Direito do Trabalho, fundamentalmente, se constitui um direito dos homens sob dois aspectos: o direito ao trabalho, dado a cada cidadão, de ganhar o pão com o suor do seu próprio rosto; e os direitos do trabalho, ou seja, aqueles que regulamentam a relação jurídica laboral evitando a indignidade, a exploração e a escravidão do ser humano, deixando o trabalho como um viés libertador da condição humana.

Embora aquilo que conheçamos como direito do trabalho seja fruto da luta de classes, no século XIX, no momento da Revolução Industrial e da consolidação do sistema capitalista, muito antes se percebia como o trabalho sem direitos poderia corromper a dignidade do homem. Na Grécia, os cidadãos não eram escravos, trabalhavam somente com o que era nobre e bom. Em Roma, os escravos começaram a ser tratados como pessoas, podendo herdar e garantindo a liberdade com a morte de seu senhor. Nas Corporações de Oficio, o aprendiz dominava toda a técnica de produção e cada produto que de lá saia tinha a marca das digitais de seu fabricante, um traço de sua personalidade.

Com a massificação da produção nas fábricas, o trabalhador se especializou, não tinha mais o domínio de toda técnica, sequer pensava em dominar produto final. Seus movimentos eram repetitivos e desgastantes, suas jornadas altíssimas, seus salários o menor possível.

Este cenário de violência contra o corpo e a mente do operário levou às revoltas e à criação de um direito do trabalho, que regulamentasse a exploração capitalista da mão de obra. O trabalho livre, em boas condições e justamente remunerado tornou-se a preocupação e o objeto de proteção dos Estados, especialmente porque temiam, à época, uma Revolução anarquista ou comunista.

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O personagem D. Quixote, de Miguel de Cervantes, percebendo o tratamento desumano dado por um senhor ao seu servo, o interpela, chamando-o para batalha contra quem pudesse combatê-lo. Condoído da situação do servo, que era acoitado, diz D. Quixote: “Pelo sol que nos alumia, que estou por atravessar-vos de lado a lado com esta lança! Pagai-lhe já e sem mais replica; se não, pelo Deus que nos rege, aniquilar-vos-ei agora mesmo.” ( CERVANTES, 2005, p. 65). A percepção típica da loucura quixotesca ilustra o que devem fazer estes órgãos internacionais de proteção aos direitos humanos e o próprio Estado: proteger os mais fracos do poder que impera, seja jurídico, político ou econômico.  

Como um dos direitos humanos, o Direito do Trabalho é objeto de proteção jurídica internacional, através de um aparato jurídico e legislativo do direito internacional público. A Corte Europeia de Direitos Humanos cumpre esta função e, neste artigo, objetiva-se analisá-lo, tanto de forma teórica, mostrando sua importância, como através de exemplos práticos que ilustrem esta atuação.  


2.Direitos Humanos e Direito do Trabalho

Direitos Humanos consistem em um arcabouço normativo de proteção a todos os homens, baseado na crença de que existe um patamar mínimo de existência digna e satisfatória universalmente repetida, independente de quaisquer fatores outros. Este caráter universalista erige os direitos humanos a um patamar protetivo internacional, sendo possível até recorrer a uma Corte supranacional para seu reconhecimento e efetividade. Sobre eles diz Pierre Marie-Dupuy:

Uma vez que enunciados nos principais textos internacionais, os direitos do homem remetem à identidade universal da pessoa humana: dotada dos mesmos atributos e aspirantes às mesmas liberdades, qualquer que seja a raça, a etnia, o sexo, as crenças ou a nacionalidade[1](DUPUY, 2004, p.159, tradução nossa)

Faz-se mister analisar brevemente a história do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Antes da segunda guerra, a proteção a nível internacional era ainda incipiente, com discussões pontuais. Neste período, o direito internacional era visto como uma simples relação entre Estados, os quais, resguardados por sua soberania, não poderiam ser forçados a tomar medidas impostas por organismos externos. Por isto a doutrina especializada destaca três grandes precedentes que deram origem ao embrião do que viria a ser o Direito Internacional dos Direitos Humanos: o direito humanitário, a criação da Liga das Nações e da Organização Internacional do Trabalho (PIOVESAN, 2013, p. 187-190).

Deflagraram, portanto, cada um a seu modo, o processo de internacionalização dos Direitos Humanos, ainda que de forma tímida, pois relativizaram a ideia de soberania dos Estados, admitindo intervenções no plano nacional, em prol da proteção dos direitos humanos, além de deslocar o indivíduo para o cenário internacional, antes ocupado apenas pelos Estados.

O chamado Direito Humanitário, conjunto de normas e medidas que disciplinavam a proteção dos seres humanos envolvidos em conflitos armados, teve início antes da primeira guerra, com o movimento da Cruz Vermelha, e possui papel importante no âmbito de proteção dos direitos humanos, pois, ainda que restrito a uma situação específica – conflitos armados –materializou o primeiro grande diálogo referente à proteção internacional dos direitos humanos.

A criação da Liga das Nações, órgão voltado a promover a paz, a cooperação e segurança internacional, após a primeira guerra, retomou o diálogo referente aos direitos humanos e, embora não tenha obtido grande êxito em seus objetivos – eis que não impediu o início da segunda guerra - possuiu importância histórica significativa, eis que foi o grande embrião da ONU, além de reforçar a ideia da necessidade de criação e manutenção de um organismo internacional voltado à manutenção da paz e dos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos.

A Organização Internacional do Trabalho, cujo escopo principal era promover e instituir padrões internacionais de condições de trabalho e bem estar dos trabalhadores, fomentou a discussão acerca dos direitos humanos, levando para o plano internacional a busca pela afirmação dos direitos dos trabalhadores. Ao contrário da Liga das Nações, a OIT existe até os dias atuais, tornando-se iniciativa bem sucedida e que muito contribuiu no processo histórico de consolidação dos Direitos Humanos.

Todavia, foi apenas após a segunda guerra que o processo de internacionalização dos Direitos Humanos se consolida, em especial com a criação da ONU e do Tribunal de Nuremberg, como uma resposta às atrocidades cometidas no período beligerante(PIOVESAN, 2013, p. 193).

Com efeito, o Tribunal de Nuremberg, sem embargo das inúmeras críticas que lhe podem ser feitas, teve papel significativo na consolidação dos direitos humanos, na medida em que aplica costumes internacionais para punir as graves violações perpetradas durante a guerra. A importância do mencionado Tribunal para o processo de internacionalização dos direitos humanos é duplo: “não apenas consolida aideia da necessária limitação da soberania nacional, como reconhece queos indivíduos têm direitos protegidos pelo Direito Internacional” (PIOVESAN, 2013, p. 195).

Já o ato de trabalhar é uma manifestação da vida do homem, que envolve não somente sua produção material, mas conta um traço da personalidade, uma das formas de o ser se identificar na vida. A filósofa Hannah Arendt diz: “a força do trabalho humana é parte da natureza e talvez seja a mais poderosa de todas as forças naturais”(ARENDT, 2010, p. 156)

O trabalho deve ser visto como uma atividade que espraia dignidade, como sendo “o modo mais humano de habitar o tempo e o espaço. Pelo trabalho nos tornamos homens; por sua exploração, ameaçamos perder o gérmen mais pequeno(sic) da humanidade”. (CUNHA, 2006, p.17)

As diversas regulamentações do trabalho humano devem sempre visar à manutenção de condições dignas para o exercício das diversas profissões, sob os prismas de liberdade, igualdade, fraternidade e mínimo existencial. O homem deve ser livre para decidir seu trabalho, para quem trabalha e quando quer trabalhar. A perspectiva da existência de direitos humanos universais e fundamentais não pode aceitar nem conviver com a existência de trabalhos servis ou escravos. Afirma o professor Joaquim Carlos Salgado que Hegel é quem, pela primeira vez, liga a liberdade ao trabalho, à práxis histórica, pois, na medida em que o homem forma um objeto pelo seu trabalho, “forma-se a si mesmo como homem livre, alcança a consciência da liberdade” (SALGADO, 1996, p.450).

O Direito do Trabalho deve ser também uma forma de distribuir rendas e o empregado deve ser protegido frente aos gigantes que enfrenta judicialmente e no dia a dia. O labor humano deve ser remunerado de maneira a permitir uma vida digna do exercício das potencialidades humanas. Aliás, é no Direito do Trabalho que a justiça acentua seu caráter social, trabalhando com que alimenta e define o homem como tal: seu labor.

A dignidade concretiza-se como um direito fundamentalíssimo que pretende efetividade e aplicabilidade, evidencia a urgência de se estabelecer padrões mínimos de comportamentos dignos e é o valor que funda os direitos fundamentais. Como tal, merece o trabalho proteção internacional, assegurando sempre que os Estados tenham um arcabouço legislativo protetivo e protegendo através dos órgãos contenciosos os cidadãos de países que não garantam este mínimo. Diz, sobre o trabalho, a Procuradora do Trabalho Mariza Geralda do Nascimento:

“O significado do trabalho na realidade contemporânea não se prende às amarras de uma limitação meramente econômica (...). Nessa compreensão, de corte histórico-axiológico e humanístico, o trabalho eleva-se como uma das fórmulas de inserção social, como meio que deve ser assegurado à pessoa, de desempenhar um papel em sua comunidade”. (NASCIMENTO, 2005, p. 219)

Assim, o trabalho deve ser protegido dentro da perspectiva universalista de normas garantidoras de um mínimo existencial, por organismos internacionais que possam, na falta de proteção do Estado, assegurar que os cidadãos tenham sua dignidade no exercício de suas funções garantidas.   


3.Procedimentos da Corte Europeia na aplicação dos Direitos Humanos

O sistema europeu de proteção de direitos humanos foi efetivamente instalado a partir da aprovação da Convenção Europeia para a proteção de Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais em Roma no ano de 1950.

A Convenção Europeia de Direitos Humanos institucionaliza um compromisso dos Estados partes de não adotarem as disposições de direito interno contrárias às normas da Convenção, e de estarem aptos a sofrer demandas na Corte Europeia de Direitos Humanos, caso desrespeitem as normas do tratado em relação a quaisquer pessoas, independentemente de sua nacionalidade.

A Convenção Europeia de Direitos Humanos é dividida em três partes. No Título I são dispostos os direitos e liberdades fundamentais, como o direito à vida, à proibição da tortura, à liberdade, a um recurso efetivo, à proibição de discriminação etc. No Título II, a Convenção estabelece a estrutura e funcionamento da Corte Europeia de Direitos Humanos como por exemplo, questões sobre admissibilidade e arquivamento de petições, sobre as sentenças da Corte, sua fundamentação e força vinculante, competência consultiva da Corte, etc. E, por fim, no Título III, a Convenção regulamenta disposições diversas, como poderes do Comitê de Ministros, reservas à Convenção etc.

Há três órgãos de controle jurisdicional dos direitos humanos na União Europeia, a saber: a Comissão Europeia de direitos humanos, composta por uma cadeira de cada Estado-membro, com papel quase-jurisdicional e conciliatório; o Comitê dos Ministros, órgão político de decisão; e, por fim, a Corte Europeia de direitos humanos, órgão propriamente jurisdicional, composto por número de cadeiras igual a de países-membros, com juízes eleitos pela Assembléia Consultiva do Conselho da Europa.

Em 1959 nascia a Corte Europeia de Direitos Humanos, com função exclusiva de julgamento. Com o Protocolo nº 11 em 1998, a Corte foi renovada, ganhando caráter permanente e maiores competências. Assim, um só órgão acampa as funções de admissibilidade, até então de competência da Comissão, e de mérito. Operou-se uma fusão de competências antes da Corte e Comissão Europeia de Direitos Humanos e do Conselho de Ministros, que decidiam sobre a violação ou não das convenções.

A maior inovação do Protocolo nº 11 é a possibilidade direta de o indivíduo, organizações não governamentais e grupo de indivíduos buscarem reparação de seu direito lesado, com acesso, sem intermédios, ao órgão jurisdicional. É o direito de petição direta. Aos Estados ficou a obrigação de não obstaculizá-lo. O requerente deve comprovar a lesão ao seu direito e a impossibilidade de o Estado-membro de atendê-lo, uma vez que viola por ação ou omissão algum dos dispositivos de Tratados e Convenções acerca de direitos humanos.

Cabe mencionar que a Corte Europeia possui duas competências: competência consultiva e competência contenciosa. A competência consultiva foi criada pelo Protocolo nº2e relaciona-se a questões jurídicas relativas à interpretação da Convenção ou seus Protocolos, havendo, porém, a limitação de não se dizerem respeito a questões relativas ao conteúdo dos direitos fundamentais elencados no Título I da Convenção e protocolos, nem sobre outras questões que, em virtude de recurso estabelecido pela Convenção, possam ser submetidas à Corte ou ao Comitê de Ministros. Já quanto à competência contenciosa, as sentenças da Corte Europeia de Direitos Humanos têm natureza declaratória e são juridicamente vinculantes (DUPUY, 1994, p. 244) [2]. Tal significa que as sentenças da Corte têm autoridade de coisa julgada, conforme art. 46 do Protocolo nº 11.

Em comparação com os demais tribunais regionais de direitos humanos, a Corte Europeia possui a maior jurisdição territorial. Ela abarca 41 Estados-partes e o número total de população ultrapassa os 800 milhões de pessoas, excluídos os não nacionais e não residentes nestes Estados.

As sentenças da Corte são compulsórias e o não cumprimento pode causar, como sanção mais gravosa, até mesmo a expulsão do Conselho (nos termos dos artigos 3º e 8º do Estatuto do Conselho da Europa[3]). 

É importante mencionar os requisitos de admissibilidade de um caso ante a Corte Europeia de Direitos Humanos estabelecidos no art. 35 da Convenção Europeia, quais sejam:

a) haver sido esgotadas todas as vias de recurso internas, em conformidade com os princípios de Direito Internacional geralmente reconhecidos; b) respeitar o prazo de 6 meses a contar da data da decisão interna definitiva; c) não ser anônima a petição; d) não ser a petição idêntica a outra anteriormente examinada pela Corte ou já submetida a outra instância internacional de inquérito ou de decisão e não contiver fatos novos (requisito da inexistência de litispendência internacional); e) não ser a petição incompatível com o disposto na Convenção ou nos seus Protocolos (incompatibilidade ratione temporis, personae e materiae); e f) não ser manifestamente infundada ou de caráter abusivo.

Sobre os autores
Adriana Letícia Saraiva Lamounier Rodrigues

Doutora em Direito do Trabalho pela Universidade Federal de Minas Gerais em cotutela com a Universidade Tor Vergata (2017). Advogada. Especialista em Direito do Trabalho pela Università degli Studi di Roma Tor Vergata(2012). Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2011).

Diego Manenti Bueno de Araújo

Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre e Bacharel em Direito pela UFMG. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Adriana Letícia Saraiva Lamounier; ARAÚJO, Diego Manenti Bueno Araújo. A Corte Europeia de Direitos Humanos e sua atuação no âmbito laboral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5734, 14 mar. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66002. Acesso em: 23 dez. 2024.

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